ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

Convivendo com o preconceito

Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Desde que me lembro, da mais tenra idade, me sentia brasileira e cearense. Mas só quando já era adulta e fui fazer pós-graduação em São Paulo percebi que eu também era nordestina, e por que não dizer "baiana". Pois foi assim que me chamaram quando à procura de apartamento para alugar cheguei em uma imobiliária. Senti-me chocada com essa nova identidade, até perceber que era um preconceito. Pedindo-me os dados para cadastro e sabendo que eu estava lá para fazer pós-graduação veio o comentário: Hummm... baianos inteligentes! Fiquei sem entender nada. O gerente da imobiliária era um gordão que devia comer muita pizza, pensei depois um tanto revoltada, imaginando que aquela barriga dele deveria lhe atrapalhar muito.

Fiquei contente em não gostar do apartamento que havia disponível, assim não precisaria me encontrar novamente com pessoa tão desagradável. Na próxima busca tive mais sorte e as pessoas da imobiliária tinham uma relação mais personalizada, sem preconceitos, cabeça arejada, e nos entendemos tão bem que sempre batíamos longos papos nos dias de pagamento. Comecei a conhecer aí também o lado interessante de alguns paulistanos.

Mas outro susto me aguardava, para me fazer sentir que era nordestina, ou seja, "baiana". Procurando comprar alguns móveis, eu e meu companheiro de então, entramos nas Casas Bahia. Depois de dar uma olhada geral, já no setor de cadastro, pronta para comprar uma cama e, de repente, um atendente diz : Por favor, o gerente quer falar com vocês. Pensei: "E agora, será que fiz algo errado?" O gerente, um morenão simpático, de cabelo black power com um sorriso aberto disse: Sejam bem-vindos, esta casa é a casa dos baianos. Eu disse :"Mas nós somos cearenses". Mas aqui em São Paulo não tem isso não, todo nordestino é "baiano". E chamou vários funcionários, para mostrar como todos os funcionários da casa eram baianos. Ofereceu cafezinho e água e conversou bastante, dizendo que as portas estavam sempre abertas para nós. Achei aquela situação um tanto estranha e pensei que poderia ser um tipo diferente de marketing. Mas que nada, havia uma cumplicidade "baiana" no sorriso e no olhar. Comecei a me sentir um tanto exilada no meu próprio país.

E, de fato, São Paulo com aquele seu jeito cosmopolita por um lado, e um tradicionalismo arraigado por outro, me deixava um tanto desconcertada. No meio daquela ebulição cultural, tínhamos o mais imprevisível, inusitado, novo e futurista, e também os preconceitos mais cabeludos e inaceitáveis, de mais de quatrocentos anos. Coisas interessantes como o realejo com seu papagaio para tirar a sorte, crianças brincando de roda e ciranda à noite nas ruas de Vila Beatriz,  que não condiziam com o ritmo alucinante de vida da cidade, e nem com as repúblicas de estudantes, criando famílias modernas e diferentes em Vila Madalena, em plena década de 80 do século XX.

Em várias ocasiões, em ônibus, presenciei discursos denúncias de nordestinos operários, pobres, maltratados pelas condições de vida e pelo preconceito, que os faziam explodir e gritar a plenos pulmões contra os paulistanos. E um dia ao chegar em um jornaleiro para comprar uma revista, e ele percebendo meu jeito indisfarçável de cearense, começou a falar do mal que os nordestinos tinham causado a São Paulo. Que os italianos haviam construído São Paulo e os nordestinos a haviam destruído. Era um torneiro mecânico aposentado, italiano, morava desde pequeno no Brasil, e provavelmente foi substituído no mercado de trabalho por um nordestino. Quando lhe disse que eu não era operária, que era nordestina, e estava em São Paulo fazendo pós-graduação vi um brilho de ódio em seu olhar.

 Senti na pele, naquele momento, o que era a xenofobia, sem ter saído do meu próprio país. Fui na memória buscar meus ancestrais brasileiros e percebi que tinha mais raiz do que ele, que era italiano e estava querendo me mostrar que como nordestina eu não tinha muitos direitos naquele solo, que era Brasil. Fiquei decepcionada, porque sempre havia pensado que uma das boas qualidades dos brasileiros era não serem xenófobos. E no Ceará as pessoas recebem muito bem quem vem de outros estados do Brasil e de outros países. Percebi também que aquele era um sentimento fascista e não era verdadeiramente brasileiro, mas se pretendia brasileiro.

Depois tive ocasião de tirar a cisma de operários italianos de São Paulo, e de não considerá-los todos fascistas. Um colega convidou-me para comer o melhor gnocci que já comi em minha já não tão curta vida. Feito por seu pai, um torneiro mecânico aposentado de origem italiana. Um delicioso gnocci acompanhado de muita simpatia e prosa interessante.

Um amigo piauiense me visitando em Sampa e eu comentando com ele os ocorridos. Ele disse: "No Rio disfarçam mais, mas o preconceito também existe. Lá os nordestinos são "paraíbas". Ele, agrônomo, havia estudado na Universidade Rural do Rio, e um dia ao fazer um aparte na aula, o professor lhe disse: Pode falar, porque minha aula é um dos poucos lugares onde um Paraíba pode falar aqui no Rio. Chocante, principalmente vindo de um professor!

Mas eu também me vi em situação inusitada no Rio. Indo para a inauguração de uma casa de massas italianas, depois de fazer uma fila para entrar, e com amigos em uma mesa, fomos rodeados várias vezes pelo garçom. Parecia que ele estava nos espiando. Começamos a achar muito suspeita aquela atitude. De repente, ele não se conteve e perguntou: Não é por nada não, mas vocês são de onde? E nós : Do Ceará. Ele riu e disse: Bem que eu suspeitava. Aqui neste restaurante todo mundo é cearense. Desde o dono até os garçons. E foi chamar os outros garçons, que ficaram em torno de nós se apresentando e dizendo de que municípios eram. Veio também o único garçom que não era cearense, mas de Santa Catarina, para se justificar porque não era cearense.

Nestas alturas da estória não ousamos perguntar se o chefe de cozinha era também cearense. Não seria muito gentil, já que aquela casa estava sendo inaugurada como uma casa de massas genuinamente italiana e, além disso, não nos aborreceríamos com a idéia de que fomos enganados pela propaganda. Preferimos aproveitar a boa hospitalidade e deferência com os cearenses, que nos fazia lembrar que aquele encontro efusivo devia-se à necessidade que todos sentiam de identidade, ou pelo fato de cotidianamente se sentirem discriminados de várias formas. Estrangeiros em seu próprio país.

Mas, de alguma forma, as coisas iam se compensando em São Paulo. Uma discriminação aqui, uma ótima recepção ali, apesar de eu sempre tomar um susto quando alguém dizia: Ih! fiz uma "baianada". Sem querer já me sentia "baiana" e com ganas de pular no pescoço de quem falou tal impropério. Mas Ernesto Sábato, um escritor argentino, me ajudou na época, através de um de seus livros, a digerir melhor tal expressão. Conta que há uma expressão similar na Argentina, "gauchada", dita pelos portenhos pejorativamente toda vez que cometem um erro ou uma "burrada". Comecei a entender, então, tais expressões pejorativas não só como um descompasso da realidade brasileira, mas algo mais ampliado, como um problema latino - americano, inscrito em uma forma de desenvolvimento econômico-social desigual e combinado, que nos coube tristemente no desenvolvimento do capitalismo mundial.

Mas, pior ainda quando o preconceito era implícito, no meio acadêmico, por exemplo. Quando ficavam sabendo que eu era do Ceará diziam: É incrível, mas você não se parece com nordestina. No início eu ficava tentando mostrar que eu parecia nordestina e tal. Lembrava que uma conhecida francesa disse-me uma vez  que na França eu poderia ser perfeitamente confundida com uma francesa. E eu lhe dizia que realmente um francês andou deixando muitos filhos e grande descendência nas paragens onde nasci, mas aquele meu sotaque quatrocentão de Tabajara jamais me deixaria confundir com uma francesa. Só depois eu percebi que a tal observação, de que eu não parecia nordestina, era feita por colegas como um elogio. Percebi, então, o absurdo da situação. Quem disse que eu não queria me parecer com cearense? Aquilo para mim parecia um roubo de identidade, ou um insulto. Será que estavam querendo roubar minha alma?

Tantas e tantas me aconteceram, e como eu tinha que cumprir uma temporada de estudos em São Paulo resolvi de forma muito racional que tinha que aprender a conviver com o preconceito, e de sobra, aproveitar as boas coisas que a cidade tinha a me oferecer. Mas por outro lado, meus instintos reagiam. Enquanto procurava encarar tudo na brincadeira comecei a desenvolver uns desejos estranhos. Queria comer comida nordestina. Ia à Rua Pinheiros, em um restaurante típico, e pedia o que havia de mais aproximado do nordestino, mesmo que não costumasse comer isso no Ceará - costela com pirão. Refestelava-me com tão típico prato. E esse, sem dúvida, era um almoço simbólico. Depois podia me sentir novamente cearense e nordestina. E por que não "baiana"?

Agora, em outro nível, o preconceito que só sentíamos em São Paulo, saiu em cadeia nacional, para que pudéssemos senti-lo também a partir de nossa poltrona. Não por acaso ele emerge, e através de figura ilustre. O preconceito vem à tona porque precisa de um acerto de contas, porque precisa ser reconhecido como tal. Porque precisa mostrar através da reação justa dos brasileiros atingidos que essa não é a forma verdadeira de se ser brasileiro, e muito menos de estar em relação com brasileiros, para também sabermos o que significa ser verdadeiramente humano.

Saindo à rua um grafiteiro me fez refletir. Em uma grande parede da cidade, com letras grandes, ele escreveu: Graziano, você é um marginal!

Muito provavelmente ser marginal tem outros sentidos. Dentre eles ser marginal é estar cheio de preconceitos e estabelecer uma grande barreira de separatividade entre si  e "o outro". Ser marginal, nesse caso, é não poder compartilhar com todos uma alma verdadeiramente brasileira!

 

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda - www.veronicammiranda.com.br

Data:24/03/2003

* Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

A FALA - www.cepac-ce.com.br 

Espaço Virtual do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará-CEPAC

Proibida a reprodução de artigos e textos

Todos os Direitos Reservados