ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

NÓS OS TRABALHADORES DO BRASIL, UMA POPULAÇÃO FLUTUANTE

Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

 São essas as imagens que me chegam em pleno 1° de Maio, dia do trabalhador-trabalhadores que são a maioria da população brasileira, mas que não sabem exatamente  o que são, pois sem trabalhos certos, participantes de um mercado cada vez mais informal de trabalho, vivendo de bicos, são como uma população flutuante, sempre em busca de um trabalho e de uma solução para a sobrevivência. Essa população flutuante que há algumas décadas atrás poderia se dizer composta de "deserdados da vida, do Estado e da família", pessoas sem nenhum nível de instrução escolar e, portanto, sem condições de conseguirem um emprego, já não pode ser chamada somente e pejorativamente de "peãozada", lumpen proletariado ou exército de reserva. Grande parte desse contingente populacional do Brasil hoje são pessoas com um nível de estudo razoável e com bons currículos profissionais, mas que não são absorvidos pelo mercado de trabalho.

Temos assim além dos sem-teto, dos sem-terra, os sem-empregos, que atingem uma ampla faixa que vai dos considerados pejorativamente por alguns de  "peões" aos chamados intelectuais de "classe média". É essa a herança que ficou para nós trabalhadores e ao mesmo tempo desempregados brasileiros, dos vários governos liberais aos neoliberais, que trataram de satisfazer a boca insaciável do mercado capitalista e as necessidades políticas de seus detentores. E assim chegamos à qualificação de um Estado Brasileiro, que sempre se quis forte, mas que de fato foi sanguinário. Um Estado forte no caso brasileiro e latino-americano seria um Estado verdadeiramente de bem-estar social, o que nunca ocorreu de fato com o Estado Brasileiro.

 No Brasil, em determinadas conjunturas políticas, ocorreu uma inflação do Estado burocrático, com finalidades duvidosas se considerarmos os poucos benefícios sociais advindos disso, e que até hoje nos rende ajustes e mais ajustes fiscais. Passamos da política de um Estado inflado que nunca rendeu bons frutos para a população, para gradativa política não nomeada de Estado Mínimo, que juntamente com a faculdade de recortar as cabeças e salários do funcionalismo público e reduzir os programas sociais criou a estranha e complicada “terceirização” no Brasil, o chamado "terceiro setor" no mercado de trabalho.  É bem verdade que grande parte desses ajustes não resolveram a situação da população, e nem reduziram o déficit público com as políticas de ajustes traçadas pelo FMI. Durante a última década tivemos oportunidades de verificar que as políticas de enxugamento do aparato do Estado não redundaram em melhorias para a população em geral e muito menos para o funcionalismo público em particular.

A pauperização das camadas médias, sejam funcionários públicos, sejam intelectuais, e outros setores de desempregados que tiveram que recorrer às artimanhas da sobrevivência, pela criação de micros e pequenas empresas sustentadas a duras penas e outros "bicos", tornaram essas camadas médias mais ativas politicamente, mais participantes e militantes de partidos e movimentos sociais. Passaram a constituir a população "politicamente ativa" que concorreu decisivamente na eleição do Presidente Lula, e suas proposições políticas, nas eleições Brasil 2002.

Agora, início das reformas do novo governo, essa mesma população passa a ser alvo dos ajustes fiscais. Os trabalhadores e desempregados brasileiros que mudaram o governo, buscando novas proposições políticas, buscando um novo Estado de bem-estar social, buscando menos impostos, buscando mais empregos, buscando mais reconhecimento por parte dos governos iniciam uma dura luta para serem ouvidos. Além disso, e do reconhecimento de que há sérios problemas no sistema previdenciário e tributário do país, é necessário reconhecer que a grande contradição existente no país é entre o capital e o trabalho, e é sem sombra de dúvidas essa contradição que permeia todas as demais questões.

Ao não se querer tocar na ferida e procurar curá-la, porque o remédio é caro e difícil, não podemos incorrer na injustiça de imputar os problemas do país aos servidores públicos, às camadas médias e aos intelectuais, que hoje formam a grande base e ocupam cargos políticos nos partidos mais genuínos de esquerda e em movimentos sociais.Para sermos genuinamente cartesianos não fiquemos somente nas conseqüências vamos também às causas, e se quisermos ser dialéticos peguemos os problemas pelas contradições.

O aparato burocrático que está aí é criação do próprio Estado Brasileiro. Aqueles que o assumem por livre e espontânea vontade assumem também suas mazelas. Antes de lançar o dedo acusador sobre os trabalhadores que o compõem seria melhor fazer o mea culpa pela parte que cabe aos dirigentes do Estado. Rei morto, rei posto, e suas responsabilidades também.Corrupção existente foi corrupção permitida e em muitos casos ensejada pelos dirigentes. Ineficiência existente é ineficiência permitida por seus dirigentes, e muitas vezes planejadas com outros objetivos. Voltemos nossas críticas principalmente para quem dirigiu as políticas e ocupou cargos de direção desse aparelho burocrático.

Em se reconhecendo as mazelas,e as responsabilidades das elites que o governaram e dos seus dirigentes, melhor será negociar com os funcionários e trabalhadores, pois ao se atirar pedras injustas elas voltarão como bumerangue. Dentro de todas essas categorias de trabalhadores há aquelas que sempre lutaram e trabalharam por mudanças, contra a corrupção e pela dignificação da coisa pública. Ao longo de nossa história os funcionários públicos são tratados como coisa ou mobília do Estado, ou agentes de corrupção. E depois do péssimo exemplo, se requer que eles tratem os outros como cidadãos.

Paz e amor e pacto social não excluem o exame e compreensão dessas contradições.Quanto mais reconhecermos as feridas, mais rápido encontraremos o tratamento certo. Melhor é começar dando “nome aos bois” e assumir que essas reformas previdenciárias e tributárias não são reformas profundas e nem são a solução  principal para os problemas do país, dos funcionários públicos e dos demais cidadãos, mas um ajuste fiscal que busca um denominador comum no Estado como um todo, e resolve temporariamente as demandas macroeconômicas do Estado Brasileiro, face às políticas e compromissos com o capital financeiro internacional e o FMI.Dessa forma, queremos acreditar que mesmo que os ajustes sejam necessários, como é necessário o seu debate  de uma forma mais ampla, e a realização de modificações às proposições feitas, isso significa apenas a largada para as verdadeiras mudanças que necessita o país. Torna-se necessário, dessa forma, o aprofundamento e debate dessas proposições atuais.

Creio eu que as camadas médias militantes, os intelectuais, os servidores, os intelectuais orgânicos a serviço e participantes dos movimentos sociais deste país desejam que um dia a "peãozada"- como chamou o presidente Lula referindo-se provavelmente aos operários - como também os demais trabalhadores e suas organizações de regiões menos valorizadas do país, possam ter mais voz, fala, para participar de forma mais efetiva dos partidos políticos, dos ministérios, dos Conselhos Econômicos e Sociais e das decisões do país. Por enquanto, a maior força do governo federal ainda são os governadores, os prefeitos, empresários, e poucos trabalhadores.Nas reformas que ora estão sendo realizadas há um grande apoio dos detentores de poderes do Estado, principalmente do executivo, interessados no recolhimento das taxas e contribuições, que resolverão em parte suas dores de cabeça, e nos trarão a nós cidadãos brasileiros prováveis enxaquecas e taxas até para respirar o ar atualmente gratuito.

 Gostaríamos de ter um Estado Mínimo sim, mas com outro significado.O de reduzir os tantos impostos e encargos que nos pesam nas costas e nos bolsos, e que pelas propostas já feitas em tramitação no Congresso Nacional carregaremos mais ainda até a aposentadoria e o leito de morte. Chegamos a sonhar que não estamos no governo de João Sem Terra e que não precisaremos de tantos Robin Hoods, para de forma tão rebelde minorar nossos problemas com o Estado. Sonhamos com o dia em que os representantes brasileiros gastarão muita saliva e criatividade, e com seus poderes de persuasão convencerão não os funcionários públicos e intelectuais brasileiros de classe média, mas os representantes do FMI, sobre medidas econômicas mais compatíveis com as políticas econômicas que o país realmente necessita e não a que eles querem que sejam implementadas.

Mas por enquanto, o que se quer é que o Estado Brasileiro seja forte, no sentido positivo da palavra, que além de cumprir as demandas sociais, respeite os cidadãos e os trabalhadores e seja permeável às suas falas e críticas. Nós trabalhadores e desempregados brasileiros trabalharemos para que chegue o dia em que as principais questões desse país não sejam resolvidas jogando trabalhador "peão" contra "trabalhador de classe média", mas que se busquem as resoluções das principais contradições que nos assolam, sem medo de ser feliz. Assim não será necessário tirar daqueles que ganham pouco, para dar aqueles que não ganham nada. A distribuição de renda deverá ter outra orientação: tirar dos que acumulam muito para aqueles que ganham pouco ou nada.Isso é razoável e justo.

Por enquanto, iniciaram-se os ajustes, vamos a eles, com força e com coragem. As verdadeiras reformas estruturais ainda estão sendo esperadas.

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda - www.veronicammiranda.com.br

Data:01/05/2003

* Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

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