ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

 E A REFORMA AGRÁRIA?

Raul Patricio Gastelo Acuña*

Uma das bandeiras históricas do Partido dos Trabalhadores (PT), cantada em prosa e em verso desde sua fundação foi a necessidade urgente de reforma agrária no país. Esse compromisso histórico foi firmado pelo PT desde sua fundação. Os arremedos de reforma agrária dos governos Sarney e do F.H. Cardoso receberam, com razão, ácidas críticas do PT. Críticas que cruzavam todas as instâncias partidárias e que iam além disso. Desdobravam-se em apoios de todo tipo, tanto ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), em nível local, regional e nacional.A luta pela reforma agrária nasceu indissoluvelmente ligada à teoria e prática do PT. Prática histórica do PT que levou o MST e a CONTAG a apoiar a candidatura de Luis Inácio Lula da Silva à Presidência da República. Existia uma posição firme e decidida de realizar uma reforma agrária no país digna desse nome.

Transcorridos 10 meses de governo a reforma agrária do governo do PT não existe. Não estamos nos referindo a metas quantitativas – número de hectares desapropriados e famílias assentadas - que são ridiculamente inferiores às dos governos de Sarney e Cardoso. Nos referimos a uma proposta de reforma agrária, a uma lei de reforma agrária que possibilite, finalmente, por fim à grilagem de terras e restituir a posse da terra aos milhões de pequenos produtores que têm sido expropriados pelo latifúndio, e pelo capital industrial e financeiro. Nos referimos a uma lei de reforma agrária que resolva a questão agrária e abra caminhos para a democratização da terra e de um modelo agrícola que privilegie a quem nela trabalhe. No referimos a uma lei de reforma agrária que sem destruir a moderna empresa agrícola imponha limites à quantidade de terras que possam ser apropriadas e exploradas sob qualquer título por uma empresa ou por um proprietário individual. Não podemos esquecer que a terra é parte da natureza e a natureza não pode ser apropriada individualmente por uma pessoa ou um grupo de pessoas para usar, gozar e destruí-la em beneficio pessoal. A apropriação privada da natureza que é propriedade social, da mesma forma que o ar, os rios, os oceanos e as florestas, deve estar limitada pela sociedade no seu uso e gozo. A natureza está aí e não é produto do trabalho humano. É limitada e é escassa. E seus usuários devem melhorá-la, cuidá-la e protegê-la para as gerações futuras, pois está organicamente ligada à existência e reprodução do ser humano. Nos referimos a uma lei de reforma agrária que através da modificação da Constituição resolva eqüitativamente para a sociedade o pagamento da terra desapropriada e das benfeitorias. É completamente absurdo fazer uma reforma agrária pagando a terra pelo valor comercial e as benfeitorias à vista. Os atuais dispositivos sobre o pagamento das desapropriações anulam qualquer possibilidade de reforma agrária.

A reforma agrária é uma das tantas e grandes questões nacionais que aparece reiteradamente no Brasil desde a abolição da escravidão. Reivindicação reprimida, sufocada e escamoteada uma e mil vezes pela força política e pela força das armas daquela porção de brasileiros que se apropriaram de parte do país para uso e beneficio próprio. Apropriação realizada com o apoio da coerção estatal, dos cartórios, do poder judiciário e de um ordenamento jurídico que favorece a grilagem e a expulsão de suas  terras dos pequenos produtores.  É reivindicada pelo tenentismo na década de 20 do século XX, é uma das principais propostas da Coluna Prestes e é assumida pelo governo de João Goulart diante das pressões das Ligas Camponesas e dos Partidos Políticos progressistas. O golpe militar posterga essa demanda e diante do quadro da agricultura brasileira o governo militar promulga o Estatuto da Terra. O Estatuto visava fundamentalmente a colonização agrícola e não é propriamente uma lei de reforma agrária pois deixava intocada a perversa estrutura agrária do país. Seu papel fundamental era a ocupação do território por razões geopolíticas, aliviar a pressão por terras por parte dos milhares de pequenos produtores rurais expropriados pelo latifúndio e possibilitar ganhos em terras e lucros exorbitantes às grandes empreiteiras encarregadas de construir a infra-estrutura dos projetos de colonização. Esses projetos foram um desastre para os colonos e negócio da China para as grandes construtoras. Foram grilados milhões de hectares e o Estado perdeu para os grandes capitalistas do país - construtoras, bancos e grandes indústrias - o senhorio do seu território e condenou à miséria milhares de colonos seduzidos pela possibilidade de ter um pedaço de terra e pela promessa do “ouro verde” a ser obtido nas fronteiras agrícolas do país..

O Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) promulgado pelo Presidente Sarney, mesmo castrado e adocicado, possibilitou um relativo avanço da reforma agrária nos primeiros anos de sua aplicação. O PNRA tinha uma limitação gritante: não era uma lei de reforma agrária e suas limitações eram as limitações do Estatuto da Terra que era uma lei de colonização. Sucessivos decretos presidenciais dos Presidentes Sarney, Collor e Cardoso transformaram os poucos avanços do PNRA numa caricatura de reforma agrária.

Transcorridos 10 meses do governo a proposta de reforma agrária do Governo do Partido dos Trabalhadores dorme o sono dos esquecidos, perturbando, esperamos, a vigília e a consciência do Presidente atual que foi eleito por formular, entre outras promessas, a realização de uma reforma agrária.

Em diversos jornais do país foi noticiado que em 17 de outubro deste ano a Comissão encarregada de elaborar o Plano de Reforma Agrária do governo atual daria a conhecer a proposta. Proposta que submeteria à apreciação do Governo e dos movimentos sociais que lutam pela reforma agrária.

O Plano anunciado terá, sem dúvida, uma limitação estrutural e não é necessário ser aprendiz de feiticeiro para saber que não pode ir além da lei que criou o Estatuto da Terra e da Constituição de 1988. Um Plano é uma maneira de implementar o ordenamento jurídico vigente e sem a modificação desse ordenamento jurídico as questões centrais da reforma agrária ficam intocadas. Sem dúvida o osso é duro de roer pelas limitações constitucionais e porque o Plano Nacional de Reforma Agrária não pode fugir legalmente da camisa de força do Estatuto da Terra, que, como sabido é uma lei de colonização agrícola baixada pelo governo militar para não fazer reforma agrária. Além disso, a Constituição de 1988 ergue barreiras legais que engessam e maniatam qualquer proposta de uma reforma agrária nos marcos concebidos pelos estudiosos clássicos do tema.

Há três perguntas centrais que devem ser respondidas. A primeira e óbvia é se o governo tem disposição política de enfrentar o capital fundiário, industrial e financeiro e realizar a reforma agrária. Os detentores da propriedade da terra constituem insignificante minoria diante da maioria de sem terra ou com pouca terra e dos mais de 50 milhões de votos conferidos pela maioria da cidadania ao Presidente Lula que tem mais legitimidade que qualquer outro Presidente teve na história do país para realizar essa reforma estrutural. Sem essa reforma o carro chefe dos programas sociais do governo, o Fome Zero e a promessa presidencial que ao termo do seu mandato nenhum brasileiro deixará de fazer três refeições por dia não resistem a qualquer análise. O Fome Zero é um programa emergencial que para que não vire assistencialismo deslavado das almas caridosas e que não resolve o problema da fome deve estar sustentado, como apontam os milhões de folhetos distribuídos pelo governo, na reforma agrária. E diante de mais de 40 milhões de miseráveis a única alternativa é uma reforma agrária estrutural. O Ministro José Graziano da Silva escrevia em artigo, antes de ser Ministro, que a grande empresa agrícola já tinha resolvido o problema da produção de alimentos e matérias-primas no país, e que o problema de fome não se devia à falta de produção, senão à falta de dinheiro para comprar comida. E que a reforma agrária não era estritamente agrícola e seu objetivo central era equacionar os problemas dos excedentes de população.[1]

Sem dúvida a criatividade e imaginação do povo brasileiro é portentosa, mas fazer reforma agrária que não seja estritamente agrícola é transformar a imaginação em delírio. A menos que se considere que a grande empresa agrícola e o atual modelo agrícola - que em épocas não muito distantes o Ministro Graziano denominou do perverso modelo da "modernização conservadora” - deva permanecer intocado e que a reforma agrária é algo tópico e pontual que de reforma agrária só tem o nome. O objetivo central de qualquer reforma agrária é a mudança profunda das relações de propriedade e posse da terra na agricultura: os que têm muita terra são desapropriados e esse excesso de terra é transferido para os que têm pouca ou nenhuma terra. A reforma agrária estabelece um limite máximo de terras que possa possuir alguma empresa ou pessoa. Trata-se de democratizar o uso e usufruto de parte do planeta para os que nela trabalham. A sociedade no seu conjunto, única possuidora da natureza, concede o direito de propriedade sob determinadas condições aos seus proprietários limitando drasticamente a quantidade que possam ter sob seu domínio.

A segunda questão é a modificação da indenização aos proprietários pela desapropriação da terra. Não é possível realizar uma reforma agrária sem modificar os dispositivos constitucionais que orientam essa matéria. E é a sociedade civil que deve determinar que não se paguem somas exorbitantes de dinheiro por terras griladas ou a proprietários que se apossaram sem custo de milhões de hectares. Em relação às benfeitorias o modelo de reforma agrária deve possibilitar que os atuais proprietários de terra permaneçam explorando sua propriedade sendo proprietários de um limite máximo de hectares. Nessas condições as benfeitorias permaneceriam, na sua maior parte, sob seu domínio, e não haveria necessidade de indenizá-los. Sem dúvida, o semi-árido nordestino teria que ter normas específicas e diferenciadas em relação ao pagamento das benfeitorias. Consideradas as rendas diferenciais do solo, na maior parte das fazendas dessa região as benfeitorias estão construídas nas poucas áreas aptas para plantios.

A terceira questão é a criação da justiça agrária. Tribunais somente dedicados a julgar questões de terra, água e conservação ambiental.

Em síntese, um Plano de reforma agrária, se não for acompanhado de mudanças na constituição será um arremedo de reforma agrária. Do contrário, o Fome Zero de projeto emergencial se transformará em projeto estrutural permanente nos quatro anos de governo e os miseráveis terão que recorrer à sua fértil imaginação para com R$ 50.00 por mês, inventar três refeições por dia para o grupo familiar.

Por que o Presidente Lula não envia uma lei de reforma agrária ao Congresso? Já se perderam 10 meses e os conflitos agrários continuam fervilhando no país. A melhor solução democrática e digna para combater a miséria e a fome que assola  milhões de trabalhadores rurais, e daqueles que expulsos pelo latifúndio, moram nas favelas das grandes, médias e pequenas cidades é a reforma agrária.

 

[1] Graziano da Silva, J. Ainda precisamos de reforma agrária no Brasil?”.  In: Revista Ciência Hoje, SBPC. São Paulo. Vol 27. N°.170. Abril de 2001, pp. 81-83.

 

01 de Novembro  de 2003

* Raul Patricio Gastelo Acuña, sociólogo e membro licenciado do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará - CEPAC

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