ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

 O outro lado da inclusão

Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Na década de 80 do século passado estava com uma equipe pesquisando em um assentamento de Reforma Agrária no município de Canindé-Ce. O assentamento, desapropriado por interesse social, como decorrência de conflito entre moradores e proprietário, em que houve uma morte. A fazenda desapropriada deveria passar por uma reestruturação econômico-social e criada uma forma de organização capaz de dar suporte econômico para todas as famílias lá existentes. A equipe multidisciplinar, da qual eu fazia parte, estava encarregada da elaboração do projeto de assentamento. Éramos esperados ansiosamente pelos camponeses. Dir-se-ia à primeira vista, que seríamos  a equipe encarregada da "inclusão econômico-social" daqueles produtores. Palavra  em voga atualmente,a "inclusão" não era muito utilizada naquela década, quando as conseqüências do capitalismo global e a exclusão social não eram tão notórias quanto agora.

Trazíamos, entretanto, na bagagem, variadas experiências.Uma pessoa com experiência de Reforma Agrária em outro país. Alguns, com experiência de pesquisa em assentamentos de colonização do INCRA, outros com experiência em agricultura camponesa, outro com experiência em ambiente construído para pequenos produtores, e ainda outros com conhecimento da economia e história da agricultura cearense. E como não podia deixar de faltar, pessoas com conhecimento, também, da pedagogia e da filosofia de Paulo Freire. Eu mesma havia estudado a obra de Paulo Freire e trabalhado com sua metodologia. Sua filosofia, ainda que não constituísse o único fundamento do trabalho da equipe, perpassava a metodologia do trabalho. Contra a "extensão em detrimento da comunicação'' e contra a "educação bancária". Sabíamos, portanto, que nenhuma transformação e organização econômico-social adequada seria possível, se o trabalho da equipe não se constituísse em uma troca interdisciplinar e em uma troca e aprendizagem com os camponeses,que eram sujeitos e não somente "público alvo". E assim deveriam ser considerados.

Mas a experiência sempre é mais forte do que as meras proposições, ainda que estas sejam importantes.Logo no primeiro dia tivemos um grande impacto. O vasto conhecimento de uma das lideranças dos produtores. Morador antigo da Fazenda tinha um conhecimento impressionante da agricultura que praticava. Através de grande parte dos seus depoimentos a equipe pôde fazer uma recomposição dos sistemas de plantio, das formas de trabalhar a terra, dos consórcios e rotações das culturas, das relações de trabalho e das mudanças ocorridas na agricultura nas últimas décadas, naquelas paragens. Era um camponês de arte e ofício. Falava com gosto e gozo de seu trabalho. Além disso, participante de sindicato, CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e presente nos movimentos sociais. Ao avistarmos uma viola dependurada na parede de sua casa revelou-nos que era violeiro.

As modas de viola compostas por ele, além de belas e plangentes, davam conta da realidade camponesa e sertaneja com uma visão crítica e arguta. Era poesia, critica social, política e narrativa da vida camponesa. Suas modas de viola nos envolveram e nos jogaram de modo muito mais profundo naquela realidade. Falava das dificuldades e das belezas, dos conflitos, das contradições de classe, de Deus, da fé, e da permanente luta deles.

Já era tarde, quando íamos à cidade para almoçar e ele disse: "Por hoje, que foi o primeiro dia que vocês chegaram, eu mandei preparar um almocinho pra vocês." Sem querer incomodar, já que íamos preparados para almoçar na cidade, mas sem querer fazer uma desfeita à tão carinhosa recepção, aceitamos o seu almoço, certos de que retribuiríamos depois. O almoço, simples e saboroso, teve como sobremesa  rapadura, que ele comprava especialmente na serra, por ser seu doce favorito. Percebendo que aquele era para ele um doce especial e difícil de conseguir comemos pouco da rapadura, para não lhe deixar em falta com o produto. Mas, um agrônomo, colega e entusiasta das conversas e ensinamentos agrícolas do nosso anfitrião, era também vibrador e conhecedor de rapadura. E apesar de nós piscarmos para ele deixar de comer  a rapadura tão prezada, ele não se tocava, e quase comeu toda a rapadura. Nosso anfitrião gentilmente oferecia mais, sabendo que estava agradando, e ele não se fazia de rogado...Aceitava. E foi assim, quando nos despedimos à noite, para voltar no dia seguinte e continuar os trabalhos, que nosso colega percebeu o estoque de rapadura quase acabado. O presente de rapadura que ele levou para o anfitrião depois, não era tão especial quanto àquela, da serra, sua favorita.

A caminho do hotel, na cidade, as vibrações da equipe estavam altas. Cansados, mas com a bagagem pesando, repleta de conhecimentos novos sobre a agricultura, as relações sociais, a fazenda, a música, aquelas toadas plangentes que ainda nos embalavam, e o sabor da rapadura especial ainda na boca. O que aprendemos ali foi incalculável, mas eu não parava de pensar na história da rapadura. Era a rapadura que ele mais gostava. Seu doce preferido e difícil de conseguir ele deu para nós, sem medida e sem sonegar. Um gesto de muita generosidade. O fato dava a exata medida de toda aquela alegria cheia e vibrante que estávamos sentindo. Pensando  hoje, a expressão adequada para isso seria : fomos "incluídos".

E assim, dá para perceber que a "inclusão", se quisermos usar essa palavra, tem sempre um outro lado, em geral não percebido, pois é uma relação. E isso difere de anexação. De outra forma, poderíamos dizer, também, que só há inclusão quando há essa entrega, essa generosidade. Essa troca, no sentido de reciprocidade. A "inclusão" só é verdadeiramente inclusão quando as pessoas são sujeitos, crescem e se transformam, nos dois lados da relação.

 

05 de fevereiro de 2004

 

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda - www.veronicammiranda.com.br

* Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

A FALA - www.cepac-ce.com.br 

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