ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

É necessário mudar!

Raul Patricio Gastelo Acuña*

   Conversando com um trabalhador autônomo, com oficio de encanador, pedreiro, eletricista e marceneiro, ele me dizia que havia sido assaltado e tinham roubado sua bicicleta.  Roubaram também as ferramentas de trabalho? Perguntei para ele. Não, respondeu, os bandidos só estavam interessados na bicicleta. Como assim? Ante minha tamanha demonstração de ignorância, me disse calma e pausadamente, em tom de professor para aluno burro: “Atualmente o melhor negócio para ladrão é roubar bicicleta e cigarros. Para os ladrões não há quase perigo e esses produtos são vendidos rapidamente por um bom preço. Eu não posso me defender do roubo da bicicleta e não posso deixar de andar de bicicleta, pois a passagem tá cara demais. Aqueles quiosques pequenos que vendem jornais, só vendem cigarros por unidade, não vendem mais por maço por causa dos assaltos”. Para um trabalhador, perder a bicicleta significa enorme prejuízo. Não perde somente o dinheiro que representa o preço da bicicleta. Perde também, no caso de ser autônomo, parte da freguesia, e no caso de ser assalariado, gasta parte significativa do salário em transporte.

Um olhar nas estatísticas oficiais confirma a situação em que se encontram os trabalhadores. Salários que diminuem a cada ano seu valor real, desemprego crescente e ausência ou precariedade de serviços públicos básicos tais como saneamento básico, água de qualidade, saúde que permita o atendimento rápido e eficiente dos doentes e que modifique radicalmente essa visão dantesca dos hospitais públicos, educação de qualidade em todos os níveis, transporte barato e acessível a todas as camadas sociais, moradias populares e dignas e não barracos que desmoronam diante de qualquer aguaceiro continuam infernizando a vida da maioria da população.

   As grandes conquistas apregoadas pelo governo e cuja aprovação daria início ao “espetáculo de crescimento” não foram além de ajustes fiscais e burocráticos, que cercearam direitos adquiridos e mantiveram a indecente tributação sobre o consumo. A reforma tributária e a reforma da previdência que deveriam atenuar a escandalosa concentração de renda do país não foram além de tímidas medidas orientadas a “sanear” as contas do tesouro nacional e ter dinheiro para garantir o pagamento de juros aos credores nacionais e internacionais.

 Sem dúvida desde 1973 o país só teve políticas sociais e econômicas orientadas a garantir a taxa de lucro dos grandes empresários – financeiros, industriais, agrários e comerciais – e oferecer condições paradisíacas aos agiotas financeiros internacionais. É santa ingenuidade culpar esses agiotas pelas desgraças e vicissitudes econômicas do país. Eles procuram o lucro, seu dinheiro deve ser aplicado para gerar mais dinheiro e se multiplicar ad infinitum. Que as economias de alguns países sejam destruídas levando milhares de pessoas ao desemprego, à fome e ao desespero, como aconteceu com a Argentina, não causa nenhum remorso aos piratas do capital financeiro.  Os responsáveis dos desmandos desses modernos corsários são a burguesia financeira local e os grandes capitalistas associados ao capital financeiro que tomaram conta dos sucessivos governos que levaram o país à bancarrota a partir de fins da década de 1970.

 É compreensível, e a maioria dos eleitores do atual Presidente entende, que em um ano é impossível que o governo do Presidente Lula mude um quadro secular de iniqüidades acumuladas. Só mentes desvairadas exigiriam que o governo eleito em 2002 resolvesse em pouco mais de um ano todos os problemas sociais e econômicos acumulados durante séculos, tais como desemprego, escandalosa concentração de renda, miséria cada vez mais elevada da maioria dos trabalhadores, grilagem das terras indígenas,  expulsão do campo de milhões de pequenos produtores rurais, desnutrição, saúde, educação e todos os problemas imagináveis e por imaginar dos quais é vitima a maioria da população. Esse quadro social que está chegando aos limites da tolerância é o produto de sucessivos modelos econômicos que beneficiaram os grandes capitalistas, fossem estes nacionais ou internacionalizados, através da exportação de trabalho não pago dos trabalhadores brasileiros. Foi porque o povo estava nesse limite e porque ansiava recuperar sua dignidade lesada e atropelada no dia-a-dia que votou pela dignidade, pela esperança e por dias melhores. Os eleitores brasileiros votaram por mudanças e votaram majoritariamente para a efetivação dessas mudanças. 

 É por isso que leva a espanto que este governo - que foi eleito com quase 62 milhões de votos porque prometeu que o país ia mudar, de que a esperança tinha vencido o medo, ou melhor dito, que suas significações, seus horizontes, sua política, sua gestão, seu estilo de fazer política, suas alianças e compromissos políticos, sua postura diante do capital financeiro internacional e nacional seriam diferentes - seja semelhante à dos governos anteriores, cujas gestões levaram o país à falência social, econômica, política e moral.

Alguns defensores das políticas econômicas do atual governo, mostrando sua ausência de originalidade recorrem aos fantasmas de sempre e a argumentos repetidos até o cansaço, de que o governo vive ameaçado pela forças do mal e que se fizesse qualquer reforma mais avançada teria sua derrocada no ato. Bobagens! Essas explicações não passam de bobagens para enganar a incautos. Ninguém pede ao governo, com exceção de alguns setores, que instale já um governo socialista e revolucionário.

Mas, precisamos reconhecer, que quando o FMI, o Banco Mundial, os donos dos bancos nacionais e estrangeiros, os grandes capitalistas industriais e agrários batem palmas pela política econômica do governo é que há algo profundamente errado. Errado não para os interesses do grande capital. Errado para os interesses populares. E o povo pede tão pouco. Pede que parte do seu trabalho, única fonte que cria valor e que com a natureza são as únicas fontes originárias da riqueza volte às suas mãos sob a forma de políticas geradoras de emprego, de políticas que diminuam a escandalosa concentração de renda e que aumente o valor real dos indecentes salários da grande maioria dos trabalhadores brasileiros. E exige que parte do que é pago com impostos - o trabalhador paga 42% de seu salário em impostos e contribuições sociais - melhore essas casas dos horrores que são os hospitais públicos, essa educação que forma analfabetos com título e deslanche políticas efetivas e massivas de moradia, saneamento básico, água e energia. Que implemente uma reforma agrária massiva que até agora não existe. E que resolva de uma vez e definitivamente o problema dos povos indígenas, devolvendo a eles as terras que sempre lhes pertenceram e que os grileiros apoiados pelo aparelho do Estado usurparam e continuam usurpando.

 Os trabalhadores desempregados não querem fome zero nem políticas assistencialistas eternamente. Querem somente se apropriar de parte da riqueza que eles criam. E é tão simples fazer isso. O governo não precisa para a consecução desses objetivos fazer uso de nenhum malabarismo espetacular: basta baixar os juros a taxas civilizadas e mandar para aquele lugar o superávit fiscal. A inflação brasileira não é de demanda, ou seja, não acontece porque há muita gente com muito dinheiro querendo comprar muitas coisas. È simplesmente porque parte substancial da riqueza gerada se evapora em juros de agiota e em lucros fantásticos para os donos do capital.

 Só quem é cego não vê, mas o governo está perdendo aceleradamente sua credibilidade e sua base de apoio popular. Daí a necessidade urgente de mudar o conjunto de suas políticas. Não é só a política econômica que está errada, sem nenhum embasamento teórico, sem imaginação e com uma mesmice na prática e no discurso que causa espanto. A política econômica se reduz a subir ou baixar as taxas de juros, a operar no mercado de títulos e a diminuir os investimentos e gastos correntes do governo para aumentar o superávit fiscal. Também não existem políticas verdadeiramente sociais.  Não podem existir políticas sociais quando não existem políticas geradoras de emprego e distribuição de renda.

  Chamar o Fome Zero e a outras políticas similares de políticas sociais é pensar que os trabalhadores não têm dignidade pessoal. Os trabalhadores têm dignidade pessoal e confiança em si mesmos. Dizer como disse o Presidente que os juros estão altos porque o país havia perdido a credibilidade com os investidores internacionais e que essa ausência de credibilidade gerava inflação não corresponde à realidade. A inflação tem origens muito mais complexas que a ausência ou permanência de capitais especulativos.

 Contrariamente ao que afirma o Presidente, esses capitais especulativos voláteis contribuem, em grande medida a acirrar o processo inflacionário e não a freá-lo. O capital especulativo internacional e nacional investe no país quando as taxas de juros são atraentes e tem garantias de que não receberá nenhum calote do governo, ou seja, moratória. E as taxas de juros que oferece o governo são mais que atraentes, são escandalosas, são de 16.5% ao ano, enquanto as taxas de juros que oferece o governo norte-americano a quem compra títulos do governo é de 1% ao ano. As taxas brasileiras são as maiores taxas de juros do mundo. A espiral inflacionária aumenta com as taxas de juros que paga o governo, a menos que para manter baixos os índices de inflação o governo diminua ainda mais a capacidade aquisitiva dos trabalhadores o que se consegue mantendo baixos os salários, e que diminuam também as atividades produtivas, que é o que faz o governo e com isso gera mais desemprego. Situação que apesar das declarações contrárias parece não preocupar à equipe econômica, porque quanto mais trabalhadores desempregados houver haverá menos consumo e portanto menos inflação.

  E de onde sai o dinheiro para pagar os juros? Do total arrecadado pela União que são basicamente impostos e contribuições sociais extraídas dos trabalhadores o governo destina parte cada vez maior para pagar os juros e para isso tem que cortar despesas em outros setores. E onde corta? Em educação, pesquisa, saúde, estradas, energia, transporte, moradia, saneamento, água encanada e seguridade social. E o mais importante corta estímulos econômicos, que poderiam atuar através de juros subsidiados à empresa nacional e aos pequenos produtores familiares do campo e da cidade.  E sem dúvida, investimentos maciços nesses setores gerariam mais emprego e renda e, assim, o Fome Zero e o bolsa família seriam realmente programas emergenciais e por curto espaço de tempo, pois seriam substituídos pelo auxílio desemprego.

Uma sociedade que se orgulha de programas como o Fome Zero é sem dúvida uma sociedade caridosa, partindo do pressuposto que não é aceitável e nem é civilizado que em um país como o nosso que produz tanta riqueza haja pessoas que morrem de fome. Mas, por outro lado é indecente e contrário à dignidade humana, que neste rico país haja milhões de pessoas que vivam da “caridade” estatal e privada, quando não foi nenhum cataclismo da natureza que os colocou em situação de miséria.

  Retomando nosso fio de análise, está fora de dúvida de que é a taxa de juros sustentada pelo Banco Central que leva ao capital financeiro internacional e nacional a comprar títulos do governo. No mundo do capital são os lucros o motor dinâmico do mesmo e isso é especialmente válido se tratando do capital financeiro. Este tipo de capital é o dinheiro que se valoriza a si mesmo sem que seja necessário seu investimento em alguma atividade produtiva. Por isso os investidores estrangeiros nunca deixarão de investir e os especuladores financeiros nunca deixarão de comprar títulos se o governo oferece taxas escandalosas de lucro. Investimentos no Brasil e juros de títulos emitidos pelo governo brasileiro são negócios lucrativos, certos e líquidos. E enquanto o governo garantir lucros exorbitantes esses capitais continuarão aparecendo. Portanto, é bom esclarecer que a credibilidade do país não guarda relação com os fluxos do capital estrangeiro e sim com os juros oferecidos e as garantias de que esses juros serão pagos.

 Atribuir à inflação a falta de credibilidade do governo diante do grande capital e suas instituições financeiras como FMI e Banco Mundial é por parte do Presidente e sua equipe econômica uma postura analítica original e insólita, mas completamente errada e que não sustentaria nenhum aprendiz de economia. Não podemos nunca deixar de esquecer que os exorbitantes lucros que recebe o capital nacional e internacional são lucros pagos com o trabalho não pago e com a miséria dos trabalhadores do país.

 Assim, se não houver mudanças na política do governo meu amigo pedreiro continuará a pé, o dono do quiosque não venderá mais maços de cigarro, e nós continuaremos com o medo aumentando. E não porque o Presidente está fazendo o que prometeu, senão porque está fazendo o que não prometeu.

 

20 de Março  de 2004

 

* Raul Patricio Gastelo Acuña, sociólogo e membro licenciado do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará - CEPAC

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