ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

 O Bloco dos  Escravos ou Crônica de uma Escravidão Anunciada

Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Em plena Quaresma, na cultura ocidental cristã, e os blocos de carnaval ainda ecoam na cabeça. Algo para ser dito que não sai da memória. Nos dias de carnaval, indo ao supermercado de uma grande rede onde costumo comprar brinquei com um dos funcionários já meu conhecido: E aí, não vão formar um bloco de carnaval? Ele me respondeu: Só se for o bloco dos escravos. Logicamente ele se referia à própria situação dos trabalhadores que como ele não tinham folga de carnaval, não estavam ganhando extra por trabalhar no feriado e em horários nem sempre apropriados, e não podiam reclamar e nem fazer cara feia, pois do outro lado da porta o exército de reserva estava à espera de uma pequena vaga, que fosse.

Eis o resultado de décadas de lutas pelos direitos dos trabalhadores, e eis também o resultado de décadas de políticas econômicas neo-liberais no Brasil, onde a situação do trabalhador é cada vez mais frágil e seus direitos cada vez mais desrespeitados. A crise do neo-liberalismo que ora grassa no mundo poderia supor uma oportunidade rara para os "países dependentes" e os sub-empregados e sub-trabalhadores desses países se colocarem em um patamar mais humano e mais digno. Com a eleição de Lula, como legítimo representante da classe trabalhadora, pela trajetória política e plataforma eleitoral, via-se com esperança, aqui e nos vários países da América Latina, uma brecha política, pela qual poder-se-iam pleitear melhores condições de trabalho e vida para os trabalhadores, para a maioria da população, e fazer uma luta conjunta e respaldada institucionalmente, para a consecução desses objetivos.

Mas, já passou bastante tempo, e a política econômica encetada até agora e anunciada até agora no Brasil, continua nas ações e decisões, acumulações e perdas, neo-liberal. Não preciso colocar aqui, já que os números oficiais, as estatísticas econômicas, as análises de respeitados estudiosos e especialistas no assunto dizem nos jornais e em revistas do gênero, que a concentração de renda aumentou no último ano. Os 10% mais ricos estão mais ricos, os 10% mais pobres estão mais pobres. Do outro lado do caixa do supermercado - aquele que não dá folga no feriado para os funcionários, nem paga hora extra por isso - estão os consumidores, em sua grande maioria pagando para viver no futuro. E isto quer dizer, o consumidor das camadas médias indo para os de mais baixa renda, para resolver o problema de ter o que comer e sobreviver paga com cheques pré-datados e outros artifícios financeiros, obviamente com juros, e assim, respira aliviado, jogando a conta ou a bomba para o futuro. Da mesma forma como fizeram os governos de nossos países latino-americanos e "dependentes", jogando a dívida para o futuro. E agora é a vez do capitalismo financeiro entrar na intimidade de todas as vidas, de todas as camadas sociais, das mesas, e de todas as esferas,onde pululam os agiotas legalizados, porque têm crédito fácil e barato, segundo os criadores de tais mecanismos. De sorte que você pode tirar crédito para tudo e assim vai se endividando até a medula, mas respira aliviado porque não tem emprego, não tem renda, mas tem crédito e pode ainda que ilusoriamente sobreviver. E isso é o capitalismo no seu esforço máximo de sobrevivência. Vai nos sugando até a medula.

Sobrevivemos para o futuro, na caderneta de agiotas legalizados. Mesmo sem empregos, sem direitos? Mas não dá para ter coração leve, pois isso é uma forma de aprisionamento no coração do sistema e do coração das vidas. Não é possível nos alçar à condição de verdadeiramente humanos tendo que sobreviver de esmolas, ou de dívidas para o futuro. Na tentativa de sobrevivência, o capitalismo, em sua terrível racionalidade de monstro, já mostrada e demonstrada pelos estudiosos do sistema, fará de tudo e preservará somente uns poucos, muito poucos. Isto não é terrorismo, apenas a crônica de uma escravidão anunciada.

Mas, temos que lembrar que, para tudo sempre existe uma saída, e ela tem que ser buscada e procurada. Mas, temos que lembrar que, o capitalismo é histórico, e apesar da autonomia e racionalidade que adquiriu, é nas mãos dos trabalhadores que ele se reproduz, ainda que as máquinas os queiram substituir por completo. Somos nós, seres humanos a caminho,os responsáveis pela construção de uma nova ordem. E em todos os representantes políticos da população, nesta conjuntura, pesa uma Espada de Dâmocles - suas omissões diante do muito que podem fazer poderá nos levar, brasileiros e latino-americanos a situações irreversíveis, e à escravidão quase que permanente dessas populações no século XXI.

É hora de fazer o que se tem que fazer, para se dar um freio na situação atual e se encaminhar para uma política econômica que nos resgate finalmente como brasileiros não escravagistas. É essa a conjuntura da luta por um não à ALCA,  pela defesa dos direitos dos trabalhadores, pela defesa da Reforma Agrária massiva, pelas mudanças na política econômica, por uma democracia mais participativa, por nossa afirmação como nação, pelo reforço aos movimentos sociais e sua autonomia, que serão cada vez mais necessários. Para reparar dignamente a escravidão, e nosso passado, vamos precisar perceber que a escravidão dos trabalhadores não é somente aquela das fazendas e fazendeiros que ainda não permitem os trabalhadores irem e virem, e os tornam dependentes da "dívida do barracão". A escravidão, com mecanismos modernos, não mais os de quatrocentos anos atrás, nos espreita e é hora de não condenarmos o nosso futuro e mais uma vez levar à escravidão a maioria dos brasileiros. Somos descendentes de escravos, e isso pesa em nossa história. E disso temos que tirar lições.

Algumas frações da burguesia brasileira ou não, afirmam que o momento de mudar já passou, agora só tem riscos. Riscos para quem, ou para o que? Essa é a pergunta chave. A maioria da população brasileira já vive o risco, o perigo, a fome, o endividamento e uma provável escravidão futura. A crise no sentido grego é a oportunidade de crescimento. O caos é a possibilidade de toda geração e criação de algo novo.E isso só pode ser feito com o esvaziamento de velhas estruturas que não servem mais à maioria da população. De fato nós já vivemos a crise, de forma brasileira, e só podemos recuperar o sentido grego disso se fizermos algo para aproveitar a oportunidade e mudar de rumo. E poderemos vir a ter o caos. O perigoso é que se não for feita nenhuma mudança ele pode ser um caos brasileiro mesmo, e em vez de criação e geração de algo novo poderemos ter escravidão.

Se me perguntassem qual entre duas alternativas eu preferiria - a escravidão ou o caos - eu me colocaria no sentido grego e sem pestanejar responderia: o caos. Neste nosso caso brasileiro e no sentido grego, o caos, ou a quebra de dadas estruturas é a única via realmente certa, se queremos continuar humanos e dignos.

Como já dizia Nietzsche "é preciso ter ainda caos dentro de si para poder dar à luz uma estrela bailarina."

 

18 de março de 2004

 

Texto publicado também em Artesanias - de Verônica Miranda - www.veronicammiranda.com.br

* Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

A FALA - www.cepac-ce.com.br 

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