ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

Na América Latina “caldo de galinha” e um grão de paranóia nunca estão

demais

Raul Patricio Gastelo Acuña*

   

Agora que baixou a poeira podemos refletir com mais tranqüilidade sobre a crise desencadeada pela reportagem de primeira página do New York Times, o Times como é conhecido nos Estados Unidos, em que o autor da reportagem, o correspondente desse jornal em Brasília, através de fontes mais que duvidosas descreveu o que denominou, nas entrelinhas, de   "excessos etílicos" do Presidente Lula. Recorrendo à velha técnica de colocar depoimentos tirados de contexto e reproduzindo antigas e  inocentes fotos com lendas aparentemente inocentes, por exemplo,  Lula  bebendo cachaça em passeata de sindicatos, o jornalista montou um quadro insidioso cujo recado subliminar era muito claro: "O Presidente do Brasil é alcoólatra". É difícil que em algum país do planeta, e muito menos na América Latina e no Brasil,  presidente alcoólatra permaneça mais de 24 horas no cargo.

Lembremos que no início da década de sessenta do século passado o presidente do Equador Julio Arosemena na sua visita a Chile desceu completamente embriagado do avião presidencial. O Presidente de Chile ao ver seu colega bêbado como um saco considerou esse fato profundamente ofensivo à dignidade e respeito que merecia Chile. Sem sequer esboçar a intenção de cumprimentar o seu colega presidencial, que não tinha nenhuma condição de retribuir o cumprimento, deu meia volta e foi embora. Os assessores do Presidente Arosemena o colocaram de volta no avião e voltaram ao Equador. Quando chegou a Quito uma Junta Militar já formada,   comunicou ao Presidente que era um ex-presidente - em apenas 3 horas do ocorrido, recorde aparentemente histórico do continente - pois, tinha envergonhado o país diante do mundo. Até agora ninguém compreendeu como nenhum assessor do Presidente impediu que este descesse bêbado do avião, na sua chegada a Chile.  

 Então, a pergunta de fundo é: o  jornalista do  Times é assim tão inocente e na sua puritana candura não pensou que esse artigo poderia provocar graves problemas institucionais? Pensamos que um jornalista com 14 anos como correspondente no Brasil e 5 anos de Times - os ingênuos não duram muito tempo numa das  matrizes ideológicas, de salvaguarda e reprodução do sistema, mais importantes dos Estados Unidos -  não é tão ingênuo  como ele quis fazer acreditar. Muitos jornalistas acreditaram,  esses sim, ingênuos  de pai e mãe, na candura e inocência do jornalista do Times. Ingênuo, com 14 anos no continente como correspondente do Times e outros jornais norte-americanos?

Essa reportagem se soma a uma série de outros fatos aparentemente inocentes que são simultaneamente advertências e ao mesmo tempo as primeiras jogadas de xadrez no complexo jogo de desestabilizações nas quais os governos dos Estados Unidos ao longo da história tem mostrado sua maestria e sua completa falta de respeito à livre autodeterminação dos povos.

O Governo Lula representa um perigo latente no imaginário do governo norte-americano, se considerarmos que já foram destituídos ou houve várias tentativas no passado de destituir alguns presidentes brasileiros que não comungavam irrestritamente com o catecismo imperial. Se alguém pensa que já passou o tempo do Grande Garrote ou do Big Stick como filosofia e ética política norteadora das relações internacionais dos Estados Unidos com os países ao Sul do Rio Grande está profundamente enganado. Cuba é um exemplo permanente dessa política. Mais recentemente as intervenções do Departamento de Estado Norte-Americano na política interna do Equador, Bolívia e Peru ilustram com clareza que o Big Stick, intervenção dura e decidida na política interna dos países do quintal traseiro dos donos da América, como chama crua e abertamente nossos países o Financial Times, será utilizada sem nenhum remorso ético diante de qualquer ameaça à hegemonia irrestrita dos Estados Unidos da América no seu "quintal".

 Sem ir muito longe, há poucos meses atrás, os fuzileiros navais norte-americanos pegaram ainda de pijama e chinelos o Presidente do Haiti Jean Baptiste Aristide, o colocaram em avião da Força Aérea norte-americana e o levaram para fora do país. A imprensa livre do Haiti publicou que o Presidente Aristide tinha renunciado. Dias depois do fato, na sua primeira conferência de imprensa,  o Presidente do Haiti declarou que não tinha renunciado coisa nenhuma. Tinha sido seqüestrado na calada da noite pelos marines. Para legitimar a ação do governo dos Estados Unidos,o Brasil mandará tropas para garantir a democracia e pacificar o país, e a policia chilena que é a mesma da ditadura pinochetista treinará a polícia haitiana na difícil arte da manutenção da democracia na América Latina. É a democracia do big stick. Não é o pau nem o cassetete. É o garrote, que é o pau curto com que antigamente se apertava a corda que estrangulava os condenados.

Esses avisos começaram com as fitas gravadas, entregues à Revista Época, do Grupo Globo,  pelo Sr. Carlos Augusto Ramos, conhecido como Carlinhos Cachoeira, empresário de casas lotéricas, mais de um ano depois de gravadas,  em que consta a tentativa de extorsão que foi vítima por parte do Sr. Waldomiro Diniz. Em 2002, Lula ainda não era Presidente e José Dirceu não era Ministro da Casa Civil e o Sr. Diniz tinha sido assessor parlamentar de José Dirceu e morado no seu apartamento. Em 2002 o Sr. Diniz era Presidente das Loterias de Rio de Janeiro (Loterj) nomeado pelo Governador Garotinho que possivelmente nem conhecia o personagem. Em 2004 o Sr. Diniz é sub-chefe de Assuntos Parlamentares da Casa Civil e não é sub-chefe da Casa Civil como erroneamente divulgou a grande imprensa. Um pequeno e grande equívoco cometido inocentemente. Não é estranho que essa fita seja dada a conhecer 2 anos depois e quase imediatamente depois do fracasso da cúpula que ia implementar a ALCA (Associação de Livre Comércio das Américas)? Qual a responsabilidade de José Dirceu por atos cometidos pelo seu assessor dois anos antes? Mas, por que atingir José Dirceu?

Atingindo José Dirceu se bate em pleno Partido dos Trabalhadores e no coração do Governo Lula sem que aparentemente esteja se realizando nenhuma ação  desestabilizadora contra o Presidente. E aí está o significado perverso de toda a celeuma em torno do Sr. Diniz. Sem atacar o Presidente, já que naquele mês o Presidente tinha altos índices de apoio da população e era inatacável,  foi habilmente criada a maior crise política do Governo Lula pelo ato realizado por pessoa que não tem nenhum poder de decisão política no governo Lula, dois anos antes de que este assumisse a Presidência da República. Nem a fita foi gravada inocentemente, nem foi entregue ou vendida à Revista Época inocentemente e nem foram dadas a conhecer as gravações da fita dois anos depois de forma inocente. Nenhum desses fatos é casual. Imediatamente surge uma outra questão: Por que agentes da Policia Federal seguiam o Sr. Carlos Augusto Ramos e o Sr. Waldomiro Diniz e gravaram a reunião que mantiveram no Aeroporto de Brasília? Quem ordenou a gravação e por ordem de quem a Policia Federal separou e guardou essa fita? Outro fato estranho: o Sr. Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira é tão poderoso que avisa à Policia Federal que grave um encontro dele com o Sr. Diniz que nessa época era inocente cidadão? E por que pessoa tão importante como o Sub-Procurador Chefe da República Sr. José Roberto Santoro, na madrugada, sub-reptícia e sigilosamente, longe dos holofotes, pressiona  Carlinhos Cachoerira para que entregue as fitas originais. Por que o Sr. Santoro não solicitou essas fitas legalmente tendo amplos poderes para isso? Não será por que essas fitas têm algum conteúdo explosivo que ainda não é conhecido pela sociedade civil? Somente interrogações que nos fazem pensar que o alvo dessas ações não era o Ministro Chefe da Casa Civil. Era o próprio Presidente. Somente interrogações que mostram que nenhuma dessas ações foi produto do acaso ou da ingenuidade do Sr. Dirceu.

A segunda jogada importante na montagem da desestabilização ou para forçar a entrega incondicional do governo Lula aos interesses norte-americanos foi a reportagem do Times. Lembremos que a direção do jornal nem se retratou, nem demitiu o jornalista. Isso significa que os Diretores do New York Times consideram que as afirmações do jornalista são verídicas e corretas ou não pode demitir o jornalista, pois este atuou conforme um plano preconcebido e ordenado pela direção do jornal. Não há outra explicação. Nenhum jornal do planeta mantém nos seus quadros jornalista capaz de cometer tamanha barbeiragem, atacar sem fundamentos a dignidade do Presidente do Brasil, a menos que tenha recebido ordens. Qual a solução do jornal? Num gesto de arrogância imperial, próprio de quem defende os interesses das classes dominantes norte-americanas no seu conjunto, um de seus intelectuais  orgânico mais poderoso, convida o Presidente Lula a conversar na sede do jornal em Nova York. Ou seja, a Direção do Jornal se sente superior ao Presidente do Brasil. E se ele se sente superior é porque tem poderosos fundamentos para assumir essa postura.

É essa mistura de ingenuidade e barbárie na consecução dos seus objetivos, que nunca foram muito santos, que faz parte da cultura política norte-americana e, que está magistralmente descrita por Graham Greene no seu romance O Americano Tranquilo, o que marca a prática política internacional dos Estados Unidos. Tudo é válido para sustentar seus interesse econômicos e geopolíticos. O americano do romance é puro, ingênuo, amante e admirador fanático da democracia e dos valores culturais dos Estados Unidos. Para defender seus valores democráticos é agente da CIA na guerra do Vietnam. Como agente sua missão é entregar explosivos plásticos aos generais que apóiam irrestritamente os Estados Unidos  para que realizem ações terroristas no meio da população civil. Na sua ingênua pureza ou alienação pensa que assim a democracia e os valores norte-americanos ajudaram a derrotar o comunismo. Que na empreitada das bombas plásticas  morram crianças e civis inocentes é para ele o preço da democracia e por isso não tem nenhum remorso de consciência.

Atualmente, mesmo que o Presidente Lula diga e repita que é Lulinha Paz e Amor, que não tem nenhuma intenção subversiva e que demonstre, como está demonstrando, que seu governo não tem a menor intenção de quebrar ou arranhar o atual sistema político do Brasil o problema para a política imperial é outro. Lembremos que o Presidente Allende da Unidade Popular do Chile foi o único Presidente assassinado e deposto por ter tentado implementar um governo inspirado em Marx, isto é, por motivos  ideológicos A maioria dos Presidentes constitucionais eleitos, que foram poucos, ou das centenas de caudilhos, generais e sargentos da América Latina colocados no poder com a anuência e beneplácito dos Estados Unidos, e posteriormente  depostos ou seqüestrados, mostram que os golpes de estado orquestrados pelo Departamento de Estado e avalizados pelas canhoneiras e os marines tem outras razões diferentes das ideológicas. Esses Presidentes e/ou Generais foram depostos por contrariar interesses econômicos, que não guardavam relação com nenhuma preocupação pela democracia do continente.

A proposta do Governo Lula de formar um bloco econômico alternativo ao Mercado Comum  Europeu e à ALCA e que esteja integrado pelos países do MERCOSUL, Índia, China, África do Sul e Rússia é completamente inaceitável para os Estados Unidos. Como disse o Financial Times,  que algo dessa natureza aconteça no "quintal traseiro" dos Estados Unidos é simplesmente inaceitável e difícil de acreditar. O bloco econômico perseguido pelo governo Lula redefiniria radicalmente os rumos da globalização e as relações dos blocos dominantes com os países que conformariam o novo bloco de poder. A população que integraria esse bloco seria de aproximadamente 3 bilhões de habitantes, com recursos humanos e de tecnologia, ciência e pesquisa que em prazo não muito longo comprometeriam o poder quase onímodo e a dominação militar irrestrita dos Estados Unidos no planeta.

Não se trata, por parte dos Estados Unidos, como antigamente, de combater um sistema político e econômico alternativo ao capitalismo, como as antigas propostas comunistas. Trata-se de combater, no nascedouro, uma proposta capitalista ou no limite de capitalismo de Estado, no caso da China, potencialmente perigosa ao poderio norte-americano global. E bote perigo nisso.

A análise precedente é a única explicação racional com algum sentido  que permitiria compreender os diversos incidentes relatados, aparentemente produto do acaso e da casualidade, e que abalaram de alguma forma ainda não captada socialmente a legitimidade do Governo Lula. 

Mas, em política nada é produto do acaso. Por isso, caldo de galinha e um grão de paranóia são necessários para nunca perder de vista os reais interesses  imperiais.  Essa posição é imprescindível para situar e poder compreender esses fatos na análise da conjuntura política atual no Brasil. As tentativas desestabilizadoras são as primeiras advertências e não guardam nenhuma relação com algum temor de que o Presidente Lula por um passe de mágica vire comunista ou reformista radical ou que os movimentos sociais se alastrem país afora. O único objetivo do Império é preservar sua dominação global e para isso utilizará as armas tradicionais e aquelas que não são tão tradicionais.

 

29 de maio  de 2004

 

* Raul Patricio Gastelo Acuña, sociólogo e membro licenciado do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará - CEPAC

A FALA - www.cepac-ce.com.br 

Espaço Virtual do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará-CEPAC

Todos os Direitos Reservados