ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

Verde que te quero vermelho 

Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Nos últimos três meses do corrente ano temos assistido ao incremento das lutas e do movimento social pela terra, seja rural ou urbana. São os índios, os sem-terra, os sem-teto e os pequenos agricultores. Ainda que sejam expressão das insatisfações com o não cumprimento das metas e propostas de campanha do governo ora em curso, essas lutas representam algo mais fundo que é decorrente do modelo de desenvolvimento do país, já encetado em administração passada e que se repete neste governo, com riscos de um aprofundamento, medonho para grande parte da população sem terra, sem moradia e sem emprego.

Vivemos uma conjuntura extremamente delicada e perigosa onde a vida corre riscos. Sabemos - quem estudou minimamente o bê-á-bá da renda da terra - que a terra não tem valor, quem gera valor é o trabalho humano. A terra, como a natureza, é necessária ao ser humano e finita, se dela não cuidarmos. Somos, já dentro de uma visão ecológica, partes da terra. Compomos com  ela um organismo vivo. Pelo processo de industrialização, com o trabalho humano, sabemos que o sistema e os proprietários dos meios de produção podem gerar valor e lucro e criar quantas indústrias quiserem e o sistema permitir. A complexidade do sistema capitalista hoje é bem maior que isso. Mas, isso é simples e básico para entendermos a dominação da natureza pela tecnologia ou tecnificação da agricultura, e as garras de um sistema gerador de lucros e concentrador de riquezas, irracional na sua racionalidade, que é o sistema capitalista. 

A tecnologia cria condições para aumentar a produtividade na agricultura, aumentar a renda de quem tem a propriedade da terra, mas ela não cria terra, não cria  natureza. Esta e a terra são obras da criação. Não conseguimos criar um planeta terra, não conseguimos criar água natural e cachoeiras. O ser humano já começou a criar clones, mas não o original. Já começou a decifrar códigos genéticos e alterar códigos genéticos de plantas, mas não criou os códigos genéticos. As matas nativas, se as devastamos, podemos quiçá replantá-las, mas serão apenas matas secundárias. Como a terra é finita, e não podemos criá-la, à medida que me aproprio de grandes quantidades de terra, estou, dentro de uma ética planetária, ferindo o direito de uma quantidade de pessoas que não têm direito a elas porque não puderam adquiri-las por pagamento. O mesmo já começa a acontecer em relação à água. Fonte de vida a que nem todos têm direito e acesso fácil.

Mas, o pagamento pela terra e a propriedade da terra são criações humanas e históricas, feitas a outros seres humanos e não à natureza, e que podem ser modificadas a qualquer momento em benefício de todos. As mudanças de sistemas econômicos e políticos podem ocorrer, não são dados imutáveis. E em alguns casos as mudanças são imprescindíveis para a preservação da vida. Não falo de processos individuais, mas quando os processos coletivos tomam de forma inexorável uma direção fatal e mortífera das populações.

 Quando em uma parte do planeta, da divisão do planeta, como o Brasil, uma grande parte da população que precisa de terra para trabalhar e sobreviver não tem essa terra porque foi apropriada por poucos, e isso os torna pessoas acampadas em várias partes do país, sem condições de sobrevivência, enquanto a maioria dos produtos da agricultura tecnificada é exportada, para lucro de uma minoria e para equilibrar a balança de pagamento do governo, mesmo tendo uma grande quantidade de pessoas que passa fome, no campo e nas cidades, podemos dizer que há um problema ético nesse país. Quando grande parte dos indígenas brasileiros lutam de uma forma política jamais vista para não terem suas reservas invadidas por mineradoras, pela preservação das terras, com as quais têm uma ligação vital e para territorializarem aqueles que a perderam, pois sem a ligação vital com a terra eles morrem e são aos poucos exterminados, percebemos que o desequilíbrio é grande e a vida corre perigo aí.

A situação se complica se colocamos tudo isso na atual conjuntura mundial, onde o modelo de desenvolvimento de países como o Brasil e sua inserção na economia global será decisivo para o futuro de sua população, para a vida de sua população neste século. Estamos falando da possibilidade de extermínio ou de escravidão em massa. Esses processos aqui serão coletivos, pois o desequilíbrio é muito grande, e daí a urgência.

Não por acaso o verde é associado à agricultura, à natureza, à clorofila, seiva que dá vida. A viriditas.Todos os que trabalham a terra e lidam diretamente com a terra, com a natureza, entendem o que significa essa vitalidade. Mas os grandes donos de terras no Brasil, hoje, lidam com terras através de um computador. Seus trabalhadores são grandes máquinas cada vez mais sofisticadas, que dão cabo do trabalho em grandes extensões de terra, com uma grande produtividade, sem precisarem se preocupar com as questões trabalhistas e com problemas humanos. São aviões que passam longe pulverizando as plantações, com agrotóxicos cada vez mais condenáveis para a saúde, mas que aumentam a produtividade e dão lucro. Usam sementes transgênicas que aumentam a produção e dão resultados desconhecidos nos organismos de quem as consomem. Esse modelo de agricultura não é verde é cinza. Ele não gera vida, gera lucro, divisas, equilíbrio de balança de pagamento - para quem e para que? É o que deve ser perguntado.

Enquanto isso, internamente consumimos produtos que uma pequena produção camponesa, apesar de toda falta de incentivo, ainda produz. A produção camponesa é extremamente importante na alimentação dos brasileiros e na geração de empregos. Mas apesar disso e das evidências, a pequena produção camponesa nunca teve o lugar devido dentro do plano de desenvolvimento econômico do país. E para ter esse lugar é imprescindível uma Reforma Agrária massiva. Sem uma Reforma Agrária massiva e uma reestruturação agrária, como a que vários países tiveram, e por isso também podem ter um nível de desenvolvimento na agricultura sem os grandes desequilíbrios daqui, não conseguiremos resolver essa situação. Na estrutura agrária atualmente existente no Brasil, por ser concentrada, o desenvolvimento das forças produtivas na agricultura visando o agro-negócio traz por um lado a geração e concentração de riqueza para uma minoria, e por outro lado o alargamento do abismo da miséria. Dessa forma, a médio e longo prazo esse tipo de agricultura será perniciosa para todos, inclusive para o agro-negócio.

As teses, que infelizmente nortearam os governos passados e parece que também o atual são os de que a Reforma Agrária é algo complementar para gerar empregos para os deserdados da política de modernização conservadora, para diminuir a miséria, gerando alguma renda  para as populações marginais, expulsas do campo, não interessando se essa renda é agrícola ou conseguida  através de um pesque-pague. Trata-se de dar algum emprego e minimizar a miséria. Em artigo publicado em 2001, um dos assessores do atual governo federal, José Graziano da Silva, em artigo intitulado - Ainda precisamos de Reforma Agrária no Brasil?(1) - colocava:

A reforma agrária, nesse início do século 21, não precisa mais exibir um caráter estritamente agrícola, pois os problemas fundamentais da produção e dos preços podem ser resolvidos pelos complexos agroindustriais já existentes no país. O problema da fome, que afeta milhões de brasileiros, não se deve à insuficiência da produção agrícola, mas à falta de dinheiro para comprar comida. A reforma agrária é necessária hoje para ajudar a equacionar a questão do excedente populacional do país, até que seja completada a ‘transição demográfica’ recém-iniciada.

 

Uma reforma agrária que permitisse combinar atividades agrícolas e não-agrícolas teria ainda a grande vantagem de precisar de menos terra, o que poderia baratear de modo significativo o custo por família assentada. Esse custo é uma forte limitação para a massividade requerida pelo processo distributivo, especialmente nos estados do Sul e do Sudeste. Por que não um assentamento que, além de arroz e feijão, produzisse também casas populares? Ou um ‘pesque-pague’ que desse uma opção de lazer barato às nossas classes médias baixas, confinadas nas grandes metrópoles? Ou guardas ecológicos que protegessem o entorno de parques e reservas florestais e servissem de guias turísticos? Ou caseiros de ‘chácaras de recreio’, com acesso gratuito às terras garantido por regime de comodato?

 

No fundo, trata-se de encontrar novas formas de ocupação para essa população de ex-parceiros, ex-meeiros, ex-bóias-frias, ex-pequenos produtores rurais, marginalizados pela modernização conservadora das décadas passadas. Trata-se de buscar, nas franjas do crescimento da ‘prestação de serviços pessoais’ típica do mundo atual, um conjunto de novas ocupações artesanais que não exijam níveis de qualificação além daqueles que possa ser adquiridos em um treinamento rápido, para atender a esse conjunto de milhões de ‘sem-sem’: ou seja, aqueles que não têm nem  acesso à terra, nem o privilégio de estarem organizados no Movimento dos Sem-Terra ou outro qualquer.  

 

Desprende-se do texto, como do próprio título do texto que a Reforma Agrária não é mais necessária, ou que a Reforma Agrária e a pequena produção não responderia mais pela produção de alimentos, já que a agricultura dos complexos agro-industriais produz quantidades de alimentos necessários à população. A pergunta óbvia é: Por que apesar dessa auto-suficiência na produção de alimentos dos complexos agro-industriais a maioria da população brasileira passa fome? E por que o Brasil tem que importar produtos básicos da alimentação, quando a pequena produção que abastece internamente o país, por falta de incentivo e de reorganização estrutural não consegue responder às necessidades do mercado interno? E aí começamos entender que na terrível racionalidade do sistema, o que se produz nos complexos agro-industriais é para exportação, porque lá fora no mercado internacional os produtores terão melhores preços, o que interessa aos proprietários de terra e comerciantes que exportam e ao governo, que mantém uma política econômica da qual a agricultura exportadora garante o equilíbrio de sua balança de pagamentos e outros trocados. Dessa forma, parece que a pequena produção camponesa continua necessária ao país e por suposto a Reforma Agrária também.

 

Ora, no que se refere aos "sem-sem", como o autor denomina os expropriados de terra, e seguindo a linha do seu raciocínio, poder-se-ia perguntar:Que importância tem se eles forem expropriados violentamente, perderem suas moradias, sua relação vital com a terra e natureza, suas referências? Que diferença tem deixar de ser pequeno agricultor para ser engraxate em uma cidadezinha qualquer? Se eles conseguem um empreguinho qualquer já sai da miséria total e assim o sistema econômico e político pode continuar, sem incomodar classes dominantes e governos que se sucedem, e aos intelectuais orgânicos da burguesia e sistema. Mas, esse tipo de considerações, que bem poderia caber no raciocínio acima descrito e estar embutida nesse tipo de análise, não levam em conta, além da violência da proposição, que isso gera um tipo de sistema quase de casta, porque ela barra qualquer possibilidade do ser humano "sem-sem" conseguir  um lugar ao sol nesta sociedade. Ele jamais poderá melhorar suas condições de vida. Terá uma subvida no que diz respeito à sobrevivência, sempre próxima à mendicidade.

 

Esse e outros artigos que encerram essa visão, através de estudos técnicos, já citados por José de Sousa Martins no livro Reforma Agrária: O impossível diálogo, perpassa desde o governo passado as políticas voltadas para a pequena produção camponesa e Planos de Reforma Agrária. Tratando da Reforma Agrária como uma reforma estrutural, que já é considerada necessária e reivindicada por vários setores da sociedade, o autor questiona a abordagem do tema nos autores citados abaixo:

 

Portanto, até mesmo a grave anomalia de uma massa de miseráveis vivendo em condições sub-humanas não compromete o desenvolvimento capitalista. A exclusão se tornou ao mesmo tempo uma anormalidade social. Mesmo assim, sobretudo entre técnicos, há quem fale numa espécie de auxílio estatal à pobreza que dispensaria a reforma agrária, custosa, e asseguraria a sobrevivência dos pobres em condições mínimas sem necessidade de pagar o custo de grandes transformações econômicas e sociais, como a reforma agrária (2).

 

E na citação dos textos a que se reporta agrega:

 

  É o que nos diz o influente Francisco Graziano, que foi presidente do INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária: “...nada comprova que dar um pedaço de terra para essas pessoas marginalizadas seja a única , nem a melhor solução, do ponto de vista do interesse público. Talvez um bom emprego seja preferível ao assentamento. Ou então, tratá-las com mecanismos de política social, assistindo-as devidamente, garantindo-lhes alimentação e saúde.” (Cf. Francisco Graziano, Qual Reforma Agrária?, São Paulo, Geração Editorial, 1996, p.19 (cf., também, Francisco Graziano Neto, “A (Difícil) Interpretação da Realidade Agrária”, em Benício Viero Schmidt, Danilo Nolasco C. Marinho e Sueli L. Couto Rosa (Orgs). Os assentamentos de Reforma Agrária no Brasil, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1998, p.168). Graziano se esquece, como é comum entre os que se preocupam com a questão social do campo de um ponto de vista econômico, que a luta pela terra, da qual deriva a luta pela Reforma Agrária, é também uma luta pela inclusão, pela inserção social ativa, produtiva, participante e criativa, na sociedade; é luta por dignidade e respeito e não por aquilo que na consciência popular é tido como esmola. (3)

 

Uma das características centrais do sistema capitalista, todos os que o estudam sabem disso, é o movimento de acumulação e concentração de riquezas. Essa é sua dinâmica que vai se transformando historicamente, apropriando-se das várias formas de economias, sociedades e culturas, e passando por várias crises, nas quais ele se reestrutura. O desenvolvimento das forças produtivas longe de levar à distribuição das riquezas, as concentra, entre grupos econômicos, regiões do planeta e classes sociais. As áreas ou regiões, para falar geopoliticamente, onde as forças produtivas capitalistas são mais desenvolvidas, onde os grupos econômicos são mais fortes e hegemônicos, se apropriam dessa concentração. No momento atual há uma crise generalizada do sistema, há uma disputa hegemônica e uma re-configuração geopolítica mundial. Essa re-configuração terá conseqüências profundas para países como o Brasil, daí se entender a importância de toda a articulação e luta feita através da formação de blocos econômicos e geopolíticos dos vários países periféricos, desde que os pressupostos desse mesmo sistema tenha internamente a modificação de estruturas perversas, como é a estrutura agrária brasileira. Nenhum país chegou à condição de se impor economicamente, nas relações comerciais, sem ter feito mudanças estruturais. Alguém esqueceu da tremenda revolução agrária que teve a China, para chegar ao que ela é hoje, apontada como uma grande parceira comercial da burguesia brasileira atual? 

 

  Estarmos entregues ao desenvolvimento do capitalismo, sem nenhuma política e estratégia para bloquear ou superar seus efeitos perversos internamente, é ter um Estado completamente entregue aos ditames de um sistema que beneficia somente à pequena parcela que o ajuda a se reproduzir, acumular e a superar as suas crises conjunturais. A crise conjuntural do capitalismo, atualmente, na sua mundialização é terrível, e no seu esforço de sobrevivência afetará de forma coletiva e principalmente os países de economia mais fraca e que não tiverem feitas as suas reformas estruturais básicas. Sociedades em profundo desequilíbrio como o Brasil, ao preferir não fazer as reformas estruturais, como a Reforma  Agrária, não conseguirá através de programas assistenciais solucionar a miséria e a iniqüidade.

 

Ao primeiro artigo supracitado subjaz o conceito de que a agricultura brasileira deve acompanhar o desenvolvimento capitalista, como se este fosse um dado imutável, livre, sem representantes de seus interesses e que se desenvolvesse à revelia dos seres humanos. Uma economia demiúrgica, onde o Estado, suas políticas econômicas ou as políticas públicas não respondessem a interesses de classes ou grupos econômicos e políticos. A idéia de que o capitalismo, em suas várias faces é completamente autônomo, e de que o Estado e as classes sociais que o compõem ou deveriam compor nada podem fazer diante do seu desenvolvimento e suas mazelas, confere-lhe um poder divino, que ele de fato não tem, porque é histórico. O capitalismo não existiu sempre e pode ser mudado e ter os seus efeitos perversos minorados através das ações políticas dos seres humanos. Mas para isso é necessário que o Estado Brasileiro que se diz democrático possa se abrir para a participação e discussão dos vários projetos de desenvolvimento das classes que o compõem ou que deveriam compô-lo.

 

 No Brasil há várias visões do que deva ser perseguido como um projeto de desenvolvimento para o país neste século. É a vida da maioria da população que está em jogo. É a possibilidade de que nessa sociedade haja extermínio da população em massa, ou a transformação de vários segmentos da população em quase castas de escravos. A população através de suas expressões políticas coletivas, das mais variadas formas, tem que lutar por outras alternativas de desenvolvimento. A reestruturação do Estado Brasileiro é vital nesse processo. O estabelecimento de um trabalho de rede dentro de uma nova concepção de economia e relações de  trabalho, como a economia solidária, é também muito importante. 

 

Pertencer ao movimento sem-terra, sem-teto, de pequenos agricultores e outros movimentos ligados à terra não é somente um privilégio, como diz José Graziano da Silva no artigo citado,  mas é uma necessidade vital para grande parte da população, e a via mais certa para não se tornarem em futuro breve uma casta de escravos.

 

E daí dá para entender porque o verde, o verdadeiro verde em nosso país, a partir de Abril teve que se tornar vermelho. Não há um Abril Vermelho e um Maio Verde, como disseram na mídia, contrapondo movimentos sociais pela terra a latifundiários e agro-negócio. Há somente um verde, daqueles que têm uma relação vital com a terra e que se torna vermelho. O vermelho também é vida em toda sua pujança, em sangue e fogo. É rubedo, vida quando ela se faz mais necessária que nunca. É luta pela vida, de garras afiadas.Verde que te quero vermelho, pois é a vida que está em questão.

 

 

1 - Silva, José Graziano da - Ainda precisamos de Reforma Agrária no Brasil?- Revista Ciência Hoje, SBPC/São Paulo, vol 27 no.170, pp.81-83 abril de 2001.

 2 - Martins, José de Souza – Reforma Agrária: O Impossível Diálogo –  Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000 – p. 91.

 3 - Id. Ibidem. p. 92 

 

28 de junho de 2004

Texto publicado também em Artesanias - de Verônica Miranda - www.veronicammiranda.com.br

* Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

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