ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

E os direitos?

Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

 

Ainda sob o impacto e repercussão do assassinato da missionária Dorothy Stang, brasileiros e também não brasileiros tentam explicar e tecer considerações sobre o fato, que trouxe perplexidade à toda sociedade. De fato, mais um assassinato na escalada de violência dos que lutam, no Brasil, por modificações no campo, contra as grandes desigualdades sociais e pelos direitos humanos e ecológicos.Tivemos oportunidade de rememorar Chico Mendes diante da amplitude de objetivos e trabalho de um e de outro, tivemos oportunidade de mexer com as chagas brasileiras, abertas e não curadas, do autoritarismo, da desigualdade, da impunidade e da falta de direitos que perpassam a nossa sociedade em todos os níveis. Que o sacrifício de Dorothy Stang e dos outros mortos que lhe antecederam e que lhe sucederam por um Brasil mais justo e um planeta melhor de se viver, não se perca na pouca memória brasileira dos direitos e das lutas.

Não falarei de Brasil Profundo, expressão já tão desgastada para explicar qualquer coisa na atual conjuntura brasileira.O Brasil realmente profundo só poderá emergir, de fato, com a ruptura de certas estruturas que permanecem ainda, face aos acordos políticos espúrios e a direção tomada seja na economia, nas políticas sociais e na perpetuação de um Estado de estruturas já podres, mas persistentes. O Brasil Profundo que aparece sem as rupturas necessárias são o espectro, o folclore e a ilusão do ufanismo populista e político, o deixar-se entrever mas não acontecer.O que ocorreu com Dorothy Stang e outros trabalhadores brasileiros assassinados mostra-nos a face extrema da violação dos direitos dos cidadãos que ocorre amiúde e cotidianamente no Brasil. Os que mataram Dorothy Stang acreditam na impunidade, na lei do mais forte, em um país em que as leis existem para não serem cumpridas. Acreditam também que a vida de um cidadão ou cidadã não vale nada. Vale dizer que não temos pena de morte, mas também não necessitamos. A pena de morte no Brasil já foi estabelecida à margem da lei, e por incrível que pareça tem quem a justifique quando justifica assassinatos hediondos como esse. Em jornal, um fazendeiro afirmou que a missionária era a culpada de sua própria morte por fazer agitação política.

O direito de fazer política, e as ações para reclamar os direitos são garantidos na constituição do país e deveriam ter seu cumprimento velado, pelo poder judiciário e aparatos do Estado responsáveis. Alguém que reclame seus direitos de cidadão e exerça seus direitos políticos de qualquer ordem não pode perder a vida por isso. Outro fato que chama a atenção é a importância que foi dada ao fato de Dorothy Stang ser americana de nascimento, pois era naturalizada brasileira, além de ser missionária. Missionários são pessoas que se colocam além das fronteiras de um  país, sua missão é sempre com o ser humano, está além de fronteiras político-administrativas. E na luta pelos direitos de muitos brasileiros deles despojados e pelas questões ecológicas da amazônia revelou ser mais brasileira do que muitos brasileiros que têm poder e legitimidade para resolver grande parte desses problemas e se omitem. A mídia brasileira estará se tornando xenófoba?

 

Chama a atenção ainda, o fato da ameaça de assassinato da missionária ter sido denunciada várias vezes, inclusive com carta ao Ministério da Justiça, de próprio punho dela, e de nenhuma providência ter sido tomada. Ao ser abordado sobre essa questão o Secretário Nacional de Direitos Humanos defendeu-se dizendo que não imaginava que os pistoleiros e madeireiros da amazônia fossem tão longe em seus propósitos. Fica a pergunta:Por que os governos brasileiros são tão ingênuos e tão descansados quando se trata da vida de trabalhadores e cidadãos sem poder econômico? Por que os pistoleiros não fariam isso, se os relatórios de direitos humanos elaborados pela CPT e outras entidades dão conta de uma grande quantidade de trabalhadores e religiosos ligados ao movimento social pela terra que foram assassinados dessa mesma forma, recebendo ameaças, e ainda há uma lista de outros ameaçados de morte?

 

 Voltamos ao velho círculo vicioso. Percebemos que o velho Estado Brasileiro continua comungando com as engrenagens podres, sustentadas desde séculos e corroídas cada vez mais pelos cupins. E já que as metáforas são prezadas no mundo político brasileiro de agora é bom lembrarmos que o cupim não alimenta, come somente. Ao não quererem modificar o Estado por conveniências políticas, pessoais e de qualquer outra ordem, e romper com estruturas que não servem a sociedade brasileira, ele será roído por dentro, e da pior forma. A perda da representatividade do único partido que ainda tinha crédito da população - o PT (Partido dos Trabalhadores) - dá-nos a dimensão do esvaziamento da representação política porque passa o país em nível nacional. O Estado não foi modificado, nem iniciada sua transformação. Em vez disso foram aparadas as arestas, costurados e cerzidos os buracos, encobertas "as madeiras podres com focos de cupins", afastado deles e neutralizados o "perigo" das contestações dos movimentos sociais que lhe poderiam dar cabo, e foi abortada assim também a possibilidade da criação real de um espaço público, um espaço de diálogo.

 

A estrutura política partidária brasileira não tem mais representatividade e nem crédito.A perda de vitalidade na política nacional, no que diz respeito ao Estado e a representação política partidária é notória. Agora chegamos ao ponto de nenhuma exceção. Ao deixar de encerrar um sentido que se concretizaria em mudanças efetivas para o país, a política partidária e as ações do governo tornam-se aos olhos dos cidadãos, antes militantes e confiantes nestas propostas, em  política simplesmente eleitoreira. As exceções existentes, como a própria palavra diz são somente exceções. E coloca os movimentos sociais, antes engajados em partidos políticos como o PT, em busca de outros canais políticos e de expressão. A solução deverá ser encontrada pelos movimentos sociais, mas não poderão mais aceitar ser braços, extensões ou correia de transmissão de partidos e governos.

 

O neo-liberalismo tem o raro pendor de transformar a oposição esquerda-direita, em nada, ou seja, em tudo que sirva a seus propósitos. O discurso de direita  torna-se o mesmo da esquerda, a prática política, essa não interessa, torna-se somente a necessária para o seu sustento.O sistema almeja a alienação política que é compatível com a programação econômica perversa e que sirva à boca grande do mercado e às necessidades de acumulação do ainda centro motor do capitalismo. As reformas são reformas que despolitizam os cidadãos. Nos mandamentos do neo-liberalismo todo o excesso será cortado (o excesso geralmente são programas sociais) e apesar de se admitir as necessidades, não haverá recursos nunca para elas. Regra número 1: enxugamento e cortes.Tudo aquilo que não alimentar o sistema e os cupins das podres engrenagens do Estado será excluído. Entre tudo, e no que diz respeito aos cidadãos, estão sendo cortados os nossos mais lídimos direitos.

 

01 de março de 2005

Texto publicado também em Artesanias - de Verônica Miranda - www.veronicammiranda.com.br

* Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

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