ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

Do conhecimento e da ação: algo para aprender com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Ainda me lembro de um professor de filosofia que tive nos primeiros anos de universidade. Brilhante e cioso de suas aulas e matérias. E no esforço de colocar a filosofia como algo importante e diferenciador do senso comum, que ajudaria as pessoas a pensar, disse em um momento de discussão que alguém que permanecesse muito tempo convivendo com pessoas que não liam e não estudavam diminuiria sua capacidade intelectual e de pensar. Aquela idéia não me atravessou bem o estômago, muito menos o fígado, e depois por um tempo a considerei pouco filosófica e até um tanto behaviorista. Muito tempo depois soube que ele havia mudado de idéia. Assessorando comunidades parece que passou a perceber que ali havia saberes que ele ainda não havia considerado. Ele, um filósofo brilhante, descobriu também que tinha o que aprender com pessoas iletradas. Nessa época minha idéia também já era outra sobre a questão, pois já descobrira que não somente alguém iletrado ou pouco letrado podia ter o que ensinar a alguém como também podia ser um filósofo.

Descobri isso entrevistando um trabalhador rural, e depois tive oportunidade de confirmar minhas suspeitas em vários outros contatos e reuniões com ele. Membro da diretoria de um sindicato rural, quando relatava os fatos sobre um conflito de terras que eu pesquisava, ele colocava a questão de vários ângulos: a perspectiva do proprietário, as várias perspectivas dos trabalhadores, os problemas da fazenda, e as soluções possíveis e imagináveis. De um ponto morto, inatingível, mas que mesmo assim não faltava paixão ele analisava toda a questão. Comecei a ficar impressionada e fascinada por aquela atitude. Mudei de assunto e passamos a conversar sobre sua própria situação. Morador de uma fazenda, com vários irmãos e suas famílias, estava prestes a ser expulso da terra. A cerca da fazenda, uma benfeitoria dele e de sua família, começou a adquirir um significado especial na conversa. E percebi que na sua atitude filosófica aquela cerca era o ponto focal de um problema e de soluções inimagináveis, mas jamais somente um dado comum e empírico - uma cerca feita de paus e que delimitava um terreno.

E à medida que íamos conversando eu percebia que ele poderia perfeitamente decifrar o mito da caverna de Platão, realizar muitos exercícios filosóficos e de pensamento abstrato. Mas não faria isso pois estudou muito pouco, não tinha como continuar os estudos e não atinava, com certeza, que era um filósofo. Continuou filosofando provavelmente pela vida afora, e eu muitas vezes diante de algumas situações da vida tenho dito "como diria o filósofo fulano", e então me vem aquela frase lúcida e esclarecedora.

Essa atitude que todos nós necessitaríamos ter, atitudes de filósofo, como também a atitude criativa, de artista, infelizmente não são preocupações das escolas atuais. E não por acaso isso ocorre, o humanismo não é mais uma preocupação da sociedade moderna. Pensar filosoficamente e criativamente também não é tão importante. A preocupação maior ainda é com a especialização. A sociedade capitalista científico-tecnológica necessita disso. Questionar isso pois, é questionar pela raiz o seu próprio modelo e o sistema em que ela se baseia. Uma das características centrais da sociedade capitalista, já estudada há um bom tempo por André Gorz é a divisão entre o trabalho manual e intelectual. Além dessa divisão ter significado uma fissura da sociedade entre homens e mulheres, ricos e pobres ( para não falar em classes sociais) ela tem levado a uma alienação do próprio indivíduo, como pessoa. Em uma sociedade onde o tempo é cada vez mais veloz, marcado por um ritmo quase frenético das máquinas, e as atividades mais especializadas, os indivíduos tendem a ser mais focados e a consciência mais unilateralizada. Daí se gerar a falsa idéia de que alguns setores da sociedade são detentores do conhecimento, como a universidade, por exemplo, que lida com um saber intelectual.

A universidade tem alguns conhecimentos necessários à sociedade, mas não tem outros. Em sua focalização necessária ao desenvolvimento das atividades intelectuais a universidade acaba muitas vezes transformando-se em um fim em si mesma, enredada em um círculo vicioso. E na divisão da sociedade onde a maioria não tem condições de ler e nem dinheiro e tempo para usufruir desse conhecimento a universidade produz para ela mesma. Sim, é verdade, há um conhecimento para formar pessoas para a sociedade. Mas não esqueçamos que ao romper os nexos na divisão social do trabalho e diminuir o contato com um mundo da "ação" esse conhecimento passa a ser extremamente filtrado e coberto por véus e daí pode se tornar também um conhecimento preconceituoso.

A reinclusão de um intelectual acadêmico na sociedade, fora do estrito mundo universitário, não deveria, então, carregar a idéia de que somente ele vai levar conhecimento à sociedade, mas sobretudo a de que vai também aprender. Não diria mais nem trocar, já que se parte do pressuposto que a troca ocorre entre pares, mas pelo menos partir do dado de que a fissura do conhecimento afeta os dois lados e deforma: há de um lado filósofos verdadeiros que não puderam desenvolver suas potencialidades por falta de estudo e oportunidades, e há por outro lado filósofos de academia que escrevem laudas e laudas falando de Platão, Aristóteles, Habermas, e jamais terão uma atitude filosófica. Aqui estão consideradas devidamente todas as honrosas exceções. Assim também ocorre nas muitas outras áreas das ciências. As ciências físicas ou humanas não são a solução para todos os problemas da sociedade e cultura. Há conhecimentos que só se podem adquirir através da vivência e experiência, dentre eles os que encerram as muitas atividades manuais que não são o foco da universidade. E há saberes incalculáveis, que podem ser percebidos quando se tem uma visão mais ampla da sociedade e da cultura, e se estabelece com elas relações de inclusão e não ao contrário.

E é por isso que eu aplaudo a experiência do MST- Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Partindo no dia 1º de Maio de Goiânia em uma extensa caminhada até Brasília, contando com cerca de 12.000 participantes - a maior marcha que já fizeram - é um movimento justamente reivindicatório que reúne conhecimentos de todos os tipos.

A proposta do MST, que além de ser reivindicatória e de pressão popular, é também pedagógica e educativa se reflete na forma da Marcha. Ali haverá vários cursos para os produtores que ao voltar da jornada terão adquirido conhecimentos para suas próprias atividades. A ela aderiram artistas, outras entidades da sociedade civil, religiosos, intelectuais. Não foi excluída nem a mídia - há uma rádio, mas que serve aos objetivos do próprio movimento.

Como já definiram, o MST por sua proposta político-educativa é um movimento de incubação e gestação, onde são geradas propostas diferentes de produção, educação e cultura. Ali intelectuais dão sua contribuição e aprendem. A educação voltada para as finalidades do movimento é integradora em vários sentidos. Os participantes do movimento também vão à universidade e trabalham nas atividades do movimento. Uma universidade foi criada pelo próprio MST. Nada é excluído, nem o trabalho manual, nem o intelectual, nem os cientistas, nem os religiosos, nem os artistas e outros setores urbanos da sociedade. Os saberes são trocados e complementados. Trabalhadores são lideranças, mulheres são lideranças e as crianças partícipes das atividades. As relações são mais horizontais e mais inclusivas. Dessa forma, o MST representa também uma nova proposta de conhecimento, sem fissuras, e uma nova forma de fazer política.

O MST e sua marcha é, portanto, um movimento que tem força, um movimento para a sociedade brasileira apoiar e se mirar. Alguém pode perguntar: É perfeito? E eu responderia: Não. Mas por suas propostas e práticas é dos mais inteiros e inclusivos movimentos políticos que já tivemos.

 

03 de maio de 2005

Texto publicado também em Artesanias - de Verônica Miranda - www.veronicammiranda.com.br

* Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

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