ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

Drogas e violência urbana

Raul Patricio Gastelo Acuña*

Se há algum consenso social entre os brasileiros de todas as camadas sociais e de todas as idades é que a violência que assola o país chegou a limites intoleráveis e coloca em questão um direito inalienável da cidadania: o direito de ir e vir livremente a qualquer lugar e a qualquer hora nos espaços públicos. Esse direito, no clima de violência que tomou conta das grandes cidades é letra morta. Nós, os cidadãos, não temos o direito de circular com tranqüilidade. E se não temos esse direito fundamental não podemos falar de democracia.  

O Presidente Lula com muita coragem colocou o dedo na ferida. A violência é consubstancial ao crime organizado em grande escala, ele disse. É uma multinacional com elos nacionais e internacionais e se sustenta na ação conjunta de bandidos e setores podres da policia, do poder judiciário, dos políticos e de grandes barões do crime que moram em coberturas da Avenida Atlântica. O Presidente teve a coragem de dizer em alto e bom som o que todas as pessoas que combatem o crime e vastos setores da cidadania já sabiam ou intuíam.

O raciocínio é simples: Podem entrar no país toneladas de drogas e centenas de armas modernas e sofisticadas, munição para essas armas, granadas e mesmo bazucas pelos aeroportos e fronteiras sem apoio de pessoas poderosas? É impossível que entrem pelos aeroportos sem o conluio de alguns policiais e fiscais alfandegários. No caso de entrar pelas vastas fronteiras do país, localizadas longe dos centros urbanos, como percorrem uma grande extensão territorial sem que nada aconteça? E pelos portos? Fosse 1 kg de cocaína, um pouco de haxixe, algumas pílulas de ectasy seria considerado normal. Porém, são cifras que assustam. Em 2002 foram apreendidas milhares de armas, toneladas de drogas e milhares de pílulas no país. Ninguém sabe a quantidade que entra ilegalmente. O certo é que é quantidade suficiente para abastecer o consumo interno e para exportar.

Então devemos concluir que o Presidente Lula está certo. Essa tremenda organização do crime organizado requer poder político, impunidade judicial e olho camarada da policia. Ou alguém acredita que Fernandinho Beira Mar ou o Elias Maluco, dois pés de chinelo, são os todo-poderosos do crime organizado? Se assim fosse era melhor fechar o país por falência de suas instituições. É fácil perceber que não têm estatura mental, personalidade, nem capital para comandar o crime organizado. Santa ingenuidade dos que acreditam nas versões oficiais. Os dois estão presos, sem comunicação e o crime no Rio e nas grandes cidades aumenta.

 Mas os criminosos para manter a organização funcionando têm que ter a confiança de todos os que participam no complexo processo de armazenamento e distribuição de drogas e armas e uma base social de apoio. E essa confiança só é obtida quando os integrantes da rede sabem que na eventualidade de serem presos ficaram rapidamente em liberdade, pois algum juiz da organização, que não é juiz, pois é funcionário do crime, ou alguma pessoa chamada erroneamente de político, que não é, pois é bandido, conseguira um “hábeas corpus” ou será processado em liberdade por bons antecedentes. A organização tomará todas as providências cabíveis para que não permaneça muito tempo preso. Além disso, o bandido sabe que a “organização” colocará advogados e dinheiro para alimentar a família. Estamos falando da rede e não dos “pés de chinelo” que estão nas bordas do crime organizado. Essa é a associação de espúrios interesses a que se referia o Presidente.

 Os bandidos conseguem apoio social através do amedrontamento e da “ação social” que realizam nos morros do Rio e das favelas de São Paulo e Vitória de Espírito Santo onde contam com o apoio explícito ou implícito de uma minoria dos seus habitantes ou com o “silêncio do medo” da maioria.

 Agora, como desfazer essa rede que conspira contra os mais elementares direitos da cidadania e que recruta nas bordas do crime organizado milhares de adolescentes e crianças que não têm o que comer e sua alternativa de sobrevivência é passar drogas? É óbvio que a fidelidade desses meninos e meninas é comprada viciando-os em drogas baratas ou porque o dinheiro que obtêm é a única fonte de renda para o sustento da família. Uma vez viciados entram no círculo infernal da droga e todas suas indignas seqüelas. Além disso, o crime organizado controla a droga, a prostituição, o jogo ilícito, cobra “proteção”, executa seqüestros e assaltos.  A droga é o sustentáculo de todas as modalidades do crime.

 Não adianta, como postulam algumas pessoas, dotar a polícia de mais equipamentos e logística, e criar a Guarda Municipal ou Nacional. Com isso recrudescerá a luta armada entre o crime organizado e a polícia com custos enormes e irreparáveis em vidas humanas –militares e civis – e o tesouro alocará e gastará recursos monetários que não tem em sofisticados presídios de segurança máxima, que não adianta muito, pois dois criminosos saíram a pé pela porta da frente desses presídios sem serem perturbados, salários de mais homens que deverão ser contratados para combater o crime e tomar conta dos presos, em carros e equipamentos sofisticados, só para mencionar as despesas mais importantes.  O pior é que essas medidas não vão ao cerne da questão, que é liquidar de vez com o consumo e difusão de drogas controlados pela multinacional do crime e, o mais grave, a violência passará cada vez mais a ser parte cotidiana de nossa sociabilidade. O país precisa desses recursos para alocá-los  para as 50 milhões de pessoas que passam fome, milhões de desempregados, milhões sem saúde, sem educação de qualidade e saneamento básico.

 Nessas circunstâncias é mais barato, mais humano e mais inteligente erradicar a fonte de lucro dos delinqüentes, isto é, legalizar o consumo de drogas seguindo o exemplo da Holanda. Com isso, ficam abaladas as outras modalidades do crime. 

A curiosidade, a moda e a neurose contemporânea levam muitas pessoas a experimentar drogas. Os com maior poder aquisitivo consomem coca, haxixe e ectasy, e os menos ricos se conformam com maconha. Para as meninas e meninos de rua, resta a mais infame das drogas, o crack. Dos consumidores de drogas dos altos e médios estratos sociais – os dos baixos estratos não têm dinheiro nem para comer – uma minoria estatisticamente comprovada se viciará em drogas. Ë uma porcentagem baixíssima dos marinheiros de primeira viagem que não conseguirá se livrar dos tentáculos da droga. Outra porcentagem, mais alta, que tem dinheiro para isso continuará consumindo ocasionalmente, socialmente, esse tipo de drogas. Não há dados confiáveis, mas o segmento que consome socialmente drogas  é possivelmente o maior consumidor de drogas e por isso a maior fonte de lucro do crime.

 A minoria que ficará viciada e os “consumidores sociais” constituem o maior problema. Os primeiros são aqueles que matam ou são mortos pelo vicio, são aqueles cujos familiares gastam fortunas em tratamento clínico e, se não tem dinheiro para comprar a droga ou para se tratar arruínam à família e entram nas bordas do crime organizado.  E os segundos continuarão alimentando e ampliando a riqueza monetária e a estrutura operacional do crime.

 A “legalização” acabaria com a ilegalidade do consumo de drogas e com a fonte de recursos da multinacional do crime. Poria fim às lutas diárias, surdas e sem quartel entre policiais honestos e desonestos, entre juizes e bandidos fantasiados com a toga e dignidade do cargo, entre políticos e aqueles que se valem da política para enriquecer ilicitamente. Atualmente, contrariando o que muitos acreditam, o maior, o mais profundo e o mais grave confronto ocorre nessas instâncias. A violência das ruas é o espelho dessa luta que mina progressivamente as bases do Estado e, aos poucos, destrói social e subjetivamente o monopólio legítimo da força em mãos do Estado, fazendo com que os cidadãos por falta de confiança na eficiência dos aparelhos de coerção estatal se armem e construam fortalezas privadas. Com isso, se forma um exército armado de seguranças privados, sem controle social e à margem do Estado.

 A legalização das drogas deveria ser feita com extremado cuidado. Não se trata de comprar e vender cocaína como se fossem tomates em qualquer quitanda da esquina. Fornecimento gratuito aos viciados que estariam obrigados a seguir tratamento supervisionado pelo Ministério da Saúde. Venda controlada pelo Ministério da Saúde a través de um cadastro com um máximo de compra por usuário. Ultrapassado o limite, tratamento. Conjuntamente, modificação drástica da legislação penal, especialmente no referente às penalidades de cúmplices e encobridores e do sistema de fianças. Essas são idéias gerais e pouco precisas que o diálogo cidadão deverá ir construindo.

  Sem dúvida, a “legalização” deveria ser decisão de toda a cidadania mediante referendum.  Esse é um tipo de decisão que não pode ficar entregue a poucas pessoas. É o delicado equilíbrio do tecido social o que está em jogo. A cidadania tem que enfrentar a “delinqüência” não com armas nem com violência, senão com inteligência e sabedoria. Por isso, para começar abramos o debate e o diálogo. Esta é a forma privilegiada de resolver os conflitos sociais de uma sociedade que se quer democrática.

 

*Raul Patricio Gastelo Acuña, sociólogo e membro licenciado do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará - CEPAC

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