ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

Perplexidade...Ou a luz no fim do túnel

Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Meu partido é um coração partido, cantaria novamente o cantor e compositor Cazuza se ainda estivesse entre nós. Suas músicas, entretanto, nos embalam nesses momentos de perplexidade política que vive o país. Tenho lido em comentários através da imprensa que um dos significados etimológicos da palavra corrupto é ter o coração rompido(cor=coração e ruptus=rompido). Mas ela significa também aquilo que apodreceu, se degradou, se adulterou. Ora, faz sentido perceber isso quando a palavra da ordem do dia, no país, é a corrupção.

Para quem pensa que a corrupção no Brasil começou agora está muito enganado. Em qualquer dos dois sentidos ela existe há muito tempo. Como já anunciaram, em várias análises de articulistas e pensadores, ela é sistêmica. Nos aparece sempre como golfadas em várias conjunturas na história política do país. Mas há algo novo na forma como ela ocorre agora. Porque ela ocorre em um processo ímpar que começou com a tentativa de resgate dos corações brasileiros, partidos há muito tempo, e que me faz enveredar para uma perspectiva de análise diferente. Talvez aqui caibam mais metáforas e traduções de símbolos.

O processo de eleição do Presidente Lula neste país foi algo completamente novo, que anunciava o novo e a quebra de velhas estruturas. Um processo que se iniciou com a criação de uma "alma coletiva", de um forte desejo de mudanças, e da recriação do que se entendia por nação brasileira. Os substratos psíquicos, os elementos culturais inconscientes "pulsavam" querendo sair de suas entranhas. E foram saindo, se desvelando. E pelo visto parecem não querer deixar "pedra sobre pedra". Ao não levar a "classe operária ao paraíso" e se desviar do curso das propostas de mudança, de sua plataforma política, o novo governo eleito se dispôs a dançar com o Dragão.

Ora, esse movimento que se iniciou há mais de dois anos atrás é muito maior do que todos nós juntos. Imersos nele ficou difícil de perceber que o dragão é poderoso, e encarnado em sua forma de Estado Brasileiro, com todas as suas estruturas velhas e podres, tinha um único objetivo - sugar tudo o que podia. Quem não fizesse o esforço heróico e não se identificasse com ele tornar-se-ia parte sua, e caminharia para a auto-destruição. Pois essa é a função do dragão quando ele aparece, completar o seu ciclo e se auto-devorar. E vai nos dizendo, tal qual a esfinge, decifra-me ou te devoro. E o problema é que não entendemos sua linguagem simbólica. Não é possível dançar com o dragão e não querer ser herói, pois não existem muitas alternativas. É necessário muita coragem, caso contrário, será destruído junto com ele.

Quando um processo anímico, dessa natureza, de algo novo, se inicia, dois movimentos contrários também se iniciam. Há algo que está destinado a morrer e algo destinado a nascer.Quanto mais se resiste à morte, mais duro será o processo, pois  ter-se-á que ir ao fundo, onde está a "escória". Ela virá à tona e será chamada de "Mar de Lama". Obviamente que o mar de lama não é composto  de pessoas más, enquanto as  boas pessoas representam o novo. Não, não é esse maniqueísmo, mas as pessoas são meras representantes e atuantes, como em um teatro. Compostas que são das mesmas matérias e espíritos atuarão no jogo dos poderes e se enredarão nas suas teias inconscientes. Mas na representação política acabarão indo de roldão, e terão que assumir suas responsabilidades, a menos que tomando consciência do processo tornem-se sujeitos e co-autores das mudanças.

O Brasil de Lula não é o Brasil de Collor. Não é um Brasil de caras pintadas.Os caras pintadas eram uma massa justamente revoltada com a corrupção e desmandos do país, que reclamava de forma imediatista e sem muita articulação. A sociedade civil hoje é articulada e sabe o que quer, e ainda que não devidamente valorizada em seu papel pelo Estado, continuou se articulando e se desenvolvendo na luta dos movimentos sociais. Vieram à boca de cena os indígenas, os Sem-Terra, os movimentos negros, das mulheres, dos sem-tetos, dos excluídos em nível regional e continental, dos intelectuais e dos religiosos, através de fóruns nacionais e globais, com consciência das necessidades de mudanças e com propostas para compor um Brasil diferente. Esse Brasil que continua a ser querido e perseguido. A sociedade civil do Brasil de hoje é outra, bem diferente da época do Governo Collor, e precisa ser considerada em sua realidade pelo governo atual antes de tomar atitudes suicidas.

A estrutura corrupta do Estado, nos dois sentidos enunciados aqui neste artigo, tende a continuar degenerando e salpicando lama em todos. As mulheres enlutadas que estão aparecendo na mídia, segundo dizem de luto pela morte da dignidade do país, devem ter mais consciência dos seus verdadeiros lutos. Estão de luto, sim, mas pela morte anunciada das velhas estruturas, neste verdadeiro encontro com a "escória brasileira".

De outro lado, enquanto essa velha estrutura se devora junto com os que a ela aderiram, surgem as possibilidades de um novo país.

Não sou uma pessoa irresponsável e tenho consciência da periculosidade do processo em que estamos imersos. E, no entanto, não consigo ter tanta apreensão, e de alguma forma estou até serena. Em meio à "lama" antiga  e descoberta, que salpica em todos, meus olhos estão voltados para uma luz, uma luz no fim do túnel, uma estrela que não é de partido, mas que é anunciadora de tempos novos. Há uma criança linda e sorridente que espera os braços estendidos de nós brasileiros, para vir de encontro ao nosso seio, sem medo de ser feliz. É com ela que temos todos de nos identificar neste momento e abrir-lhe nossos braços. Brasil, em nossas mãos está a mudança!

Termino com os Originais do Samba cantando canção de Ederaldo Gentil:

 

Ouro afunda no mar 
Madeira fica por cima, por cima 
Ostra nasce do lodo, do lodo 
Gerando pérola fina. 

 

16 de junho de 2005

Texto publicado também em Artesanias - de Verônica Miranda - www.veronicammiranda.com.br

* Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

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