ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

Responsabilidade Histórica

Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

 Há alguns dias atrás, lendo um artigo de um cientista social lúcido, me deparei com algumas colocações interessantes que ele fazia sobre a atual pobreza conceitual para analisar os processos de transformação que ocorrem na América Latina. No século XXI, diante de novos paradigmas e de fatos muito novos como o  "ressurgimento" da questão étnica como fato político, do "redescobrimento" da sociedade civil e do "reconhecimento" de Estados que não mais respondem aos problemas colocados pelas nações, ou pelas populações, os conceitos são insuficientes. Eu diria que o próprio conceito de nação está sendo revisitado e questionado, em conjunto com os movimentos identitários, como também estão em foco as novas expressões políticas na América Latina e no Brasil particularmente, para se aproximar de nosso caso.

Tenho insistido em artigos que fiz ao longo de 2003 e 2004 sobre a insuficiência e a perda de vitalidade política do Estado Brasileiro em suas várias instâncias causadas pela fissura existente entre Estado e povo. Um Estado que não tem representatividade real e que imbricado com um sistema econômico centralizador, ainda monopolista, media uma "democracia" extremamente defeituosa para os tempos atuais. Extremamente excludente, deixando de lado da cena política o que o país tem de melhor para compor. O Estado Brasileiro é cinza, sem vitalidade, por não representar verdadeiramente as forças sociais da nação que deveriam compô-lo. Sua espinha dorsal é "de segunda", assim como costela e ossobuco no mercado de carnes, como diriam os mais antigos. Apesar de muitos analistas e cientistas políticos encherem a boca, na mídia, com "instituições democráticas sólidas", o que ocorre na verdade é que as instituições democráticas brasileiras têm pés de barro. E isso dá para perceber claramente com a crise política que ocorre atualmente.

Muito embora a crise tenha tido um acompanhamento minucioso por parte da imprensa e mídia, pelo fato mesmo do motor da crise se encontrar em um partido de esquerda, pouco a pouco todos vão percebendo que aquilo que parecia um caso de corrupção é um verdadeiro pântano, que se descobre aos olhos estarrecidos da população. Não é a cúpula ou campo majoritário do PT somente, e para sermos justos, os corruptos da história são praticamente todos os partidos que estão envolvidos na atual corrupção. E a cada dia que passa vai se descobrindo braços e mais braços da tremenda capilaridade corruptora. O esquema corrupto com empresários, do qual ainda não foi dado a conhecer completamente à população - Faltam os corruptores. Onde será que eles estão?- já servia a outros partidos e governos anteriores, como o próprio PSDB.

O que assusta e deixa a população até um certo ponto desconsolada é a traição de um partido de esquerda, no qual foram depositadas esperanças por suas propostas de mudanças e pelo capital ético. Cair nessa esparrela em forma de caricatura. E é caricata e grosseira a forma de corrupção realizada por essa cúpula do PT,e daí o escárnio da população e da mídia, por destoar de sua verdade como proposta política, e creio que por destoar, também, da maior parte da militância. Militantes, muitos dos quais se sacrificaram e contribuíram com seus minguados recursos para ajudar a sustentar um partido pobre de esquerda. Mas, convenhamos que a corrupção do PT começou com a adulteração dos seus reais objetivos como proposta política. Um partido que diferentemente dos outros ainda encarnava vitalidade e representatividade quando chegou ao governo. O PT, com o desvio de curso das propostas políticas pelo governo de coalizão, foi dividido, amordaçado em suas bandeiras históricas, acovardado diante de um projeto político que não era o seu, nem dos eleitores que fizeram o partido e o presidente chegar ao governo. O PT começou a se comportar como qualquer outro partido e, em que pese a justiça que temos que fazer a alguns que continuaram batalhando, ainda pesa uma culpa nos que não se retiraram: continuaram dóceis diante de muitas diretivas do partido, que aos olhos das bases eram inaceitáveis. Não é difícil uma corrupção levar a outra. E o PT, assim, entrou para o rol dos partidos corruptos, como a maioria dos partidos desse sistema político, infelizmente.

Ainda é cedo, para nós da planície mais baixa, dizer quem desses políticos merece realmente confiança. O congresso nacional ou os que sobrarem, depois das CPIs e demais investigações, vão ter muito trabalho para recompor suas imagens de políticos éticos diante da população e eleitores, que estarão mais atentos e espertos depois dessa crise. A espinha dorsal que está sendo quebrada, não é portanto, da esquerda política, mas da política no país. O que está em questão é a forma de fazer política no país, a mudança necessária nas estruturas mentais, e o Estado Brasileiro, com uma estrutura viciada, clientelista e patrimonial, com sua constituição cheia de entulhos autoritários e que não responde ás necessidades da realidade atual brasileira, que se quer fazer democrática. A política econômica está em questão também pelos movimentos sociais, pois para quem quer separá-la do processo político isolando-a dessa "espinha dorsal" em questão está enganado. Ela é indissociável dessa estrutura política corruptora.

Mas, o que está em questão desde o início do governo Lula, diria mesmo da sua eleição, é a democratização do Estado e uma nova composição com forças políticas que precisavam ser reconhecidas e aceitas pela sociedade como um todo. Tratava-se de tirar do limbo a que foram submetidos os movimentos sociais, as expressões culturais, étnicas, regionais, em um novo conceito de nação resgatando um Estado real de direitos da população, direitos que foram sempre negados desde sua constituição. A conjuntura econômica e política mundial nos dá um alerta: População excluída, ou luta por seus direitos agora, ou será tarde demais! E isso é válido para toda nossa América Latina. É a vida que reclama.  A natureza faz a sua parte. E aqueles capazes de percebê-la sabem que ela está sendo dadivosa. Há um impulso político muito forte dos "filhos da terra", aqueles que se sentem a ela ligados umbilicalmente e que têm muito a nos ensinar. A terra geme, chora e até canta. O inconsciente coletivo revoluteia trazendo à tona magmas e magmas de um vulcão quase extinto, e sem saber como, e até perplexos, assistimos e assistiremos a várias mudanças.

Porém, não esqueçamos, a natureza é mãe mas precisamos urgentemente realizar nossas responsabilidades históricas. Falo isso com preocupação, depois de ouvir uma cientista política falar na mídia (o nome não interessa porque é a idéia que está em questão) que o Brasil não deveria ter qualquer presidente, pois o Estado moderno brasileiro tinha se tornado muito complexo e precisava de um presidente capaz de administrar esse Estado. Fiquei pensando nesse raciocínio, que com certeza não é ciência social, nem ciência nenhuma, e muito menos isento, pois é profundamente ideológico, e não está distante da estrutura mental da Casa Grande e Senzala. Ele é primo-irmão daquele que diz que o povo não sabe votar, instituído no tempo da Casa Grande e Senzala, bem sabemos com que objetivos. 

Neste raciocínio, nenhuma pessoa da maioria da população brasileira deveria se candidatar à presidência e também nem votar. Para que democracia, não é mesmo? É melhor uma ditadura com um general formado, ou quem sabe instituir um conselho de sábios para que se possa escolher os capazes de lidar com esse Estado Brasileiro tão complexo. Quem sabe o FMI, dentro desse raciocínio, não teria um quadro competente para ser presidente do Brasil e nesse caso evitaria todo o trabalho de eleições? Rá, rá, rá, seria cômico se não fosse trágico. Cientistas políticos do Brasil, por favor... Que um candidato das eleições presidenciais passadas, no desespero tenha utilizado o recurso da "competência" ainda se justifica. Mas, um aviso aos navegantes: a população não gostou do raciocínio e elegeu o que parecia menos competente e que não era doutor. E se você ainda perguntar hoje, à  maioria da população, sobre o escolhido vão dizer: ruim com ele, pior sem ele. O que fazemos, então? Exportamos o povo que não sabe votar?

Essa ironia é basicamente porque esse tipo de raciocínio é o que, como diria grande parte da população, "atravanca o progresso" e é ideológico, de raízes eurocentristas. Em toda a América Latina e principalmente entre as populações indígenas ele está sendo questionado, pois os governos não têm nada a ver com o povo e os trata como subgente, sem direitos. Desde o famoso "Descobrimento do Brasil" que esse raciocínio é usado.Primeiramente com os índios considerados incapazes, depois com os escravos considerados mercadorias, e agora com a maioria da população porque não tem educação suficiente para lidar com o "Estado complexo". Estranho é esse raciocínio primário e pouco antropológico continuar sendo usado por cientistas políticos.

O atual governo não é considerado incompetente, por exemplo, para o FMI, banqueiros internacionais e frações da burguesia brasileira que estão muito satisfeitos com a competência e opção política do Presidente & Cia. Sua política macroeconômica tem aumentado os lucros dessa burguesia de forma exponencial e pago além do que o FMI e banqueiros internacionais esperavam. Pois, para os cientistas políticos que não sabem, ainda não dá para ser competente para "dois senhores" ao mesmo tempo, no sistema em que vivemos. Há que se escolher e o Presidente fez uma opção política. Mas, se os legítimos representantes políticos da maioria da população não têm ainda consciência de classe e podem mudar, de repente, de opção política, a burguesia e o pessoal da Casa Grande têm. O coronel antigo das estruturas mentais que eles carregam é um elemento poderoso para eles na "luta de classes", luta esta que existe mesmo não se querendo reconhecê-la. Em contraposição, os representantes políticos da maioria da população carregam nas estruturas mentais um coronel antigo, que é seu inimigo interno, e que na hora H das decisões políticas importantes para o país o fazem trair seus princípios políticos mais preciosos, como também os da população que representam.

Ora, mas a burguesia não está de fato interessada neste presidente, mas nas benesses que ele lhe traz em detrimento do resto da população. Porém, depois de realizado o feito de aprofundar e consagrar o neoliberalismo e organizar o cenário econômico em seu favor, como  nenhum outro representante seu fez, é hora de pegar o "butim" e sangrar o inocente útil e os grupos e partidos de esquerda que podem atrapalhar seus planos. Eles gostam de representantes verdadeiros, mais confiáveis. Gostaria muito que todas essas questões pudessem se resolver com "paz e amor". Mas, na verdade o que está estabelecida é uma "guerra de classe", e o principal instrumento da maioria da população contra uma fração diminuta que manda e exclui é a consciência de classe e política. Os representantes legítimos da maioria da população têm que incinerar os coronéis de suas estruturas mentais e se reivindicarem como representantes verdadeiros do povo, com consciência política.

O que temos como responsabilidade histórica nesse momento que vive o país, e logo que a fogueira pare de arder e queimar os restos mortais políticos, é recriar a espinha dorsal da política brasileira, e iniciar a reformulação do Estado. Não é somente o PT ou a esquerda que têm que ser refundados, como alguns cronistas políticos andam badalando, mas todos os partidos e expressões políticas têm que reencontrar o seu lugar nessa arena política. Como já estão anunciando algumas pessoas, é necessária uma repactuação democrática. Mas é bom que se esclareça, repactuação democrática não é "acórdão" espúrio para evitar o processo político em curso. A repactuação aponta para a necessidade de uma Constituinte, composta pelas entidades da sociedade civil, que traga para o centro as novas forças sociais que compõem o país. Das pessoas decentes que ainda restam no Congresso Nacional e do Presidente do país ainda se espera um ato heróico com essa convocação, para que a sociedade civil articulada possa participar e se incorporar na nova estrutura política de um Brasil renascido.

05 de agosto de 2005

Texto publicado também em Artesanias - de Verônica Miranda - www.veronicammiranda.com.br

* Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

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