ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

 E a Secretaria dos Povos Originários? Cadê?

Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Saindo das eleições no país  e apesar de todas as expectativas e planos dos candidatos expostos durante a campanha fica ainda a interrogação: O que será do  amanhã? Eu não sei...Entrando, entretanto, em uma fase em que nós brasileiros, querendo ou não vamos nos referenciar na América Latina de alguma forma, preocupa-me sobremodo o tratamento que será dado à cultura, em um sentido amplo e profundo. Ainda que a integração latino-americana seja colocada como uma questão político-econômica, pela integração dos mercados -Mercosul - há todo um reboliço de estruturas, de destinos, de buscas, que permeiam os latino-americanos desde suas ações políticas até o seu imaginário.

A eleição de Evo Morales e a "refundação" da Bolívia sob outros alicerces e pressupostos políticos e culturais têm alimentado mudanças  políticas nas vizinhanças. Não poderemos ficar intocados por toda essa movimentação, que já acontece em um nível mais horizontal nos movimentos sociais, e que será permanentemente suscitado nas relações entre os países. Não conseguiremos, daqui a pouco, pensar nas ações políticas, econômicas e culturais como se este nosso país ainda estivesse isolado. As barreiras da solidão aos poucos serão rompidas, e cá comigo me vem um questionamento: O Brasil vai ter uma relação mais estreita, por interesses comuns, com a Bolívia, que tem um presidente indígena, em um governo que pretende ser multirracial e multicultural, mas que tem a cultura indígena, de qualquer forma, no mando do país. Os dois países são países irmãos, e terão políticas que em vários pontos convergirão nos objetivos, mas, os nossos irmãos indígenas brasileiros ainda estão na "tutela". Na internet, na página da FUNAI, que não é dirigida por índios, as funções da fundação expressas em lei rezam: "Exercer, em nome da união, a tutela dos índios e das comunidades indígenas."

Essa lei, eu acho sinceramente horrorosa. O que pensarão, então, os próprios indígenas? Dá a impressão de que os índios são propriedades do Estado e o Estado delega à FUNAI a função de administrá-los como se fossem seus bens. Dá a impressão também de que não são pessoas, muito menos cidadãos que,  apesar de terem direito e/ou obrigação de votar em Presidente da República, governador, e até se candidatar a cargo político, não podem ser representantes de suas próprias entidades oficiais.

Sim, tudo bem, há uma quantidade de questões específicas e próprias da questão indígena, como suas terras, as reservas indígenas, preservação de sua cultura e por aí vai. Mas, não existe ninguém melhor do que os próprios indígenas para saber das suas necessidades e negociá-las com o restante da sociedade e país. Nos meios de comunicação, quando  falam do povo indígena chamam um antropólogo para dar explicações. Esqueceram também que os indígenas têm voz e falam português atualmente. Esqueceram ou não querem ver que hoje muitos deles são advogados, antropólogos, escritores, filósofos e têm muitas outras formações e experiências que os habilitam perfeitamente para qualquer tipo de cargo.

Vivemos em um país, que apesar de todos os preconceitos, é governado por um presidente eleito como operário. E eu pergunto: Se um operário pode governar o país e ainda ser reeleito, por que os indígenas que já têm suas organizações, que têm seus representantes e lideranças, com formação e capacidade de fazer as pontes entre as duas culturas, não podem ter sua própria secretaria e se representarem politicamente e oficialmente neste país? País este que é um cadinho cultural e que pretende ser uma verdadeira democracia.

Ouvi o Presidente reeleito falar sobre a democracia em que vivíamos e das necessidades de cada vez mais afirmá-la. Parece-me, que nas atuais circunstâncias históricas, considerando todas as mudanças que ocorrem na América Latina é necessário aprofundar mais a democracia neste sentido, em nosso país. Os indígenas brasileiros precisam ser tratados como cidadãos reais, se quisermos ter uma nação brasileira mínimamente integrada. Ouvi também o presidente reeleito falar que uma das suas grandes bandeiras, no governo que termina, tinha sido quebrar as barreiras dos preconceitos, com as ações em relação aos afro-descendentes e às mulheres, através das políticas e secretarias criadas. E que continuaria a quebrar os preconceitos. Pois eu digo: Esse preconceito do Estado Brasileiro em relação aos indígenas é cabeludo, e nos remete novamente à colonização do país. Pergunto: Até quando vamos ter que ficar retornando ao passado de mais de cinco séculos para recolher nossos pedaços?

Falo isso, tentando recuperar as ações afirmativas em relação aos afro-descendentes e às mulheres, realizadas no governo que está terminando, não simplesmente como concessões às minorias ou quebra de preconceitos, mas sobretudo como ações que são regenerativas da cultura e da nação. Através dessas atividades das secretarias citadas, ainda que com poucos recursos, levou-se à esfera pública e política questões profundas que remexeram nossos subsolos culturais, e mesmo que a essas ações comporte alguma crítica, elas trouxeram um colorido humano, político e suscitaram uma ética diferente na coletividade. São ações que trazem vitalidade nos vários âmbitos da cultura, da política e da sociedade em geral.

Apesar de reconhecer que a questão indígena está também incluída na questão racial, ela é específica, por uma quantidade de questões e processos próprios da segregação a que esteve submetida em nossa cultura desde a colonização do país. Mesmo com todos os preconceitos e as barreiras, a cultura afro-descendente em nosso país é mais integrada. Como elementos fundantes da nossa cultura e da psique coletiva as culturas afro-descendentes  e indígenas precisam ser partes reais e aceitas, assim como a cultura européia e ocidental já é. As pontes têm que ser estabelecidas. E elas não podem ser feitas sem as ações afirmativas. Nenhuma coletividade aceita, sem resistências, albergar em si mesma elementos culturais considerados preconceituosamente inferiores. Haverá sempre a tentativa inconsciente de descarte ou supressão.

Essa situação não é boa para nenhuma das partes. Os indígenas sofrem como indígenas, os afro-descendentes também e os brancos (que são mestiços também), apesar disso não ser tão aparente. Em relação à questão da não integração de alguns elementos indígenas nos mestiços e aqui se incluem quase todos os brasileiros que compõem a maioria da população, fica perdida a ligação com aspectos ancestrais da cultura e da psique coletiva, para não falar "alma coletiva", e da relação com a terra e natureza. Estabelecer as pontes com a cultura indígena e ter ações afirmativas em relação aos indígenas é uma questão de sanidade e regeneração da cultura, que em conjunto com a continuidade das ações já realizadas com os afro-descendentes significa a possibilidade de integração da nação. A não ser que em época de tantas transformações globais e locais queiramos entrar nesse circuito aos pedaços, como coletividade, correndo sérios riscos de desagregação.

A hora é agora, para integrarmos essa questão. É necessário pensar que temos muito a aprender com as culturas indígenas. Há saberes ancestrais fundamentais  e outra cosmovisão, necessária para uma maior integração da cultura e para os novos tempos que se avizinham. E o primeiro passo para isso é tirar a "tutela" dos povos indígenas, e iniciar as ações afirmativas reais e simbólicas como a criação de uma Secretaria Especial dos Povos Originários, com representação dos próprios indígenas brasileiros, ou outro tipo de representação oficial e política, que eles considerem apropriada, para começar a se estabelecer de forma mais efetiva essa ponte cultural tão necessária a todos.

Presidente Lula, e membros do novo governo que se inicia, pensem nisso com carinho!

  30 de outubro de 2006

Texto publicado também em Artesanias - de Verônica Miranda - www.veronicammiranda.com.br

* Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

A FALA - www.cepac-ce.com.br 

Espaço Virtual do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará-CEPAC

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