ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

 Água de Beber, Camará! A Luta pela Sobrevivência dos Povos necessita de Coração.

Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Tendo atravessado os umbrais do terceiro milênio grande parte da população do planeta, suas representações políticas, as organizações, instituições, os governos e a mídia, colocaram na ordem do dia a palavra "sustentabilidade". Junto com o conceito desdobrado em tantas teorias, debates e discussões está de fato a questão real da sobrevivência do planeta e dos humanos terráqueos. Foi criada a categoria Bioma tentando entender os ecossistemas em sua totalidade, com suas relações e possibilidades de ligação umbilical com a terra.

A palavra "sustentabilidade" virou moda e passou até a ser usada com afetação e cobrada em determinados meios, acadêmicos ou não, quando alguém tenta realizar algum trabalho no meio rural e com outra linha de pesquisa e ação. O certo é que a questão ecológica profunda está posta em nossos dias, mesmo quando realizamos qualquer linha de pesquisa e trabalho, mesmo sem usar o conceito "sustentabilidade". Vivemos tempos de sobrevivência e a natureza se aproxima cada vez mais tentando nos avisar. Não há como escapar dessa realidade.

Os modismos vendem "pneus" sustentáveis, quando se deveria vender menos pneus e menos automóveis, poluindo menos os ambientes. A "sustentabilidade" é vendida como um negócio, permeia os aparatos burocráticos dos Estados, criam-se novos termos complicados para designar suas múltiplas significações, conseguem-se verbas para atividades "sustentáveis", mas na hora em que uma região ou Bioma corre o risco de se desintegrar, na hora em que vários povos do sertão correm o risco de não terem condições de sobrevivência por lhes serem tiradas as condições  de vida é que percebemos o quanto um conceito pode ser usado de forma traiçoeira e vazia. Sem coração.

Essa questão está posta agora, com os dilemas da transposição do rio São Francisco. Ela é profunda e perpassa várias outras questões do país como a questão regional, nacional, ecológica, religiosa, étnica, e nos põe cara a cara com problemas centrais do terceiro milênio e deste século que teremos que enfrentar querendo ou não, como o problema da escassez da água, desertificação de regiões, relações conflituosas entre campo  e cidade, enfocando o modelo de desenvolvimento monstruoso criado em nossos sistemas latino-americanos de cidades "feitas para odiar". E é, sobretudo, uma questão política. Questão política que não pode mais ser entendida somente dentro de parâmetros estreitos da política partidária. Tendo sido uma campanha encetada em muito pelos movimentos sociais, a questão do rio São Francisco mexe com interesses diversos, dentre eles os dos empresários do agronegócio e governos de Estados. Mas não pára aí. Ao tocar de frente com a problemática da sobrevivência dos povos ribeirinhos e a pouca representatividade que têm os partidos políticos nesse âmbito, o conceito de política se alarga.

Sem querer simplificar o conceito de política, tão antigo quanto a fumaça, mas já o fazendo diante das circunstâncias históricas, digo que temos que re-imaginar a política como algo que fazemos desde que enquanto bebês estamos mamando no peito da mãe. Choramos e esperneamos para conseguir aquilo que significa a nossa sobrevivência, quando o peito nos é negado. Estamos e estaremos assim, ao longo deste século, no peito da mãe terra chorando e esperneando para fazer valer a vida, nossa sobrevivência ou a sobrevivência dos povos, e com elas, a sobrevivência do próprio planeta.

A transposição do São Francisco, em que pese todo o sacrifício, luta, dificuldades, medos e desgastes que muitos estão vivenciando é um microcosmo e ao mesmo tempo uma pequena antecipação das questões ecológicas, políticas, étnicas, religiosas, que teremos daqui por diante, como parte dos problemas que se desenharão neste século.

Por ossos do ofício como historiadora, várias vezes me debrucei sobre o debate que acompanha a questão da água no sertão nordestino em várias conjunturas  desde o século XIX. A questão sempre recorrente é a construção de obras faraônicas, como os grandes açudes e reservatórios d'água, com vultosos recursos públicos, feitos sob a justificativa de que trariam benefícios a grande número de habitantes da região. Colocado tudo isso nos liames das questões políticas e da concentração da terra foi verificado através de inúmeros estudos que a água acabava também concentrada em número reduzido da população ou nas grandes cidades. Décadas após décadas, ano após ano se assistia e ainda se assiste ao problema da água no sertão, principalmente nos períodos de seca. Como  os períodos de seca têm sido cada vez mais recorrentes e  como tem se desestruturado esse ecossistema ou Bioma, a situação tem piorado sensivelmente ao longo do tempo.

Uma das novidades alvissareiras que aconteceu durante o primeiro mandato do presidente Lula foi a acolhida ao trabalho de ONGS que em parceria com o governo e com a idéia brilhante e genial das cisternas de placa conseguiram implantar o Programa das Cisternas levando água para milhares de nordestinos sertanejos. Água de beber, Camará! Como não fiz parte dessa implantação tenho isenção suficiente para falar de seus resultados observados  por mim em minhas andanças, em trabalho pelo sertão cearense.

Ao chegar em comunidades onde foram implantadas as cisternas se observa logo a mudança da paisagem. São "cuscuzinhos" brancos brilhando ao sol. Quando você se aproxima e pergunta como funciona, a resposta vem com um grande sorriso de satisfação. Falam da mudança e da alegria em suas vidas por terem as cisternas com água potável, da chuva, para beber. Alguns com canalização para dentro de casa. Explicam o manejo das águas, que ainda em sua grande maioria são usadas para beber. Uma coisa pequena e corriqueira para alguém da cidade, com água encanada, mas não para as pessoas da zona rural, do sertão. Aqueles que ainda não têm cisterna sonham com uma e aguardam com esperança. Acham que é mais fácil conseguir uma cisterna do que um poço. Açude nem pensar, é muito caro.

Essa é uma mudança significativa na vida dos pequenos produtores e trabalhadores do sertão que aconteceu  com um projeto de baixo custo, sem problemas ecológicos, e que pôde se estender de forma massiva a um número grande de famílias e matar a sede secular do sertão. Um programa tão bom que todos estão a pedir bis, acreditando que esta é uma das formas encontradas de convivência com os problemas do semi-árido, que evita os carros-pipas. Essa e outras são idéias e alternativas geradas no próprio semi-árido nordestino que minoram e começam a resolver os problemas de água pela maioria da população com um custo baixo e emprego para muitos. E isso significa também uma nova forma de pensar o desenvolvimento, a outra face do sertão e a cara do país. Brasil, mostra a tua cara! Ela se revela nessas pequenas coisas.

Mas se revela também, infelizmente, em suas mazelas. E nas últimas décadas, com uso de tecnologias novas e com o aumento da população  das grandes cidades aumentou a audácia humana em relação aos antigos planos da natureza. Começaram a mudar a rota de rios para grandes projetos tecnológicos e abastecimento das cidades. Não sou contra o uso adequado de tecnologia e abastecimento das cidades, mas em alguns casos essas mudanças foram desastrosas para as populações ribeirinhas, e logo depois foram abandonadas, apesar dos vultosos custos públicos. Ora, uma das questões que permeia toda a história do sertão é a forma de ocupação do seu solo às "margens ribeirinhas". Às margens dos grandes rios foram se formando historicamente economias, povoações, culturas, etnias, vidas ligadas aos rios e aos seus ecossistemas. Biomas que fizeram a vida de muitos povos e depois começaram a se desestruturar pelo tipo de agricultura predatória.

Agora uma nova e possível desestruturação de um grande rio e seu ecossistema chamado carinhosamente de Velho Chico torna-se realidade. O pavor  que a transposição do rio São Francisco tem causado nas populações ribeirinhas tradicionais do Velho Chico, diante do que se afigura como catástrofe ecológica e em suas vidas, pode ser sentida de perto por pessoas como D. Luiz Cappio, que há algumas décadas dedica sua vida e seu tempo a essas populações.

 Em vez de ficarmos nos debatendo em cansativos embates ideológicos, de que ele é fundamentalista, que faz uma greve de fome contra políticos, contra empresários, contra governo, melhor seria refletir no sentido profundo que envolve essa luta e sua ação, que iniciou um jejum sem tempo certo para parar,  tentando abrir um espaço de reflexão antes que seja tarde.

Retomando o sentido político que falei parágrafos atrás, ele está gritando e esperneando, em sua forma calma e pacífica, pela sobrevivência dos povos a quem ele se dedica e que não têm a quem recorrer com a catástrofe que pode acontecer em suas vidas, por não poder mais contar com o Rio. E está gritando também pelo rio que precisa ser revitalizado para fazer reviver o Bioma que está morrendo. Não está sendo "contra" ninguém, está sendo a "favor" de populações desvalidas na guerra surda que está instalando uma face cruel e dura do desenvolvimento para o país. Está lutando para que essas populações não tenham que ir para cidades grandes e monstruosas "feitas para odiar" migrantes como eles, que não terão vez. Está lutando por vida. Está cantando como um galo para que os brasileiros despertem para uma nova aurora. Oxalá consigamos ouvir em tempo o seu canto.

Esta talvez, seja uma dimensão difícil de ser entendida para muitos políticos, empresários e apoiadores da transposição. Entenderão aqueles que sabem o que significa a linguagem do coração, capaz de enviar a todos um raio de lucidez e amor. Que esse clarão  no rio ilumine a todos os envolvidos nessa questão para que não se cometa injustiças e para que se crie o espaço necessário para sua resolução.

Talvez tenhamos que colocar coração nas nossas proposições de "sustentabilidade". As pessoas que agem com o coração e com fé como D. Luiz Cappio são corajosas e guerreiras: "a favor". Precisamos dessa água de beber, Camará!

Eu quis amar mas tive medo,
E quis salvar meu coração
Mas o amor sabe um segredo,
O medo pode matar o seu coração
Água de beber,
Água de beber camará,
Água de beber,
Água de beber camará

(Água de Beber -Vinícius de Moraes e Tom Jobim)

 

  04 de dezembro de 2007

Texto publicado também em Artesanias - de Verônica Miranda - www.veronicammiranda.com.br

* Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará - CEPAC.

A FALA - www.cepac-ce.com.br 

Espaço Virtual do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará-CEPAC

Todos os Direitos Reservados