PONTO DE VISTA

O Encontro entre Raimundo Faoro e Paulo Freire em favor do Brasil

Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Era noite, já tarde, e lendo notícias do dia chamou-me a atenção uma notícia ácida sobre o Programa Fome Zero. O Programa Fome Zero em foco sendo chamado de "Programa da Caridade". Apesar de achar que caridade, "caritas", o amor desinteressado pelo outro é algo muito necessário no Brasil e no mundo de hoje, aquilo me pareceu algo extremamente pejorativo e por que não mal intencionado? Isso me levou a uma intensidade maior de pensamento e interrogações sobre o caso, mas o sono da noite, já que se fazia tarde, e a intensidade das preocupações levaram-me a um leve torpor. Uma imagem foi me chegando. Cabelos brancos, barba grande, um olhar arguto e já plácido. Aquele rosto era conhecido do Brasil. Nada mais e nada menos do que Paulo Freire. Outra veio em seguida. Rosto sério, compenetrado, olhos vivos, óculos inconfundíveis e um leve sorriso irônico nos lábios. Não o tinha visto muito em jornais, mas logo compreendi que ele era ninguém mais e ninguém menos do que Raimundo Faoro. A imaginação foi ganhando asas e eu percebi que eles estavam conversando. Essa conversa eu não podia perder. Algum jornalista perderia? Aproximei-me mais e ouvi quando Raimundo Faoro dizia:

"Estou realmente preocupado com essa fase delicada que o Brasil está passando. Se por um lado, a crise que abrange todos os setores traz a necessidade de reformulação da relação entre capital e trabalho, e principalmente do Estado e sociedade, por outro lado significa um momento que propicia a rearticulação das oligarquias regionais e o reforço do Estado patrimonialista, se não for feito um esforço para se criar um espaço realmente público no Brasil. O momento de crise profunda por que passa o país, é o momento por excelência, para serem redefinidas essas relações e acabar com o velho jogo entre poder central e oligarquias regionais. Os velhos acordos em que os políticos regionais funcionavam como fiel da balança para garantir a governabilidade do poder central, sempre em função das classes dominantes e de poucos interesses, comprometendo os interesses da maioria da população que habita essas regiões, não pode mais funcionar no Brasil. Este esquema já está podre. É necessária uma profunda reforma política e a criação de uma base política e cidadã que lhe dê suporte."

Paulo Freire acompanhando atentamente, com muito respeito, como se sorvesse cada palavra do grande mestre falou:

"Eu tenho pensado seriamente em tudo que tem acontecido com o programa Fome Zero. E fazendo uma retrospectiva do que foi a "Ação Cultural para a Liberdade", naquele momento político que eu e vários saudosos colegas participamos, e que também era um momento de crise, eu percebo que nunca se viveu no Brasil uma conjuntura tão propícia para se fazer uma ação cultural e política para uma mudança profunda no Brasil quanto hoje. Eu vejo o programa Fome Zero como o esqueleto, a célula base que aglutina todas essas ações culturais e políticas, no sentido profundo da expressão política, que é o resgate da cidadania e da busca do ser humano em sua totalidade. É o Fome Zero que pode através de suas ações fazer emergir a verdadeira cultura, fazer a alfabetização e educação da população criando as bases desse espaço público. E isso também porque tem uma base econômica, que na época da Ação Cultural para a Liberdade não tinha, e porque tem uma ação massiva."

Faoro disse:

"Caríssimo, eu creio que não há interesse das oligarquias regionais em que isso se faça, pois a constituição dessa base acaba por solapar, ou neutralizar esse imenso e absoluto poder que elas acumularam historicamente e que se cria e se recria sob novas bases e novas roupagens. Tal qual os déspotas esclarecidos, as oligarquias regionais, no momento atual, não estão interessadas em mostrar suas verdadeiras caras. Daí eu achar que elas vão começar a criticar as ações do Fome Zero e até boicotá-las. As armas dessas oligarquias são sutis, mas não podemos esquecer que essa é uma conjuntura ímpar para essas transformações no Brasil. Não podemos mais conviver com essa brutal disparidade e concentração de renda, que são inumanas e que não nos dignificam como nação e como país. Deveríamos nos envergonhar cada vez que fazemos uma revisão das estatísticas. Como estatísticas não se alimentam, não comem, muitos desses oligarcas ou prepostos deles não sabem também o que significam para a população pobre e desvalida as ações emergenciais do Fome Zero. As pessoas sentem fome, mas os "donos do poder" não conseguem atinar com o significado e as conseqüências disso. Aqueles que viveram essa experiência não criticam as ações emergenciais do Fome Zero.

Paulo Freire tomou a palavra:

Veja bem, amigo Faoro, com todo o respeito pelas cabeças brilhantes e bem intencionadas que estão à frente desses programas, eu avalio que se o Fome Zero se direcionasse para uma perspectiva mais ampla, como uma base dos programas sociais, mas que tivesse o significado de uma ação cultural e política mais profunda ele não sofreria tantos ataques. Penso no Programa Fome Zero como um conjunto de várias ações: Ações emergenciais, que já começaram; ações educativas e culturais; e Reforma Agrária e economia solidária como ações estruturais. Ao mesmo tempo, essas ações deveriam proporcionar o encontro da sociedade civil e do Estado na sua implementação. Nas ações culturais e educativas, temos dois ministérios, o da Cultura e o da Educação, com pessoas mais que capazes para implementar isso, que com entidades da sociedade civil poderiam compor o primeiro programa educativo e cultural em massa, do Brasil, dando suporte a todas as outras ações. Isso favoreceria o incremento da economia solidária, pois a criatividade do nosso povo é impressionante e pouco aproveitada, ao mesmo tempo em que favoreceria a emergência dessa cultura maravilhosa, elevaria a auto-estima da população, e através das organizações favoreceria as ações em prol da cidadania. Temos quadros muito bons que podem trabalhar a questão da Reforma Agrária massiva, principalmente em regiões que por problemas de solo, água, e outros têm vocação para agricultura familiar, além dos estudiosos da economia solidária. As ações emergenciais do Programa Fome Zero, e também as questões relacionadas à saúde, teriam ainda que continuar por uns tempos, e temos pessoas com poder de articulação pra fazer isso, e coragem até para enfrentar bandidos (risos), para levar essa parte para frente. Agora, essas ações para serem eficazes deveriam ser feitas em conjunto.

Faoro disse:

"É...Não obstante as grandes potencialidades do Fome Zero, eu acho que, talvez, o problema seja o das ações coordenadas. Não é um programa para ser conduzido somente por uma pessoa, ou ministério, e além disso, precisa de uma pessoa capaz de fazer a articulação política entre esses setores e ministérios que tenha bom trânsito, e que saiba o  significado político da constituição desse espaço público - na teoria e na prática - que é ao mesmo tempo um espaço de justiça social."

Paulo Freire disse:

"É...De fato, essa é uma concertação nacional na prática e na base,  e a orientação dela tem que buscar o sentido de mudança cultural e política que tem o Governo Lula, senão pode virar política de pequenos feudos ministeriais. Deveria ser alguém com capacidade de incluir isso na grande concertação nacional, que parece estar se desenhando no país. Evitar a proliferação de burocracia desnecessária é outra preocupação, além do engajamento da sociedade civil. Acho que esse aspecto do engajamento da sociedade civil não terá muito problema, vejo uma boa vontade transbordante em relação ao Fome Zero, mas ainda não foi aproveitada e catalisada devidamente. Acho também que algumas pessoas altamente capacitadas dos quadros do Governo Lula ainda não estão sendo aproveitadas devidamente."

Faoro completou:

"É, eu acho que  o caminho é por aí mesmo, o Fome Zero é a grande estrela que vai selar e harmonizar essas ações sociais, culturais e de cidadania. As demais ações se juntarão a ela. Agora, é imprescindível para que essa base funcione, que seja feita a Reforma Política e do Judiciário, senão a política vai ficar capenga, o Estado vai continuar funcionando na base dos acordos espúrios. E..."

Eu acordei, de repente, num susto. Será que eu havia dormido realmente? Será que esse bate-papo todo foi só sonho? Pensando bem, tudo que está  nele já é sonho. Agora, se  Paulo Freire  e Raimundo Faoro planejaram esse encontro de verdade, nós nunca vamos ficar sabendo com certeza. Resta-nos a dúvida que aquela tão conhecida frase encerra: "Existem mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a vã filosofia."

De qualquer forma, é bom saber, que mesmo em outros planos, os brasileiros de verdade não esquecem o Brasil!

 

 

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda - www.veronicammiranda.com.br

Data:31/05/2003

* Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

A FALA - www.cepac-ce.com.br 

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