ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

Nossas tradições, nossa autenticidade

Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

  Escrevo, ainda sob o efeito das imagens do programa Viva São João apresentado por Gilberto Gil, na Rede Globo, na madrugada de hoje. Uma homenagem a Luiz Gonzaga extensiva aos nordestinos que com ele e depois dele divulgaram e fizeram  perpetuar a autêntica cultura nordestina. Uma homenagem também aos nordestinos das pequenas  cidades, do sertanejo da caatinga, dos seus poetas, artesãos, cantadores, e músicos, muitas vezes anônimos, resistentes e permanentes, na vida simples e autêntica do interior nordestino. Um verdadeiro “bunker” de nossa cultura. 

O documentário, pois de fato é assim que se apresenta, nos faz passear pelo cinema novo com suas tomadas de câmera deliciosas, com a fotografia do dia-a-dia e com o diálogo autêntico que faz nos transportarmos, realmente, para o “doce-azedo” da caatinga, aquele quase deserto que somos também nós, em nossa universalidade, em nossa paisagem interior, com lampejos de sol de fim de tarde passeando pelo cinza e branco da caatinga. O cinza se vestindo de verde com o mandacaru e o juazeiro, o lajeado de nossa solidão que reúne vozes tão conhecidas num cântico às vezes triste e saudoso, mas animado pela zabumba, triângulo e sanfona. Um cântico de esperança também. O sertão é alegre, triste, criativo, é solidão que não incomoda, é relação com a natureza, é cultura vibrante que contrasta com a pobreza. A cultura do sertão e interior nordestino é.

 Os personagens, reais, não são somente flagelados da seca, como uma certa mídia costuma mostrar e propagar. São habitantes do sertão e interior nordestino, com sua própria forma de ser, sua cultura, suas tradições, suas metáforas, sua própria linguagem, hábitos reais e não caricaturados, e não estereotipados, nem folclorizados e mal divulgados. Essas raízes, essa forma de “ser” profunda precisa ser resgatada mais vezes, como fez esse programa. Na época da reprodutibilidade, como coloca o pensador Walter Benjamin, a arte e, eu diria também a cultura, perderam sua autenticidade, sua “aura”, sua singularidade, para se transformar em “mercancia” ou mercadoria, em objeto de troca, em “artefato”, cujo objetivo final é o lucro. Em políticas públicas culturais, em que a preocupação principal é transformar a cultura e a arte em fontes geradoras de renda e equilibrar as receitas e gastos públicos entra-se na mesma roda viva da descaracterização da arte e da cultura, já iniciada  pelos setores privados do sistema capitalista, no qual o objetivo central é o lucro. Sabemos que não são as pessoas mais necessitadas que lucram com isso, mas atravessadores e agenciadores da cultura de consumo. E sabemos também, no fundo do coração, que as justificativas, de que essas iniciativas resolvem uma necessidade da população carente, são falsas. O agenciamento da cultura como ramo comercial funciona sempre em função do bolso de agenciadores e não das pessoas em geral. Colocada dessa forma, essa é a “cultura da miséria” e, porque não dizer, a "miséria da cultura".

 A arte e a cultura como proporcionadoras de ofícios geram condições de sobrevivência para todos aqueles que com ela lidam e que a fazem com liberdade, condição principal da criação e de sua existência. E esses deveriam ser apoiados e incentivados por fazerem florescer a cultura e cumprirem essa função criadora. Mas as tentativas de dirigir,de transformar artesãos e artistas em micro empresas, de associar a arte e a cultura ao turismo predatório leva-nos à perda irreparável dessa autenticidade. A cultura e a arte não têm que ser transformadas em mecanismos geradores de renda por agenciadores privados ou públicos para ter lugar na sociedade. A arte e a cultura já têm o seu lugar na sociedade, apesar de que nas cabeças da “sociedade de consumo” o que vale é o que gera lucro, ou renda. A pergunta que se deve fazer é: para quem é essa  renda? É para os artistas que desenvolvem por vocação, liberdade e criatividade  a arte e a cultura ou para agenciadores públicos e privados? A arte e a cultura não precisam entrar nas formas que assume o mercado para  se tornarem visíveis na sociedade. O trabalho da arte e da cultura é invisível, por definição. Elas atuam principalmente nos substratos psíquicos de uma coletividade. Elas nos regeneram e nos permitem estar sempre em consonância com nossos pontos de referência, nossas raízes, ativando os fluxos de conhecimento e de energia, nos renovando. Nesse sentido, a arte deveria estar mais ligada à educação e ao desenvolvimento humano do que às atividades comerciais. 

A tentativa de transformar a população pobre, sem emprego, a qualquer custo, em artesãos ou artistas para solucionar o problema do desemprego, para movimentar a economia, é transformar a arte e a cultura em algo inócuo, sem sentido, é buscar o “popularesco” em vez do autêntico popular. Esse tipo de agenciamento leva a uma “estetização da sociedade” nos termos colocados pelo pensador francês Jean Baudrillard, em que a própria arte não terá mais sentido, será apenas uma simulação, uma falsidade, como já ocorre em sociedades mais voltadas para o consumo. A arte verdadeira só pode ser gerada através de seus próprios canais de desenvolvimento. É necessário que haja vocação, liberdade, coragem e liberação da criatividade. O artista é por definição alguém que não pode ser outra coisa, ou não pode deixar de ser e estar em função da criação e da cultura, mesmo que trabalhe em outras atividades para sobreviver. Se não fizer isso pagará um preço caro. A existência de tantos artistas nos lugares mais recônditos e isolados, sem nenhum incentivo e, às vezes, sem remuneração nenhuma pelo ofício explica isso. A sociedade e a cultura em um sentido mais amplo, necessitam dos artistas cumprindo e realizando a vocação de criar, para o próprio equilíbrio deles e da cultura, assim como  indivíduos e sociedade necessitam de todas as outras vocações e atividades para se realizarem. 

A cultura brasileira é rica, seu povo é criativo, e mesmo não sendo essa cultura tão incentivada na sua autenticidade, ela explode. E nossos corações se alegram e se recompõem quando podemos assistir um “programa de tv” que nos traz essa autenticidade de volta. Ao assistir o programa Viva São João, meu coração, e não só a memória, passeou  pelas fogueiras da cidade serrana em que nasci. As pessoas em volta da fogueira comiam seus milhos assados, seus bolos de puba (carimã) e macaxeira, seu pé-de-moleque, pamonha, bolo de milho, seu cauim, aluá especial de mandioca, seu mondubim (amendoim), pipoca, soltavam fogos e faziam suas adivinhações. Passavam fogo. O ato de “passar fogo” onde se tornavam, sob a chancela de um dos santos (Sto. Antônio, São João ou São Pedro), padrinhos e afilhados, comadres e compadres, era não somente um ato de diversão e de fazer jus às raízes e tradição. Era um momento de confraternização, de aproximação, de selar amizades, compromissos, de uma comunidade se tornar próxima e cooperativa. A tradição da fogueira na frente da casa, onde as pessoas sentavam-se em volta da fogueira, pelo que me consta, já está desaparecendo na cidade onde nasci. E isso não porque a cidade se transformou em um grande centro urbano, pois a cidade continua pequena, mas porque tiraram o paralelepípedo para colocar asfalto, em uma pequena cidade, em que tal substituição não poderia se justificar,  e asfalto não combina com fogueira. Disseram que as fogueiras o estragavam. A tradição mudou também porque quiseram trazer o “progresso”, copiando e imitando as cidades grandes. E mesmo assim, a miséria  circunda a cidade. Porque quiseram dizer que a cidade era a mais progressista, tinha ruas arrumadas, sem buracos, com o maior recolhimento de impostos, mas também sem fogueiras, mas também em muitas coisas com a cultura e alma do povo mutilada.

 As prefeituras e administrações governamentais não deveriam receber comendas somente por recolher impostos. Deveriam receber comendas também por preservar a unidade das comunidades, e as expressões autênticas da cultura. Prefeitos deveriam ser cobrados por perseguirem pessoas das comunidades, por estragarem o tecido social de uma cultura, por proporcionarem divisões nos seios das comunidades, por se cercarem de elementos prejudiciais à própria comunidade e à cultura de um povo. E por assumirem o turismo predatório, a cultura da dissensão e do ressentimento. Essas administrações fazem mal à população e servem a uns poucos que lucram de formas lícitas (se é que o lucro pode ser chamado lícito) e de formas as mais ilícitas também. Na maioria dos casos se especializaram em não deixar rastros. Os rastros terríveis na cultura e na alma do povo, entretanto, darão conta depois, do crescimento da violência com origem desconhecida, em lugares pacíficos. Ao danificar a cultura de um povo, com esses artifícios e políticas, os administradores públicos, e agenciadores privados, estão atuando contra qualquer “cultura de paz”, de forma, às vezes, irreparável.

 Dessa forma, percebemos como a cultura das pequenas comunidades e do país, em geral, está relacionada com a política, em um dado sentido do desenvolvimento do país e da visão dominante de certas elites. Estas importam cultura de outros lugares e esquecem os verdadeiros e autênticos valores de nossa sociedade e cultura, nossos pontos de referência. O colapso da cultura, principalmente nas sociedades tomadas totalmente pela idéia de "consumo", deve nos alertar para o nosso ainda existente “capital simbólico”. Para a possibilidade que ainda temos de fazer vicejar a nossa cultura, de não anestesiá-la com parâmetros de outras culturas, com “pastiches comerciais” que começam encontrar aqui um “porto seguro”. 

A arte e a cultura no Brasil podem florescer, dentro de novos parâmetros de autenticidade, de busca de suas verdadeiras raízes, e acabar com a falta de esperança,  que já existe na “estetização inócua” dos parâmetros de consumo  em outros países.

 O programa  Viva São João, de ontem, me deu essa esperança. Pena que foi passado tão tarde da noite, sem dar condições para que milhares de brasileiros o assistissem. Fiquei me perguntando se ele estava fora do “padrão de consumo” da emissora. De qualquer forma, deveria ser retransmitido em horários mais condizentes com a importância do programa e em outras redes de tv.

 

Texto publicado também em Artesanias - de Verônica Miranda - www.veronicammiranda.com.br

Data:11/06/2003

* Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará - CEPAC.

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