ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

Chegou a hora da Reforma Agrária

Raul Patricio Gastelo Acuña*

Desde a fundação do PT em todas as campanhas para a Presidência da República, e particularmente na última, o Presidente Luis Inácio Lula da Silva e o Partido dos Trabalhadores não ocultaram de ninguém que a reforma agrária era um ponto central do Programa do Governo do Partido dos Trabalhadores. Depois de seis meses de governo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), o movimento social mais importante do país, deseja que essa promessa deixe de ser promessa e que finalmente seja cumprida a promessa da campanha. E, para ratificar essa promessa que não é só da última campanha, mas de todas as campanhas o Presidente com sua abertura e gentileza habitual colocou o boné dos Sem Terra na sua cabeça. Colocou o boné para sinalizar que a reforma agrária será realizada durante seu governo. A ratificação dessa decisão, que assumiu a forma simbólica do boné, levou até o usualmente ponderado Antônio Ermírio de Morais a ficar ouriçado. Foi o primeiro gesto em que o Presidente indicou claramente que os trabalhadores têm no Presidente Lula seu Presidente. E isso deixou indignados aos que pensavam que mais uma vez as coisas neste país continuariam iguais e que o Presidente dos trabalhadores já havia sido cooptado pelos eternos donos do poder.

O MST, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG), o Partido dos Trabalhadores, a Comissão Nacional dos Bispos do Brasil, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e outras entidades da sociedade civil apóiam o anseio por terra de milhões de trabalhadores rurais e de pequenos produtores que têm sido expropriados e expulsos de suas terras, através da coerção legal e ilegal dos grandes proprietários, apoiados aberta ou sorrateiramente pelo poder público. Na luta pela terra têm sido assassinadas centenas de trabalhadores e pequenos produtores rurais,  dezenas de sindicalistas rurais por crimes de encomenda e trabalhadores rurais, homens, mulheres e crianças, por “jagunços” ou milícias armadas contratadas pelos grandes fazendeiros ou diretamente pela polícia militar como em Carajás.

Os fazendeiros acusam os integrantes do MST de serem violentos. Estranha percepção da violência em que só morrem e são feridos trabalhadores e trabalhadoras rurais. E só são mortos e feridos os Sem Terra, pois não têm armas de nenhuma espécie para se defenderem. Suas “armas”, enxadas e foices, não são armas, mas instrumentos de trabalho que os meios de comunicação e os boletins de ocorrência policial os transformaram em armas, num passe de mágica, que deixaria verdes de inveja os “magos” de todo o mundo. Com a maior “cara de pau” os editores dos jornais da TV, e os impecáveis locutores dessas emissoras dizem gravemente ”os sem terra estavam armados de pás, foices, facões e enxadas”.  A mesma barbeiragem escrevem os policiais nos boletins de ocorrência. Seria motivo de riso e chacota se parte importante da sociedade não levasse a sério essa sutil e perversa distorção da realidade.

De fato a violência a que se referem os latifundiários não é violência é a ocupação de terras. E essa terra, que é uma dádiva da natureza, como o ar, como a água e que sem sua exploração produtiva não existiria vida humana é apropriada por uma minoria que se sente no direito de excluir aqueles que trabalham nela. E no caso brasileiro é pior ainda, porque quem reclama são latifundiários que não utilizam a terra produtivamente, enquanto os trabalhadores rurais e brasileiros não têm terra para trabalhar e sobreviver.

A terra por ser parte da natureza, e não produto do trabalho humano, não deveria ser objeto da apropriação privada. Como ficaríamos os seres humanos, nossa própria reprodução social, se o ar, e a água dos rios e oceanos fossem apropriados privadamente? A terra apropriada privadamente por uma minoria é algo monstruoso e característica contraditória do capitalismo. A terra deveria ser usufruída, cuidada e preservada por aqueles que nela trabalham diretamente com o compromisso social de entregá-las melhoradas às gerações futuras. É o nosso habitat que está em jogo. Triste sociedade a nossa em que uma minoria se apropria de parte do planeta, depreda essa parte da natureza e na defesa daquilo que não lhe pertence mata e fere milhares de pessoas.  São eles e este sistema  os verdadeiros violentos, que permitem e possibilitam essa barbárie.

E a Reforma Agrária é uma forma muito simples de acabar com essa dupla violência: a violência da apropriação privada da terra para seu uso e abuso, e a violência cotidiana que esta sociedade comete contra 140.000 famílias acampadas, que representam quase 700.000 pessoas, a maioria delas crianças, e que vivem em condições miseráveis. Sem terra, sem trabalho, sem comida, sem escola, sem saúde, sem água tratada, sem teto. O único “com” que têm é uma profunda integridade ética que permite que lutem para manter a esperança e a dignidade de seres humanos. Essas pessoas perderam tudo e não caíram na desesperança do banditismo, da delinqüência e da lumpenização. Pelo contrário, constituem um exemplo de luta e solidariedade. Nesses acampamentos tudo é organizado e distribuído igualitariamente. Não possuem quase nada e é um maravilhoso exemplo da criação sobre o quase nada para conseguirem sobreviver. Todos realizam alguma tarefa. As crianças e os adultos estudam e os professores são outros trabalhadores mais letrados, as cestas básicas são multiplicadas, ninguém morre de fome e trabalham plantando e colhendo na beira da estrada. Nos acampamentos estão proibidas as bebidas alcoólicas, as drogas e a violência.

Vivemos na nossa sociedade a aparência de que se faz reforma agrária. O governo promete reforma agrária, os latifundiários e os reacionários de séculos apóiam uma “reforma agrária pacífica e dentro da lei”, todos os partidos políticos prometem a reforma agrária, e o governo passado proclama aos quatro ventos que realizou a maior reforma agrária “do mundo”.   E, o mais impressionante, o que deveria entrar no Livro do Guiness,  como o maior estelionato público, como o maior embuste do mundo é que o país não tem lei de reforma agrária. Como pode existir reforma agrária, sem lei de reforma agrária?

O que maliciosamente é chamada de lei de reforma agrária é o Estatuto da Terra promulgado pelo governo militar em novembro de 1964. O Estatuto da Terra é uma lei de colonização e que também regulamenta as relações trabalhistas na agricultura. Prova do que dizemos é que durante a vigência do regime militar não se desapropriou nenhum hectare de terra e se estimulou a colonização em áreas de fronteira. Além disso, todos estamos lembrados que falar de reforma agrária nesse período era garantia quase certa de cadeia. Essa fantasia, verdadeira fantasmagoria social, atravessou incólume um período de quase 40 anos, ou seja, até hoje. Na realidade o que existe é um arremedo de reforma agrária. E esse arremedo é prometido como a maior panacéia social aos Sem Terra.

A Sociedade Rural Brasileira e a União Democrática Ruralista (UDR) quando solicitam uma reforma agrária dentro da lei são perversamente coerentes. Ora, como se vai fazer reforma agrária dentro da lei se não existe verdadeiramente uma lei de reforma agrária?  Nos termos do Estatuto da Terra a reforma agrária é inviável economicamente. O governo teria que transferir quantiosos recursos econômicos aos grandes proprietários de terra, recursos esses que não existem e nunca existirão. O mecanismo de indenização pela desapropriação de terras é um grande negócio para o proprietário de terra, às custas da população.  A terra se paga pelo valor comercial, em títulos do tesouro, com juros e correção monetária, mesmo que o proprietário tenha fixado valores imensamente inferiores para pagar o imposto territorial rural e as benfeitorias, pelo seu valor comercial e à vista. Esse é o ponto central de qualquer reforma agrária e se a sociedade civil não decide como resolver essa questão nunca passaremos de soluções tópicas.

No inicio do seu governo o Presidente Sarney convocou um grupo de especialistas que elaborou o I Plano Nacional de Reforma Agrária. Esse Plano era um avanço notável com relação ao Estatuto da Terra. Mesmo castrando nos seus fundamentos principais o Plano original, esse I Plano permitiu, no início, pela participação corajosa e engajada de intelectuais e técnicos e da sociedade civil, um avanço notável da reforma agrária. Sucessivos decretos dos Presidentes Sarney, Collor e Fernando Henrique Cardoso, descaracterizaram depois, completamente, esse já castrado I Plano Nacional de Reforma Agrária.

Chama atenção, profundamente, que cumpridos seis meses do Governo, o Presidente Lula continue prometendo reforma agrária com os inócuos instrumentos legais existentes. É urgente a elaboração de um Plano Nacional de Reforma Agrária e a elaboração de uma Lei de Reforma Agrária a ser considerada e aprovada pelo Congresso Nacional.

Do contrário, o Ministro da Agricultura, continuará cometendo “escorregões” graves e incitando a formação de milícias armadas à margem da lei. Não está demais lembrar ao Sr. Ministro, que ele atualmente é Ministro e não é dono de terra. Se quiser continuar dando “escorregões” é mais honesto e ético renunciar ao cargo. O governo do Presidente Lula e do PT está comprometido publicamente com a reforma agrária. E reforma agrária é no seu fundamento o processo de desapropriar terras dos que têm muita e transferi-la àqueles que têm pouca ou nenhuma terra para trabalhar.

Finalmente, uma das acusações mais mal intencionadas contra o MST e difundidas pelos escribas dos setores mais retrógrados dos grandes donos de terra, é que no seio do MST há pedreiros, mascates, empregadas domésticas e outras pessoas que não são agricultores. Essas pessoas já foram trabalhadores rurais, e se estão desempregados e passando fome é bom, é altamente positivo socialmente que retornem às suas raízes.

Para que esses críticos exerçam sua verve, apresentaremos a experiência do Ceará idealizada e implementada pelo governo passado do Ceará, ainda vigente. Durante o último governo uma missão de técnicos viajou a Israel para saber como eles conseguiam conviver produtivamente com o deserto. Esses técnicos ficaram deslumbrados com o kibutz e informaram essa maravilha ao Governador que também deslumbrado prontamente criou o Programa Águas de Israel. Para isso formou a Secretaria de Recursos Hídricos, contratou grandes especialistas gaúchos, com grande experiência na convivência com a seca e iniciou o Programa. Parece que os técnicos esqueceram de informar ao Governador um pequeno detalhe: que em Israel a propriedade da terra do kibutz é estatal e não é privada. Isso permite grandes investimentos do Estado sem apropriação privada.

O Perímetro de Irrigação do Baixo-Acaraú no Ceará é um projeto de irrigação complexo com todas as inovações tecnológicas atuais.

Esse projeto tem uma área irrigada de 7.776 ha. com 569 lotes divididos nas seguintes categorias: 478 lotes para pequenos produtores de 6 ha; 52 lotes de 16 ha, para técnicos agrícolas e engenheiros agrônomos; e 39 lotes de 80 ha. para empresários, isto é, médicos, advogados, grandes comerciantes e grandes proprietários de terra. Quase 7% dos empresários controlam 39% da terra e 84% de trabalhadores rurais controlam 47% da terra. O governo do estado do Ceará reproduziu em pequena escala a concentração da terra existente no Brasil e assentou empresários urbanos. O governo passado adaptou ao Ceará os caminhos de Israel com os recursos de toda a sociedade, privilegiando setores que não eram de produtores, em detrimento da maioria dos produtores rurais.

 A imprensa critica o MST por aceitar que desempregados urbanos que já foram expulsos da terra anteriormente, sejam aceitos no movimento e tenham direito ao trabalho agrícola, mas até agora não li nenhuma crítica ao fato do governo do Ceará distribuir terras irrigadas e de alta qualidade, num Estado pobre de água e de solos de boa qualidade à empresários urbanos, profissionais liberais e comerciantes. Dois pesos, duas medidas. Seria bom se a imprensa, e mídia em geral, começasse a se comportar mais democraticamente.

O boné do MST na cabeça do Presidente feriu os brios da arcaica ideologia dos donos do poder. A única resposta para o desenvolvimento do Brasil e para por fim às iniqüidades sociais existentes na agricultura é reforma agrária. Agora!

 

* Raul Patricio Gastelo Acuña, sociólogo e membro licenciado do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará - CEPAC

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