ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

 DIGNIDADE E INDIGNIDADES

Raul Patricio Gastelo Acuña*

Quando os ilustríssimos servidores públicos pertencentes à mais alta Magistratura do Poder Judiciário decidiram, meses atrás, aumentar seus salários, o seu presidente, Sr. Marco Antônio Mello justificou o aumento declarando que esse novo salário correspondia à “dignidade do cargo”. Nessa insólita interpretação sobre “dignidades” que é usual e costumeira nos altos escalões do funcionalismo público, especificamente dos parlamentares que sempre recorreram a essa retórica para justificar seus auto-aumentos salariais e agora dos funcionários públicos encarregados da administração de justiça que também recorrem a essa retórica para justificar seus auto-aumentos, demonstra que há algo errado, algo profundamente errado.

 Não nos referimos ao fato escandaloso da disparidade salarial existente no país: Ministro da Corte Suprema recebe como salário aproximadamente 80 salários mínimos, Parlamentar Federal recebe sem as gratificações 50 salários mínimos e o Presidente da República recebe aproximadamente 40 salários mínimos. Pela lógica do Sr. Mello os cargos de Parlamentar Federal e de Presidente da República são menos “dignos” que o de Juiz da Corte Suprema. Aparentemente essa é uma tolice. Ninguém ousaria afirmar publicamente semelhante sandice, a menos que ela correspondesse a valores profundamente entranhados na nossa sociedade que difundidos diariamente pelos meios de comunicação e pelas declarações como as do Sr. Mello distorcem, por um lado, a realidade e, por outro lado, afirmam um dos seus aspectos mais perversos.

 Distorcem a realidade porque a dignidade com que se exerce uma função pública não guarda relação com o salário. Do contrário, a corrupção, as transações ilícitas, as negociatas, a apropriação indébita do dinheiro público só seria cometida por aqueles que têm os menores salários o que não corresponde aos fatos. As maiores falcatruas e desfalques dos cofres públicos são cometidos por pessoas que ganham altos salários. Por outro lado, essa afirmação revela algo real, revela como a iniqüidade social deste país, as escandalosas desigualdades e injustiças sociais são aceitas e expressam uma ideologia e uma forma de considerar as pessoas desde o prisma da desigualdade: os que ganham pouco ou nada não são “dignos”. E essa percepção da realidade social que aparentemente é cruel, injusta e estúpida é a percepção daqueles que vivem com altos salários e acumulam grandes riquezas se apropriando da riqueza produzida pelos trabalhadores.

 Reproduz o preconceito de classes em toda a sociedade que naturaliza essa absurda desigualdade. Permite que as iniqüidades sociais continuem. Em resumo, os “pobres” não são dignos ou são “menos dignos”  do que aqueles que ganham altos salários.  O Sr. Mello como tantos outros acredita no que disse. Ele não está mentindo e tampouco mentem os jornalistas que escrevem essas inverdades.

  E acreditam nessas inverdades porque em nossa sociedade a mercadoria, “a coisa” que assume a forma de dinheiro se transforma cada vez mais em objeto de culto e idolatria. Quem tem dinheiro e é rico é “digno”. Quem é trabalhador e é “pobre” é menos digno. A “dignidade” do cargo está em relação direta com o salário. Nessa ética que reduz as “dignidades” à coisa dinheiro, o menos digno é aquele que recebe um salário mínimo. O desempregado perpétuo, seja culto ou instruído, seja analfabeto ou pouco instruído, seja trabalhador braçal ou intelectual se transforma em uma categoria social inventada há pouco tempo pelos políticos e pelas “ciências sociais”: a de excluído social. É como um  paria indiano com roupas tropicais, que partilha, faz parte da sociedade, mas ao mesmo tempo está fora dela. Não tem salário e está excluído do mercado, falso deus, monstro e ídolo social e em nome do qual se toleram, aceitam e caucionam todas as misérias sociais e as pérolas verbais dos donos do capital e seus asseclas. O excluído assiste aos programas de TV, lê jornais na banca da esquina, fala com as amigas e amigos, vai a missa ou a qualquer culto religioso, mas está excluído, pois não tem dinheiro. E a falta de dinheiro o transforma em um não-ser social. E essa negatividade social é causada pela sua não inserção no mercado como consumidor.

 Esses excluídos por não terem a dignidade da posse do dinheiro que outorga o cargo são tratados como tais: como parias sem dignidade que só merecem a esmola dos “dignos”.

Nesta semana que passou 7000 pessoas, entre elas 3000 crianças, que ocuparam terreno baldio de propriedade da Volkswagen foram expulsas do local. A multinacional entrou com ação de reintegração de posse e o juiz acolheu a petição. Assim como chegaram se foram. Saíram em silencio levando seus escassos pertences e queimando os recém erguidos barracos de lonas. Essas pessoas na sua grande maioria são trabalhadoras e trabalhadores cujos salários não lhes permitem ter moradia e comer. Ou comem e moram debaixo da ponte ou moram em algum lugar pagando aluguel e não comem. Nem o Governo Federal, nem o Governo do Estado de São Paulo, nem a Prefeitura de São Bernardo do Campo fizeram alguma coisa, compra do terreno, cessão de algum terreno do Estado ou da Prefeitura e crédito de habitação para que morassem os Sem Teto. O problema parecia que não era deles. Não fizeram nada. O poder público não fez nada. Enfim, são excluídos e no último degrau da dignidade humana dos “indignos”. Fazem parte dos cinqüenta milhões de miseráveis deste rico país. São parias sociais e um “problema social”. Para nossos Governantes não é um problema nem do modelo econômico nem do perverso sistema econômico. É “problema social” e como tal não é responsabilidade de ninguém que se considere “digno” por ter um “salário digno” pago com o trabalho dos “indignos”.

 No mesmo sentido, outro exemplo de indignidades foi noticiado esta semana nos jornais. Em uma unidade daquele palco de horrores aceito e tolerado pelos “dignos” do país que é a FEBEM de São Paulo, há 672 jovens entre 14 e 21 anos de idade. Essa unidade comporta 62 pessoas. Os jovens que deveriam ser tratados como seres humanos pois é o que determina a Constituição Federal, a lei das leis do país, estão amontoados aí em condições subumanas, em flagrante ilícito legal cometido, consentido e tolerado pelo Governo do Estado de São Paulo, o Ministério Público que ante essa flagrante infração legal devia atuar de ofício e o Poder Judiciário que se omite diante desse fato. Os jovens da FEBEM são tratados como os escravos da antiguidade e como os escravos do nosso passado escravocrata. Presos em modernas senzalas de cimento.

A indignidade do país está nesses fatos, fatos que como esses são centenas, se repetem cotidianamente e não guarda nenhuma relação com os salários que recebem nossos Magistrados, pois só mentes alienadas podem estabelecer relações entre salários e dignidade da função pública.

A dignidade do poder judiciário residiria em não tolerar atentados fragrantes contra a Constituição. Lembremos que a Constituição garante como direitos essenciais de todos os brasileiros, salário digno que permita comer, se vestir e morar dignamente. E que exige que os presos sejam tratados humanitariamente.

 A dignidade do cargo não está no salário. A dignidade do cargo está no cumprimento das obrigações que exige o cargo e que se encontram inscritas na Constituição Federal e as leis do país. E essas obrigações não estão sendo seguidas pelos ilustríssimos Tribunais de Justiça. Caso contrário, já há tempos a Suprema Corte teria aceito qualquer recurso solicitando a inconstitucionalidade do valor fixado para o salário mínimo, já que não cumpre com os objetivos determinados pela Constituição. Também haveria negado a restituição de posse impetrada pela Volkswagem. O direito de necessidade está inscrito em todas as Constituições do mundo. Esse direito faz parte do direito à vida. E quem na urbe não tem onde dormir com sua família está em estado de necessidade, pois sua vida está em perigo. Direito universal que em forma pouco “digna” não foi respeitado pelos Tribunais de Justiça.

 O que nos faz indignos é nossa complacência com as “indignidades” sociais que se multiplicam todos os dias. Indignidade real é o salário mínimo e o desemprego. Nossos “servidores públicos” de alto escalão, especialmente os altos Magistrados do Poder Judiciário, Presidente e Parlamentares não serão mais ou menos “dignos” pelo montante dos salários que recebam, mas pela dignidade ética com que desempenham suas funções, e pela capacidade de se indignar diante das mazelas sociais representadas por cinqüenta milhões de miseráveis, cuja fome e sede de dignidade social nenhum programa contra a fome poderá saciar.

 

09 de agosto de 2003

* Raul Patricio Gastelo Acuña, sociólogo e membro licenciado do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará - CEPAC

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