ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

Os Limites da Ética na Política

Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

  Já tinha deixado de lado este assunto. Mas como uma interessada na cultura, e chamada por minha consciência, que me dizia que quando nos omitimos diante de certas realidades acabamos nos tornando cúmplices delas, resolvi sair do meu silêncio para falar de ética na política. Mais necessário isso se faz ainda, quando vivemos no país a discussão para o estabelecimento de novos parâmetros sobre tal matéria. Todos os dias acompanhamos pela mídia, e ao vivo, os resultados da corrupção, dos prejuízos causados por políticos, juízes e altos mandatários do Estado. A população paga o preço. População sem muito poder diante de Estado tão impositivo, nas suas várias instâncias, e ainda tão encarcerado nele mesmo. Quebrar o círculo vicioso das práticas pouco éticas nesse âmbito ainda é difícil. As conseqüências são funestas, pois se os próprios dirigentes do país, dos Estados e municípios fazem e deixam acontecer esse tipo de práticas, cada vez mais a cultura se degrada, nos seus valores humanos e éticos.Uma das causas de tal círculo vicioso é a ausência de democracia.

Já ouvi de algumas pessoas a idéia bárbara de que os brasileiros não são vocacionados para a democracia. E que eles gostariam de ter como representante um Rei e não um Presidente. E exemplificavam isso dizendo que o povo costuma batizar a todas as pessoas que se destacam no Brasil com os títulos de rei e rainha, como nos casos, entre outros, de Pelé e do cantor Roberto Carlos. É bom se perguntar se esses nomes não foram dados pela mídia que representa o pensamento de uma certa elite, que aliás se comporta ainda como senhores feudais. Bem que muitos deles gostariam de ser reis. Por outro lado, a mistura cultural, resultado da miscigenação e o pensamento mítico brasileiro, que traz na arte brasileira a Rainha, o Rei, a Princesa  e outros elementos mágicos e ricos da cultura, que ocorre também em outras sociedades, não pode ser simplificado e transposto para o terreno da política de qualquer forma. Aprofundando o assunto talvez cheguemos à conclusão de que o povo brasileiro precisa crescer, enquanto povo. Passar do mito, colocado como uma simples fantasia da população, para a política, como uma realidade terrível e pouco democrática, da qual o povo é sempre excluído e não tem muita participação, é pular de galho em galho e viver uma dualidade e fissura profunda. O mito brasileiro precisa se encontrar verdadeiramente com sua história e dar um salto.

 Em plena semana da independência do Brasil e fazendo um retrospecto de sua história não podemos dizer que nesse nosso Brasil brasileiro não houve lutas por democracia durante toda a sua ainda curta existência como país "independente". Mas o Estado extremamente centralizado, impositivo, burocrático e elitista, resultado de uma herança colonial imperial, e que se constituiu inicialmente como um Estado Monárquico, impediu de forma terrível, traumática e dolorosa, para os que lutaram e para os que assistiram, que a democracia se fizesse neste país. Dizer que o povo brasileiro não gosta de democracia é passar por cima de todas as lutas, dos esforços e dos ideais daquela parte da população brasileira que heroicamente nos honrou e nos honra, lutando por uma sociedade mais igualitária e justa, e que só há pouco tempo começou a ser resgatada de fato, por uma historiografia menos ufanista e menos oficial.

Mas as dificuldades de vivermos a democracia não é por uma questão de "falta de gosto", mas pelas dificuldades de se debelar e se depurar um Estado fusionado com um modelo econômico excludente, que sempre defendeu os interesses de poucos e combateu as outras expressões políticas da sociedade que representavam e representam os interesses da maioria da população. O Dragão-Estado brasileiro, esse mito e realidade que precisa ser transcendido, se constituiu como uma teia de relações político-econômicas complexas, mas que tem características profundamente autoritárias e mecanismos políticos excludentes da população.

A esquerda, e oposição - vale lembrar que essas palavras não são sinônimas, mas por causa desses mecanismos a esquerda tem sido sempre oposição no Brasil –  tiveram sempre que conquistar seu espaço político a duras penas. Nos Estados do Nordeste, em geral, essas teias políticas excludentes são muito mais fortes, e se definem através do "clientelismo". Os poderes judiciário, executivo e legislativo se interpenetram mantendo esse tipo de redes, onde o que conta é você ter um protetor ou ser um protetor ou padrinho. "Uma mão que lava a outra" é a máxima que define esse sistema e nele os partidos, com pouquíssimas exceções, são descaradamente chamados de siglas, porque enquanto partidos não representam nada, é um lugar onde tem caciques políticos, que podem a qualquer hora mudar de sigla. O que interessa é a rede do cacique. Nessa configuração não interessa capacidade técnica e nem compromisso ético com nada. Os critérios são outros. Quem não concordar com isso não tem muitas oportunidades nesse âmbito. A tal ponto que podemos aventar a possibilidade do Presidente Lula nunca poder ter chegado a Presidente, nem construído sua trajetória política junto com o PT se não tivesse migrado para São Paulo ainda pequeno. Conheci líderes camponeses cearenses, de esquerda, que tiveram como destino, por completa falta de apoio e oportunidade, ir vender alumínio na Praça da Sé em São Paulo. Esse sistema, que as pessoas em geral conhecem, mas sobre o qual não gostam de falar, permeia o aparato político e do Estado.

Se nas capitais é possível ainda um questionamento dessa situação, pela  existência de movimentos sociais, no interior é mais difícil, com exceções para alguns sindicatos e para o Movimento dos Sem Terra, mas sem muitas condições de ações locais. O clientelismo no interior dos Estados é ainda mais grave. A pobreza e a pouca dinamização econômica dos municípios torna a população extremamente dependente das prefeituras em relação a emprego, saúde e educação. A ausência de mecanismos democráticos, onde a população possa se manifestar ou vetar ações das prefeituras, gera mais clientelismo. Pois as Câmaras  Municipais, em geral são cooptadas pelo prefeito, por compra e outros favores, ou então, têm uma oposição muito pequena que não consegue fazer frente à atuação dos prefeitos.Os Conselhos Municipais criados no Governo anterior via de regra são anexos das prefeituras. Assinam e aprovam o que os prefeitos querem. O aumento da municipalização das políticas públicas federais, dessa forma, traz no seu bojo a possibilidade de cada vez mais se agravar essa situação.

No Ceará, em algumas prefeituras se constatam verdadeiras perseguições da população por parte dos prefeitos, que utilizam os recursos da prefeitura como se fossem dádivas suas para a população, e eles estivessem fazendo um favor às pessoas que a prefeitura contrata e presta serviço. Fatos como alguém perder o emprego na prefeitura por ter ido ao aniversário de uma pessoa adversária do prefeito, ou ter freqüentado a casa do adversário ocorre em prefeitura do interior cearense.Ou perder a concessão de um bar no pólo turístico da cidade, por ter apoiado uma candidatura para diretora de escola, que não era a candidata do prefeito.Os casos são inumeráveis. E isso cria um sistema de coerção da comunidade, de medo e de privação de liberdade. O estilo tirânico e persecutório dessas administrações leva à divisão das comunidades, das pessoas e dos costumes e estraga o tecido social. Não estão interessados realmente no desenvolvimento econômico do município e em políticas que gerem empregos e tornem a população independente. A grande preocupação dessas prefeituras é o recolhimento de impostos e o repasse das verbas do Governo Federal,  para deixar a população mais subjugada aos prefeitos e eles terem o controle político. Assim a alternância política é difícil, e a democracia também.

Na época de eleições ocorre a derrama de dinheiro e favores políticos, ainda que negados veementemente. Esses votos conseguidos e apoiados por toda uma rede, garantem a sobrevivência da mesma em instituições do Estado, nas Assembléias Legislativas, Governos Estaduais, e tantos outros mais.

A questão ética é muito séria, pois a escolha do secretariado desse tipo de prefeitura não privilegia critérios de capacidade para o cargo e nem de ética, mas o esquema é o mesmo e clientelista, e em geral prefere-se contratar aquelas  pessoas capazes de atuar dentro desse mesmo sistema, ou que não tenham escrúpulos para desviar recursos e fazerem outras mamatas sem deixar rastros. Existem secretariados especialistas em desviar recursos e ter as contas das secretarias e prefeitura bem arrumadas.Dentro desses critérios encontramos pessoas que são Secretárias de Cultura e que já foram condenadas por estelionato e que praticaram desvios de verbas, causando prejuízos à população de forma pública e notória.

Se os possíveis  prejuízos materiais advindos desse fato já são suficientemente deploráveis, pior ainda é o significado simbólico que esse fato assume para a comunidade. Ter uma pessoa estelionatária, com várias passagens por delegacias e causadora de prejuízos à população como Secretária de Cultura ou Educação é apostar no péssimo exemplo. Se não balizarmos o que é ético na política, e se as pessoas que prejudicam a sociedade e a população continuarem a ser premiadas e a ocuparem cargos que deveriam ser exemplos, premiando a corrupção e as falcatruas, não podemos ter esperança neste país. A população vai acabar mesmo acreditando que o melhor é roubar, matar, corromper, ser clientelista e tirânica, porque assim será premiada um dia, quem sabe, com um cargo de Secretária de Cultura ou similar.

A municipalização das políticas estruturais no Brasil e no Nordeste, particularmente, se constituem dessa forma, em perigo para a população. É hora de refletirmos o que realmente queremos para o Brasil. A continuar com acordos com esses tipos de prefeituras, sem exigências, formas de controle e questionamento por parte das comunidades, sem se criar mecanismos e espaços de participação real, onde a população tenha vez e voz, continuará a cultura da miséria, da indignidade, da corrupção e do clientelismo. Além de premiar prefeituras por recolhimento de impostos, o governo federal deveria também avaliar as prefeituras pela qualidade da relação com a comunidade, pela qualidade e capacidade do secretariado e pela ética e exemplos que podem trazer para a comunidade, antes de liberar recursos. Sem esquecer que na avaliação, a população deverá ser consultada, é claro.

Para quem acredita ainda que o povo não gosta de democracia é só procurar se informar sobre os casos de cidades, como Santana do Acaraú e Icapuí no Ceará, que tiveram índices de desenvolvimento exemplar com a criação de mecanismos de participação política e decisão da população em quase todas as esferas do município, com sucesso e melhoria real de vida dos seus habitantes.

A ética não poderá existir na política brasileira sem liberdade, sem democracia e sem a participação verdadeira e política das variadas expressões da população. Por enquanto, e já que estamos na semana da independência, ainda não temos uma independência para comemorar. Além da dívida externa do país, do modelo econômico excludente, temos um Estado e sistema político terrível, irredutível e clientelista para depurar. O povo brasileiro, apesar de ser ainda dependente, é sábio, e quando houver motivos reais para serem comemorados ele sairá novamente às ruas em festa.

 

 

Data:04/09/2003

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda - www.veronicammiranda.com.br

* Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

A FALA - www.cepac-ce.com.br 

Espaço Virtual do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará-CEPAC

Proibida a reprodução de artigos e textos

Todos os Direitos Reservados