ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

Francisco de Assis de Todos os Tempos

Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Falar de Francisco de Assis é falar de um arquétipo de nossa cultura ocidental. Além das fronteiras da religião Francisco de Assis ficou para nós ocidentais como um símbolo dos valores éticos, humanos e da experiência de alteridade radical, consumados no profundo amor, na compaixão e fraternidade. Quando Francisco de Assis surge com um chamado para “reconstruir ou reformar a Igreja”, que de início ele o fez como uma construção concreta até entender o significado maior desse chamado, poder-se-ia dizer também que as vozes que o chamavam eram muitas e ao mesmo tempo uma. Era o chamado do ethos, do centro, do eixo, do coração. Ali em um único lugar onde todos os outros são outros e um ao mesmo tempo. E dessa forma, a sua Igreja tornou-se a casa de todos, tornou-se a vida, o planeta terra, o cosmos, a vivência radical e profunda da natureza, a vivência radical do outro, e a paixão pela “dama pobreza”, em um desnudamento de todas as formas de poder.

 A sociedade e cultura da época tinham a Igreja como o poder temporal máximo. E era esse mesmo poder religioso e civil imbricado naquela sociedade que levava parte importante da mesma à miséria. Uma Igreja que guerreava por poder, era o próprio estado e poder dos poucos considerados bem nascidos. Era uma igreja do ter e não do SER, envolvida em uma burocracia corrupta e repressora. Quando uma cultura e sociedade chegam aos seus limites extremos de desigualdades, de repressões, de desumanidades, daí também surgirão os seus opostos, que procurando um eixo, um ponto de equilíbrio, de sanidade e de espiritualidade, se expressarão em busca de um sentido e de uma renovação. Francisco de Assis se ofereceu a essa tremenda empreitada, à reconquista do amor, da compaixão, do SER, de um eixo de uma sociedade extremamente desigual, inumana, que precisava de vida, alegria, justiça, fraternidade.

  Para isso não subiu ao poder temporal que era representado na época pela Igreja, mas se juntou aos pobres, aos miseráveis, aos leprosos, a todos aqueles que representavam a outra face não vista, não ouvida, não lembrada da sociedade. A outra face que poderia levar e mostrar uma outra perspectiva, uma outra vida, uma outra forma de SER. Em sua atitude ética, ecológica, espiritual e humana Francisco de Assis viveu a luz e a sombra de uma sociedade e cultura doente e desequilibrada, e através de suas práticas e vivências trouxe um movimento de transformação, outro sentido para a sociedade e cultura em que vivia. Francisco de Assis com sua ação histórica e espiritual tornou-se um ser humano de todos os tempos, daqueles tempos em que necessitamos voltar ao nosso eixo, ao nosso ethos.

  Os arquétipos como estruturas do inconsciente coletivo são vivenciados por todos, indiretamente e, às vezes, de forma distorcida. E são vivenciados diretamente por místicos, espiritualistas, artistas, poetas, pensadores intuitivos, políticos visionários e por aqueles que os vivenciam simbolicamente através da fé. No momento em que mudanças profundas começam a ocorrer no planeta terra, em que as sociedades e culturas estão sendo remexidas e convulsionadas, em que uma nova ordem econômica e política se desenha, em que a crise e o caos se estabelecem diante de princípios, conceitos e estruturas que já não servem, os símbolos e arquétipos que expressam um eixo, um sentido ético e espiritual, se fazem presentes num esforço de equilíbrio. Portanto, não é por acaso que o arquétipo de Francisco de Assis emerge agora de forma insistente. Emerge justamente no momento em que o planeta terra resmunga seu desequilíbrio com todas as forças, diante de um poder desmedido de um sistema global que privilegia o ter, em vez do SER, que privilegia a morte em vez da VIDA, que coloca em risco a existência do planeta e dos seres vivos e que escancara a desigualdade e injustiça social em nível planetário e regional. Francisco de Assis é um arquétipo da tolerância, da aceitação das diferenças, da irmandade da raça humana, mas que começa sua ação pelo pólo descompensado, pela parte injustiçada. Não existe amor verdadeiro sem esvaziamento de poder. É necessário se estar vazio para ser preenchido. Não pode existir fraternidade onde os recursos do planeta concentrados em poucas mãos não permitem a vida humana se fazer em suas necessidades mais básicas.

 Francisco de Assis foi também um sujeito histórico e como tal não podemos mais tê-lo, mas se aqui em nosso país, o Brasil, o tivéssemos, vale perguntar onde ele estaria agora? Coerentemente com suas lições de vida, história e arquétipo creio que estaria na luta com os Sem-Terra, engrossando as fileiras dos Sem-Teto, fazendo coro com os ecologistas e ambientalistas sobre a defesa da vida e da natureza, defendendo os indígenas, suas terras e impedindo o seu extermínio, tentando mostrar a face das desigualdades sociais, apaixonando-se pelas idéias e realizações daqueles que fazem parte da "dama pobreza", e mostrando como daí é que está se dando a incubação de uma nova sociedade e cultura.

 Não podemos ser Francisco de Assis. Cada qual com seu próprio destino. Não podemos também nos apoderar desse símbolo. Mas esse arquétipo, como expressão de uma necessidade da realidade está aí, e nos exige uma realização. Ele é de todos aqueles que com humildade reconheçam que somos aprendizes do amor, e que ao verdadeiro ethos só chegaremos quando nos desnudarmos do TER, onde o poder é o objetivo central, e aceitarmos sem trapaças, com as dores e alegrias do caminho, o SER, que anuncia a realização de nossos sonhos e utopias. Neste caso o hábito não faz o monge, às vezes é preciso dele desfazer-se.

 

12 de outubro de 2003

 

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda - www.veronicammiranda.com.br

* Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

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