ZOANDO NA CAATINGA

PONTO DE VISTA

O protagonismo do povo brasileiro

Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Ultimamente tem se insistido muito na idéia de que o povo brasileiro tem que ser protagonista na política brasileira para que a situação do Brasil mude. Vendo o significado no Aurélio do que seja protagonista - Pessoa que desempenha ou ocupa o primeiro lugar num acontecimento, percebo que mais uma vez o povo brasileiro está sendo injustiçado. Uma das maiores provas de protagonismo do povo brasileiro foi eleger nas eleições de 2002 um presidente vindo do povo, um operário da classe trabalhadora, que como a maioria dos brasileiros já passou fome, migrante da região mais pobre do país, identificado com todas as causas populares e dos trabalhadores, líder do movimento sindical e do partido de trabalhadores mais genuíno da América Latina, na sua formação, e com uma trajetória de compromisso ético com  a população e os movimentos sociais.

 Apesar de alguns  insistirem de que essa eleição só foi possível pelo apoio de uma fração da burguesia nacional através do pacto social ou pelo marketing político competente é necessário fazermos algumas perguntas. Será que um marketeiro não é competente principalmente por conseguir captar realmente o que está querendo a população e trabalhar sobre isso? Daí, e sem querer diminuir o trabalho do profissional, é importante reconhecer que parte do mérito desse trabalho está na luta e expectativa da própria população. Será que uma fração da burguesia nacional, além de discordante e prejudicada pela política econômica em curso, na época das eleições, não se aliou ao Partido dos Trabalhadores principalmente pela tremenda força política e legitimidade que ele tinha com o povo brasileiro? Será que ela não descobriu também que Lula apoiado por inúmeros movimentos sociais era uma força política importante e capaz de vencer as eleições?Assim viramos um pouco a questão como fez Nestor Kirchner na Argentina em relação ao FMI. A resposta à sua coragem foi uma verdade até então pouco aceita e discutida pelos temerosos. A verdade de que não só os paises latino-americanos precisam do FMI, ele também precisa dos latino-americanos. A situação de crise econômica e política em nível planetário e regional recoloca a necessidade que todos esses agentes terão, de renegociar para manter suas economias.

 Isso também tem outro significado que é a necessidade do reconhecimento de que o poder tal qual colocado em uma democracia representativa não está só de um lado, dos que mandam, mas está também do lado dos que votam e dos que se organizam para lutar por seus direitos. Isso pode e deve ocasionar perspectivas diferentes de pensamento e de ação. E é isso que faz com que uma realidade esteja em permanente movimento e possa ir adiante.

 Quando o povo brasileiro elegeu um presidente saído do povo, com a trajetória de compromissos com esse povo e com uma plataforma política voltada para ele, o povo brasileiro se tornou mais que protagonista. Todos se sentiram protagonistas naquele momento, porque elegeram um presidente  que era do povo, sua base e trajetória política era a trajetória do povo brasileiro. Esperava-se daí, portanto, que esse poder a ele concedido pelo povo através do voto, das ações do PT e partidos de esquerda, e dos movimentos sociais brasileiros significasse por si só que o povo era protagonista dessa história. O povo brasileiro conseguiu uma façanha nunca realizada por outro país latino-americano e pouquíssimo realizada no resto do mundo – eleger um operário Presidente da República.

 Mas, depois começaram a sair outras histórias. De que Lula havia chegado ao governo, mas não ao poder. É estranho e revelador para todos os brasileiros que vivem numa democracia com regime presidencialista ouvir dizer que um presidente não tem poder.Pois um presidente tem muitas prerrogativas, e mesmo considerando as dificuldades que possam surgir em um governo de país latino-americano, há um amplo leque de decisões que podem ser tomadas pelo poder executivo, além da prerrogativa de escolher o seu próprio ministério, nomear e exonerar uma quantidade quase infinita de  cargos no Estado. Ainda mais se considerarmos sua grande legitimidade.

 Com isso, vem outra revelação, a de que a democracia representativa não é a solução para o povo brasileiro, porque não adianta votar, lutar por candidaturas do povo, porque ele não chega ao poder dessa forma. Em outras palavras, isso pode ser entendido que não adianta a população se organizar e lutar para eleger alguém do povo, porque de fato o povo lhe concedeu um poder, mas não chegou ao poder, e dessa forma vem a pergunta : E esse poder que foi concedido pelo voto do povo brasileiro para onde foi? Será que o povo brasileiro lutou esse tempo todo para escolher um representante, para ser representante apenas de uma pequena fração do povo brasileiro? Melhor seria dizer de uma excisão do povo brasileiro, pois é isso o que foram durante vários séculos as elites brasileiras. Viveram e vivem não como brasileiros, mas como ricos de países ricos, de forma contrastante com a maioria da população, como se não fossem brasileiros.

 Dessa forma, outra reviravolta tem que ser dada no pensamento, no raciocínio. Não é a maioria da população brasileira que tem que ser incluída, mas a minoria. Ou seja, aqueles que vivem como pessoas de países ricos deverão se incluir nos padrões brasileiros para que a maioria da população possa viver com mínima dignidade. Pois a idéia de que o Brasil com o atual modelo econômico, e sua forma de inserção no capitalismo global possa vir a se tornar um país rico, tal qual os países do “primeiro mundo” não pode ser considerado um sonho, mas uma perspectiva completamente irreal e enganosa. As medidas redistributivas e reformas estruturais, portanto, deveriam ser feitas para incluir as elites nos padrões normais e justos. Dessa forma, também, quando a economia do país “crescesse  finalmente” beneficiaria a todos. Isso seria muito menos trabalhoso e oneroso, mas é uma questão de decisão política, que requer uma mudança de modelo econômico e requer o caminhar de uma democracia simplesmente representativa para uma democracia participativa.

 Dessa forma, é injusto também o que se anda a dizer sobre a auto-estima do povo brasileiro. Está bem, as elites passaram séculos dizendo que o povo brasileiro era “sujo, feio e malvado”, tal qual o filme de Ettore Scola. Ainda hoje  movimentos sociais brasileiros, reconhecidos no mundo todo, como o MST, elogiado por ser um movimento pacífico, organizado, educativo, com uma proposta humanitária de sociedade, tem seus integrantes chamados de “bandidos” e  são tratados como bandidos pelo Estado e pelas elites, que à moda de coronéis antigos contratam milícias privadas para reprimir direitos da população que estão na constituição, cometendo crimes e ficando impunes. Mas, além disso ainda dizerem que o povo não tem  auto-estima é demais. A auto-estima do povo brasileiro é muito boa, o povo brasileiro é muito bom e generoso, por apesar de toda miséria e estado de necessidade não ter deflagrado ainda uma guerra civil neste país, por não ter transformado seus movimentos sociais em movimentos de guerrilhas, por ter sempre procurado encaminhar os movimentos de forma pacífica. Vale lembrar que movimentos sociais como o MST não surgiram à toa, mas como uma decorrência das tremendas desigualdades brasileiras e do estado de necessidade da população, mais do que noticiadas nas últimas semanas, com o resultado da pesquisa do IBGE sobre os últimos cem anos de Brasil.

 Quem não tem auto-estima são as elites governantes que sempre entregaram a soberania do país aos agentes internacionais, que utilizaram os recursos de empréstimos, pagos de formas extremamente sacrificadas pelo povo, de forma perdulária, para financiar capitalistas capengas que nunca estiveram preocupados com a situação do país e da população.

 O que existe de genuíno no Brasil e reconhecido lá fora como expressão de brasilidade e de riqueza é fruto do trabalho, da criatividade e da auto-estima dos trabalhadores, inclusive o próprio MST. O resto, que é manejado pelo capital, inclusive suas grandes exportações é como hotel e aeroporto: é igual em qualquer lugar do mundo. Motivo pelo qual quando falamos de povo brasileiro, e aí vai embutida a questão da identidade, percebemos que há uma excisão, uma parte não integrada e que nunca suportou e nem quis incluir os outros brasileiros que hoje são a maioria. Essa excisão são as elites. Essas precisam ser incluídas naquilo que chamamos de “povo brasileiro”. São elas que têm que entrar nos eixos e adquirir auto-estima. Quando essa auto-estima for adquirida elas poderão entender porque o modelo econômico brasileiro não pode ser tão desigual. Alguém que tem auto-estima é capaz de estimar, amar e respeitar o outro. Se essas elites tivessem auto-estima atuariam de forma diferente e não seriam tão injustas. Vale lembrar ainda que distribuir esmolas é caridade e não justiça social. Algumas formas de caridade servem de justificativas para não se fazer a justiça social necessária. 

 Na conjuntura política que ora vivemos, uma luta de classes que estava latente e surda há séculos está irrompendo, mas diferentemente do que dizem alguns sociólogos, filósofos e pensadores brasileiros que esse conflito é natural em qualquer democracia, isso ainda não representa a tão sonhada democracia brasileira. Pois o conflito é muito desigual. A maioria da população ainda não consegue ter espaço para suas manifestações e lutas, pois apesar de ter eleito um governo para isso, o centro de direitos ainda não foi criado, o Estado também não iniciou sua democratização. E para haver democracia é necessário que seja garantido por esse mesmo Estado, que todas as partes possam se manifestar politicamente sem serem consideradas “bandidos”. É necessário ainda que os movimentos sociais deixem de se expressar simplesmente por um estado de necessidade. Que esse estado de necessidade extrema seja resolvido. E em relação a isso o que se espera é o protagonismo do governo eleito com essa finalidade. De um governo popular em uma democracia representativa o que se espera é que ele protagonize as mudanças sociais e políticas partes da plataforma política. Caso contrário, a população não vai mais esperar ou acreditar nisso, e vai querer fazer as mudanças com as próprias mãos. A democracia representativa não será mais necessária nesse caso.

 Lendo em jornal uma entrevista de José Maria Aznar, presidente espanhol, veio uma afirmação que as elites brasileiras gostariam de ouvir. Segundo ele um presidente não deve se preocupar com sonhos e utopias, mas em administrar o país. Um provável recado para o presidente Lula. Se isso fosse algo realmente aceito e querido pelo povo brasileiro não teríamos escolhido para presidente um operário, mas um administrador de empresas. Se o povo brasileiro não acreditasse em sonhos e utopias não teria eleito o presidente Lula. E quais eram os sonhos e utopias dos brasileiros? Ter uma sociedade menos desigual, poder viver com dignidade, poder ter emprego, terra, habitação, comida, educação, saúde; poder ter direito às expressões culturais e políticas; poder se sentir completamente brasileiro com direitos. Parecem necessidades tão simples e tão básicas, que talvez o primeiro ministro tenha na Espanha e outros nos demais países europeus e ricos, mas no Brasil a maioria da população não tem. Daí que ele lá na Espanha pode ser um administrador, ainda que eu duvide disso, mas aqui um presidente tem que ter sonho e utopia para poder conseguir em uma sociedade tão desigual cumprir esses sonhos tão simples da maioria da população.

 Nunca esqueço do último comício de Lula em Fortaleza, nas eleições 2002, quando ele foi abordado por um casal de camponeses emocionados, que diziam que finalmente depois de 16 anos eles veriam seu sonho acontecer: a eleição de Lula e provavelmente todas as mudanças que isso significava. E esse era o sonho e desejo da população que o elegeu. Rememoremos que toda a trajetória política do atual presidente Lula não teria ocorrido se ele não apostasse em uma utopia. Foi de uma utopia, de um sonho, que se transformou na prática um movimento de trabalhadores em um partido –o PT. Foi com sonhos e utopias que foi construída a trajetória do PT e foram sendo criados movimentos sociais tão importantes na política e sociedade brasileira. Foi de uma utopia que surgiu Lula como um líder.

 Daí que, na hora em que se conquistou um sonho dos brasileiros, dizer que não é possível a realização dele porque é necessário passar para a administração da realidade, significa parar o movimento. Significa se cristalizar no tempo. A permanência do sonho e da utopia, do desejo, é o que mantém o movimento para a frente, é a única forma de nos resolvermos como humanidade e de se encontrar soluções para os problemas. O movimento de mudanças, de compensação da sociedade e cultura brasileira, que se iniciou com a eleição de lula para presidente, não tem parada. Ela só tem mudança de rumo, mas não de finalidades. O companheiro Lula poderá, quem sabe, se assim o quiser, se transformar completamente em um “administrador de país”, como na concepção de Aznar, deixando de lado os sonhos e utopias de sua plataforma política e dos brasileiros que o elegeram, mas ficará sozinho com sua decisão, ou acompanhado pelas elites de sempre, a excisão do povo brasileiro. Ou seja, o movimento de mudanças continuará, mas por outros rumos e com outros protagonistas. Nessa perspectiva, se houver essa mudança para “administrador”, o presidente até pode voltar à porta de fábrica quando terminar seu mandato, mas aí já será considerado “pelego”.

 O que é necessário entender é que a população  brasileira deseja há muito tempo não somente um país de todos, mas também um país para todos.

 

29 de outubro de 2003

 

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda - www.veronicammiranda.com.br

* Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

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