ZOANDO NA CAATINGA

A VOZ DE VALDENIRA


Valdenira é uma paraibana do semi-árido, vivendo na confluência de vários Estados. Ela é da base da base. Não tem computador e me telefona sempre para dar notícias e falar suas impressões sobre muitos assuntos que afetam os brasileiros da caatinga e de todo o país. Coloco aqui sua fala e discuto com ela suas idéias, às vezes muito radicais e críticas, mas quase sempre cheias de razão e divertidas. Acompanhe.

Valdenira, e a saga dos heróis. Será que eles ainda existem e são realmente necessários? Vamos ver.

"Alôzinho, minha amiga. Meu amigo revolucionário anda meio embatucado. Tem gente que gosta de arranjar sarna pra se coçar. Como diz esse povo mais antigo que vivia apanhando: uns choram porque apanham e outros choram com vontade de apanhar.Eu vi ele assim concentrado demais e perguntei o que estava acontecendo, e ele disse: Valdenira, nós estamos vivendo um momento muito delicado e uma crise muito séria no Brasil. Estamos a um milímetro do fundo do poço. E eu disse: Mas, rapaz, num dizem que quando se chega no fundo do poço se encontra sempre uma saída, porque num pode descer mais. E aí lá vem ele agourando: É, Valdenira, você tem razão, o problema é qual a saída que vai ser encontrada. Em toda nossa história, nós brasileiros já tivemos muitas saídas de poço, e o problema é que sempre ficamos devendo algo, ou muito, à todo o povo e à sociedade. E é por isso que os problemas se avolumaram e chegaram aonde chegamos. Como disse o cantor Cazuza: Nossos heróis morreram todos!"

"E eu disse: Morreram mesmo, rapaz, e ninguém me avisou? Aí ele ficou doido com minha resposta, minha amiga, e disse assim: Olhe, Valdenira, é por isso que eu estou preocupado, por esse cinismo. As pessoas não acreditam mais em nada.Vivemos uma época de transição muito séria. Não podemos mais ser o que éramos, e esse salto no abismo para uma nova sociedade é um passo que exige coragem. É trabalho para heróis. Temos que rever nossos conceitos. Por que você acha que eu estava relendo o livro Que fazer do Lenin? Porque todos aqueles princípios que nos norteavam estão se desmanchando, estamos nos defrontando com um novo paradigma. Hoje não precisamos mais esperar que a "revolução", em um sentido novo da palavra, aconteça na União Soviética, nos Estados Unidos da América ou outro país pra depois acontecer aqui. O Haiti é aqui, e em qualquer outro país. Estamos todos envolvidos na "revolução silenciosa" e ela nos pegou a todos nessa conjuntura, queiramos ou não."

"Eu disse assim: Revolução silenciosa nada, essa daqui tá muito é da barulhenta. Todo dia sai barulho no jornal da televisão. É podre atrás de podre saindo das melhores famílias brasileiras de políticos. E o movimento social crescendo, porque ninguém é de ferro. Num tô vendo nada de silêncio, não. Agora essa sua formatação, como diz esse pessoal que trabalha com computador, tá ficando interessante. Revolucionário tem que mudar de acordo com os tempos, senão fica no passado. Num entendi direito foi esse silêncio."

"Ele disse: Valdenira, o silêncio é aquilo que está se gestando, por trás de toda tensão aparente. A tensão só existe porque não existe a aceitação do novo, porque não se quer reconhecer aquela parte da sociedade que existe e tem direitos. O erro é acreditar que a forma que vivemos, sem o reconhecimento do outro ou outros que fazem parte de nossa sociedade, é a melhor forma de viver. É nessa hora crucial que são necessários os heróis para mostrar os riscos de incorrermos nos mesmos erros do passado, sem considerar que o presente não comporta mais essas medidas paliativas e de remendos. Agora a situação é mais delicada. Os problemas do país estão expostos, a energia da mudança é vibrante, mas eu pergunto ainda:Onde estão os heróis desse processo? Será que eles não são mais necessários?"

Eu disse: "Mas, rapaz, num foi você mesmo que deu uma aula pro pessoal da comunidade sobre os heróis brasileiros: o Tiradentes, o Zumbi, a Bárbara de Alencar, e um monte de heróis desses que dizem pros turistas? Falou até daquele herói sem caráter, o tal de Macunaíma. Aí, minha amiga, ele começou com uma história muito da complicada, se ele continuar assim vai ser difícil o pessoal da comunidade entender ele. Disse assim: É, Valdenira, você disse bem. São heróis pra dizer pros turistas, mas quando nós precisamos deles numa conjuntura revolucionária eles nos falham. Quem quer se identificar com perdedores? Queremos ganhar as batalhas e as guerras, mas generais e quartéis não são pra esse tipo de tarefas, elas são para heróis e heroínas capazes de expressar os sonhos, vontades e necessidades do povo, e mesmo assim serem vencedores. Heróis que apontem para um novo tipo de sociedade.Todos os nossos heróis foram massacrados, e depois criaram o Macunaíma no modernismo. Mas o Macunaíma é aquele mito que representa aquela parte nossa necessária, perdida, brasileira, que não cresceu. Teve preguiça de crescer, ficou na saia da mãe e não se emancipou. Precisamos de heróis que carregando nossa brasilidade  sejam capazes de nos levar à emancipação. Queremos heróis vencedores."

"Aí eu disse: Só se for Jesus Cristo, que aceite ser crucificado, pra fazer tudo isso.Ele respondeu encima das buchas: Erro, Valdenira! Jesus Cristo nunca foi herói. Jesus Cristo é aquele que é. E o herói é aquele que ainda vai ser. Herói foi Jonas que foi jogado ao mar entre tubarões, foi engolido pela baleia e superou o seu medo de ser.Precisamos ser Jonas e superar o medo de sermos brasileiros, de conviver com aquilo que não é nosso espelho, de reunir todos os pedaços, mesmo que incômodos, de reconhecer o direito que todos têm de viver dignamente nessa sociedade."

"Eu disse: Rapaz, num foi você mesmo que disse, que saiu no jornal, que o presidente Lula disse que estava no mar cercado de tubarões? Ele respondeu: É eu disse. Nesta hora já deve também estar sendo engolido pela baleia. Minha preocupação é que Jonas só teve três dias dentro da baleia antes que ela fizesse a digestão. Se o presidente Lula não fizer como Jonas, e dentro da baleia ouvir o desejo mais profundo que o fez entrar para a política e lutar durante 20 anos por uma utopia, ele será transformado em sangue e cartilagem de baleia. Será transformado apenas em uma substância do monstro marinho."

"Minha amiga, aquela conversa tava grande demais, mas aí eu fiquei curiosa porque o meu amigo revolucionário tava mudando da água pro vinho, falando de Jesus Cristo e Jonas, aí eu continuei pra saber se isso já era efeito da tal revolução. Eu perguntei pra ele: Mas, rapaz, quer dizer que agora você é religioso, falando de Jesus e Jonas? Ele disse: Valdenira, todos os grandes líderes espirituais foram mais revolucionários do que religiosos, pois eles quebraram todas as regras, todos os dogmas, em momentos claves em que o ser humano e as sociedades precisavam crescer e se transformar. O verdadeiro revolucionário é aquele que se supera, que se transforma, ao buscar a transformação de uma sociedade e cultura.A totalidade do ser humano exige que o revolucionário seja político e espiritual, em um sentido abrangente. Há que se encontrar a justa medida, o caminho do meio. Hay que endurecerse sin perder la ternura jamás."

"Minha amiga, tem uma frase dessas aí que eu já tinha ouvido ele dizer. Parece que o passado não vai todo embora não. Aí eu disse pra ele: Mas rapaz, essa história de caminho do meio, tem umas pessoas que vivem com essa história na hora do pega pra capar. Dizem assim: Não, eu não vou entrar nessa briga aí, porque eu sou pacífico, sou do caminho do meio.Ele disse: É, tem gente que confunde alho com bugalho, e que acha que seguir o caminho do meio é igual a ficar encima do muro. Uma posição cômoda e preguiçosa, sem dúvida, pra quem gosta de ser herói tipo Macunaíma, o herói sem caráter.Todos os grandes revolucionários foram radicais, mesmo sendo pacíficos. Nada mais radical do que Ghandi, que aliás não ficava por aí só dizendo frases, como alguns dos seus seguidores, mas atuava de verdade. Podia fazer isso porque não era narcisista, como esses candidatos a heróis de hoje. O poder pra ele estava em outra esfera, não era só ego e mais ego, era um poder verdadeiro, capaz de mover montanhas."

"E, eu ainda encompridando conversa, minha amiga. Aí eu disse: Mas os políticos podem ser heróis também, não podem? Ele disse: Não esses sicofantas da caatinga. Eu disse: O que menino, que bicho é esse? Ele disse: Não é bicho não, são os embusteiros do semi-árido, de qualquer partido.Os sepulcros caiados. Só são comparáveis aos vendilhões do templo. Alguns compram e subornam com cargos, dinheiro e emprego numa época difícil, os outros que também são capazes de se vender até por uma tapioca. São os verdadeiros traidores da pátria. Não cumprem os seus papéis. Alguém pode dizer:Tudo estava escrito.Eu até concordo em determinado ponto, mas também digo: Tudo precisa ser revisto...e revirado. Mas vou continuar pensando no assunto. Precisamos encontrar uma solução pra essa questão dos heróis."

"Minha amiga, meu amigo revolucionário conseguiu me deixar preocupada, pois eu entendi que nós estamos numa peinha de nada e num tem herói. Eu ainda acho que talvez isso num seja necessário, mas é melhor sair caçando por aí. Numa dessas a gente entende o que é que precisa de verdade, né? Já vou, minha amiga, caçar herói por aí. Se não precisar, fica de enfeite. Depois ninguém precisa dizer que essa revolução num teve heróis.

Até mais Valdenira, que essa revolução aconteça de verdade!

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Valdenira despediu-se dizendo que não sabia quando voltava, afinal de contas não é todo dia que se faz revolução.No Brasil então...

 

julho 29/07/2003

Colunista: Verônica M.Mapurunga de Miranda
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