ARTIGOS

CRESCIMENTO URBANO E REFORMA AGRÁRIA

 Raul Patricio Gastelo Acuña*

Poucas vezes, submetidos ao ritmo alucinante da voragem urbana nos lembramos da terra, do campo, dos camponeses. Para muitos de nós, a lembrança do campo e dos camponeses evoca algo nostálgico, algo que já foi, lugar bucólico cheio de encantos e de vida simples e rústica que serve para pacificar a alma, escapando  em sonhos dos dissabores da vida  na cidade.  Raras vezes essa lembrança é reacendida. Nem mesmo quando entramos em enormes supermercados, abarrotados de frutas e verduras brilhantes, de aparência sadia e sem cheiro nos lembramos do campo. Muito menos quando sentimos de longe, apagado e distante, o cheiro do pão quentinho da padaria ou vemos o leite ou a manteiga embalados em plásticos reluzentes e aparentemente assépticos.  Na vida citadina não há lugar para os cheiros aromáticos dos produtos do campo.  E o plástico que envolve carnes, frutas e verduras nos distancia com seu hermético envoltório do tato, daquele prazeroso e pouco higiênico costume de tocar os produtos, de acariciá-los e sentir antecipadamente o prazer de degustá-los. 

Ou estaremos errados? E as embalagens? Será que  além delas  cumprirem as normas de higiene pública, estão aí para que não cheiremos o que não tem cheiro e nem toquemos o intocável? Ou estão aí para não percebermos os rastros difíceis de apagar dos agrotóxicos? Ou esse distanciamento, não é senão outra expressão ou outra forma em que se manifesta a longa distância que existe entre a imagem bucólica que ainda temos da agricultura e sua realidade atual. Tempos aqueles em que a cebola era cebola, em que se comia galinha e ninguém com dois dedos de frente cometeria a heresia de comer frango, em que o boi comia pasto e rodopiava no campo e somente mentes desvairadas o guardariam no curral alimentando-o com rações e hormônios, e os tempos atuais em que essa agricultura, que essa realidade imaginada  há muito tempo deixou de existir.

Mesmo assim, o rural está presente no que comemos, no que vestimos e no que calçamos.  Os produtos provenientes da agricultura perdida, ou melhor dito, modificada na sua aparente aura de inocência de décadas passadas, e contaminados com o pecado mortal da acumulação de capital, são atualmente mais abundantes e variados que outrora, e a população que trabalha na agricultura diminuiu drasticamente. Fiquemos por enquanto na mera constatação estatística. 

Em 1940, por estimativas oficiais, a população do estado do Ceará era de 2.900.000 pessoas.  De cada 100 pessoas que viviam no Estado 23 moravam em zonas urbanas e 77 na zona rural. Em 1990 essa relação é diametralmente oposta.  Por cada 100 habitantes 63 moram em centros urbanos e 37 em áreas rurais. A população que vive e obtém seu sustento de atividades econômicas vinculadas diretamente à agricultura aumentou nesses cinqüenta anos em 33% e a população que reside em zonas urbanas cresceu 1.100%. Fortaleza apresenta de longe o maior crescimento urbano do estado – tinha uma população de 400.000 habitantes em 1940 e, agora, em 2003 de 2.000.000. Quintuplicou o número de seus habitantes enquanto a população do Ceará como um todo dobrou. Algo similar ocorreu nos outros estados da Federação.[1]

 O número de habitantes nas zonas rurais apresenta no Estado, taxas negativas de crescimento, em termos percentuais e absolutos, a partir da década de 70 e elevadas porcentagens de aumentos de população nas áreas urbanas (média de 4.5%), que são muito altas em números absolutos. Esse aumento da população urbana é constante e crescente a partir da década de 50 do século passado. De forma menos acentuada essa “ruralização do urbano” ocorre também nas pequenas e médias cidades do interior.

Essa mera ilustração estatística chama a atenção em vários pontos. Deles somente destacaremos os mais gritantes. Primeiramente, a constatação de que nesse período houve grandes deslocamentos internos de população, das zonas rurais às zonas urbanas. Propositadamente estamos deixando de lado o fato do Ceará ser um grande “exportador” de pessoas para outros estados. Como esses deslocamentos são constantes e estáveis é difícil atribuí-los a catástrofes naturais, como a seca, que tem, é claro,  uma influência cíclica.  Como esta não tem caráter permanente não podemos usá-la como “bengala” para entender um fato permanente que é a “fuga forçada” de milhares de pessoas da zona rural.  Ou ainda culpar  a praga do “bicudo”, que dizimou o algodão que já estava “dizimado”.

  Amparados nessas explicações não compreendemos porque de forma permanente e ininterrupta, com seca ou sem seca, com bicudo ou sem bicudo os camponeses mudaram de ofício. Eles, que tinham como seu universo de referência o espaço agrícola, deixaram suas raízes, seus amigos e parentes, seus ofícios de agricultores, ou seja, a profissão e os conhecimentos adquiridos e passados por geração trás geração sobre a arte de viver como agricultores, para se aventurarem na realidade urbana.

A praga do “bicudo” explica ainda menos essa situação. O “bicudo” se assenhora do algodão na década de setenta, e os fluxos migratórios forçados aumentam a partir da década de cinqüenta.

 É também difícil de aceitar a outra opinião muito difundida sobre as razões desses maciços deslocamentos populacionais. Dentre elas o fascínio da urbe. Encandeados pelo néon urbano, pelos colégios e Universidades, pela riqueza cultural da metrópole, pelas oportunidades de trabalho bem remunerado, pela qualidade de serviços que oferece a urbe em saúde, água de boa qualidade e, em geral, melhores condições de vida, milhares de agricultores sem educação formal, sem nenhum conhecimento de algum oficio urbano sentiriam atração irresistível pela megalópole. Deixariam tudo para aventurar suas vidas e as de suas famílias em um lugar desconhecido, sem emprego, sem ofício e com um conhecimento de mundo completamente diferente ao conhecimento necessário para a sobrevivência no urbano.

 Há sem dúvida alguns agricultores, constituindo minorias insignificantes, que, sem dúvida, saíram a se aventurar na cidade grande. Mas, a grande maioria saiu por outra razão, muito mais simples de compreender. Não conseguiam sobreviver no campo e estavam com suas famílias morrendo de fome. E entre morrer de fome e ir para as grandes cidades a opção é clara para quem quer sobreviver.

Nenhuma das explicações – seca e bicudo – esgrimidas até o cansaço para explicar a miséria e o êxodo rural explica alguma coisa. De tanto serem repetidas transformaram-se nessa classe de verdades absolutas que mistificam e ocultam o drama dos milhares de camponeses que foram e são todos os dias “legalmente expropriados” e expulsos de suas terras.

 A seca, fenômeno da natureza, cíclico e permanente, explica muito melhor o colapso de uma determinada relação entre o Estado e os grandes proprietários do que a expropriação e migração dos camponeses. Na década de setenta do século passado quando termina o “milagre econômico” o país entra em crise econômica global e o Estado não tem mais condição de fornecer fartos subsídios aos grandes proprietários nordestinos. Sem subsídios a agricultura entra em declínio definitivo.

 Até essa data a seca foi o pretexto utilizado para justificar a preservação de uma lucrativa agricultura parasitária que privilegiou os grandes proprietários na manutenção e reprodução das arcaicas formas de dominação política, e que tinham pouca ou quase nenhuma relação com a exploração econômica capitalista de suas terras. À margem dos critérios capitalistas da eficiência econômica – alta produtividade e apropriação crescente de mais-valia mediante a adoção de inovações tecnológicas, o que implica necessariamente na “transformação” da natureza e minimização dos entraves naturais tais como a “seca”, velocidade na rotação do capital, organização e administração empresarial, entre outros, - esses grandes proprietários auferiam “lucros” pelo mero fato de possuir terras, de serem grandes proprietários e participantes ativos na reprodução do autoritarismo político.

Desde sempre e por todos os tempos, como diria um romancista, os grandes latifundiários nordestinos e seu séqüito de apaniaguados ganharam dinheiro preservando o atraso e lucrando com a miséria. 

           Essa migração e a pobreza dos pequenos produtores que permanecem no sertão cearense mostra o colapso do sistema de produção baseado na parceria como relação social básica, na exploração do binômio gado-algodão e que tinha como pano de fundo, essencial para sua permanência, os fartos subsídios do Estado aos donos da terra e do capital. Os grandes latifundiários apropriam-se do mais-trabalho de seus parceiros e moradores e da renda fundiária através de créditos subsidiados, repasse de verbas sem contrapartida econômica, tais como projetos que não saíram do papel e valorizaram suas propriedades pela apropriação de trabalho gratuito – as frentes da seca – e obras, sem custo para eles, de captação e armazenamento de água e de infra-estrutura.

Os grandes proprietários de terra cearenses obtêm e obtiveram lucros e rendas pelo mero fato de serem proprietários de terra às custas da maioria da população do Estado.

Aparentemente, foram a seca e o bicudo que expulsaram os pequenos produtores e levaram ao colapso a agricultura. Simples mistificação. A agricultura cearense sempre foi parasitária e dependente das benesses do Estado. Com a crise do “milagre”, que de milagre não tinha nada, caiu a máscara e a agricultura entrou em colapso com taxas negativas de crescimento e aprofundamento da migração e miséria rural.

 O ritmo de expulsão dos pequenos produtores de suas terras aumentou. A única alternativa de sobrevivência era sair do campo. Deixar de ser camponês, tentar a sorte na cidade e lutar por emprego ou qualquer outra forma de sobrevivência, como emprego doméstico para as filhas, e de vendedores ambulantes para os filhos ou catadores de lixo ou do que apareça. Quando não aparece qualquer ocupação caem na mendicidade e na prostituição.

Nas condições atuais, do colapso radical das políticas públicas e do descaso radical dos direitos sociais no país, especialmente na agricultura, a migração para as cidades é uma das poucas alternativas de sobrevivência dos pequenos produtores rurais. Não obstante, o Estado atual é o Estado mínimo. Estado este que anulou as escassas conquistas sociais, que é uma caricatura do Estado de bem-estar social e responsável das pungentes iniqüidades sociais. Neste Estado de escandalosa concentração de renda, nem as pequenas, nem as médias nem as grandes cidades têm condições de oferecer condições mínimas de vida aos que já moram nelas. Muito menos aos que chegam aos centros urbanos e que não têm nenhum preparo para sobreviver na urbe.

Em geral, as cidades do interior cearense, com a agricultura estancada e sem atividades econômicas geradoras de bens e de serviços, têm como atividade econômica principal, como motor dinâmico do mercado, as aposentadorias, os salários dos  poucos servidores do funcionalismo público federal - Banco do Brasil, Banco do Nordeste e Caixa Econômica Federal – o que restou do funcionalismo público estadual e do funcionalismo público municipal, notadamente os setores de educação e saúde, e alguns empregados das empresas prestadoras de serviços como COELCE e TELEMAR. As outras atividades geradoras de emprego tais como serviços domésticos, transporte, vendedores ambulantes, feirantes, empregados do comércio e similares são escassas e mal remuneradas. Como aponta o Banco Mundial, 70% das pessoas ocupadas no interior tem renda inferior a 2 salários mínimos.

Qualquer observador da paisagem urbana das cidades do interior percebe as mudanças acontecidas nos últimos vinte anos. As cidades cresceram em número de habitantes e em extensão. Crescimento desordenado, feito através de loteamentos e ocupação de terrenos que “favelizaram” as cidades e nas quais originou-se e se institucionalizou uma nova personagem que era desconhecida há 20 ou 30 anos: os pequenos produtores e suas famílias, expulsas “legalmente” da terra transformaram-se nos “favelados” do interior. Favelados que não tiveram nenhuma possibilidade de migrar para a cidade grande. Vivem em condições miseráveis e sem nenhuma perspectiva de melhorar suas condições de vida. Subsistem com os proventos de parcas aposentadorias, das “cestas da pobreza”, e do dinheiro que mandam parentes. Jovens condenados a migrar ou ao ócio. Esta sociedade, nossa sociedade, que nunca na sua história produziu tantos bens e serviços, nega aos jovens, a homens e mulheres com plena capacidade para trabalhar o elementar direito ao trabalho. Contradições do capitalismo: quanto mais aumenta a produtividade do trabalho se gera mais desemprego.

As políticas destinadas a recriar a grande propriedade estão destinadas ao fracasso. Os grandes e médios proprietários encontraram novas perspectivas de lucro parasitário: a reforma agrária solidária e o banco da terra. Pagamento muito acima do valor do mercado o que os levou a ficar em estado de liquidez. Deixaram de investir em novas benfeitorias e não colocaram um centavo na manutenção das existentes. Dificilmente investirão em suas fazendas para atrair novamente a mão-de-obra expulsa gerando empregos e dinamizando a economia local.

Por sua vez, a maioria das prefeituras do interior, não considerando o fato real e disseminado do uso perdulário e em benefício próprio dos recursos públicos, não têm nas condições políticas atuais, muitas possibilidades de ofertar serviços básicos à maioria da população: moradia, educação, saúde, água tratada, esgoto e transporte.

O Ceará, conforme dados do Instituto de Pesquisas Econômicas (IPEA) é o 4º  estado da União com piores condições de vida – renda per capita, saúde e educação – e Fortaleza é a 4º capital  estadual  mais miserável do país.[2]

Qualquer argumentação, qualquer comentário, qualquer justificativa que tente ocultar as determinações dessa realidade é ociosa, demagógica e falsa. Diante dessa crua e dramática realidade só medidas radicais para resolver o problema, e dentre elas a mais democrática, a mais barata e a que gerará maior ocupação e renda é a reforma agrária. A reforma agrária postulada pelos movimentos sociais e não essa caricatura falsa, cara e estúpida dos governos anteriores. Diante da radicalidade da miséria, cujo custo social, econômico e político nos arrastará inexoravelmente a perder os pequenos espaços democráticos ganhos depois de duros e dolorosos confrontos, a radicalidade da reforma agrária é a alternativa econômica, política e social de menor custo social para distribuir renda e minimizar o desemprego. Não devemos esquecer que a miséria não é conseqüência do atraso econômico é conseqüência da falta de democracia. Democracia que  cria direitos e não a “democracia” preconizada pelos defensores do capitalismo e do “livre mercado”.  Esse é um dos grandes desafios do governo do Presidente Lula. 


Abril de 2003

[1] IBGE -Censo Demográfico-1940 e 2000.

[2] Desenvolvimento Humano no Brasil -Ano 2000. IPEA. Brasília, 2001.

*Raul Patricio Gastelo Acuña, sociólogo e membro licenciado do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

A FALA - www.cepac-ce.com.br 

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