ARTIGOS

Lula e as desventuras da governabilidade conservadora

 Raul Patricio Gastelo Acuña*

 Somente pessoas ingênuas ou que não conhecem nossa história, recente e passada, podem pensar que a crise política do país não é grave.  Mas, essa crise parece romance saído das páginas de Alejo Carpentier ou do romance de Vargas Llosa, Pantaleão e as Visitadoras. No citado romance diante do aumento de estupros na selva amazônica do Peru, cometida por soldados dos postos militares fronteiriços, o Alto Comando do Exército peruano chega à conclusão que os estupros tem como causa a ausência de mulheres para atender as necessidades sexuais dos soldados. Encarregam a um oficial montar um serviço de atendimento sexual para as tropas através de prostitutas - as visitadoras. Os problemas do estupro são resolvidos e as operações de assistência sexual são montadas com invejável capacidade logística e operativa. A operação cai no domínio público. O Alto Comando nega sua participação na operação, pois comportar-se como reles alcagüete compromete as honras de um dos pilares da Pátria. O talentoso oficial designado para a operação foi considerado culpado e mandado a um distante povoado.O oficial tornou-se o bode expiatório da história. Montar um bordel, como uma operação militar, em plena selva amazônica é algo irreal e fantástico.

Tão irreal e que parece saído da pena de um talentoso e imaginativo escritor é a história do “mensalão”, denunciada pelo Deputado Roberto Jefferson do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).  Conforme a denúncia o Presidente, o Secretário, e o Tesoureiro do PT com a participação ativa do Ministro Chefe da Casa Civil teriam montado um sistema que comprava o apoio dos deputados do PP (Partido Progressista) e PL (Partido Liberal) aos projetos de lei do Governo Federal. Lembremos que o Presidente da Câmara de Deputados é do PP e que o Vice-presidente da República é do PL. Conforme a denúncia os deputados beneficiados recebiam R$ 30.000,00 por mês em dinheiro vivo, entregue pelo tesoureiro do PT que carregava pequenas fortunas na sua “mala preta”. O dinheiro para o pagamento do “mensalão” era arrecadado de empresas estatais e de empresários privados. Com relação às empresas estatais, de serem verídicas as acusações, chama a atenção a absoluta falta de controles financeiro internos. As “retiradas” de substanciosas quantidades de dinheiro não teriam sido percebidas nem pelo Tribunal de Contas da União, nem pela Controladoria, nem por ninguém. A montagem da operação “mensalão” requereria complexa operação logística, muitas pessoas envolvidas, sigilo e eficiência. No Congresso vários deputados afirmaram que o “mensalão” era vox populis. É uma operação fantástica, além da imaginação, mas ao mesmo tempo, aparece tão real que abalou profundamente os cimentos de nossa frágil institucionalidade, a credibilidade ética do Presidente e do Partido dos Trabalhadores e ameaça jogar no lixo a reputação de ética e dignidade construída pela prática política desse Partido diante da população durante 22 anos.

O insólito da denúncia é que o deputado Jefferson não apresentou até agora nenhuma prova. A cúpula do Partido dos Trabalhadores negou a acusação e apresentou o testemunho do Tesoureiro do Partido em desastrada conferência de imprensa. Porém, o Presidente Lula ao não negar veementemente as denúncias do Deputado Jefferson sobre o “mensalão” abriu a suspeita de que parte ou todas as acusações tivessem algum fundamento. Uma parte importante de deputados e senadores, conforme noticiado pela mídia, acredita na versão do Deputado Jefferson. Outra parte o ameaça com processos por calúnia e difamação, e outros ainda lhe recomendam visita urgente ao psicólogo.

A crise coloca de forma transparente a fragilidade do ordenamento jurídico e político do Estado que desembocou para a maioria dos analistas em crise de governabilidade. Alguns afirmam que pode acontecer o impeachment do Presidente Lula e outros, uma minoria, vêem o perigo latente de um golpe de Estado.  Para mim o problema está na opção de governabilidade do Presidente Lula, opção que aparece fragorosamente derrotada, e que o levou como disse Olívio Dutra às “más companhias”, como veremos a seguir.

 

O mar não está para tubarões ou está?

 

Curzio Malaparte, escritor italiano, cujo nome real era Kurt Erich Sucker, inventou seu nome profissional fazendo uma piada com Napoleão Bonaparte. Dizia Bona-parte tinha um nome bom e terminou mal, eu tenho um nome ruim, Mala-parte, e terminarei bem. Jornalista e romancista italiano, dono de uma pena brilhante e debochada, escreveu em 1931 um ensaio-reportagem intitulado A Técnica do Golpe de Estado. O ensaio é uma análise jornalística que até pouco tempo atrás era usado pela oposição em Kosovo.  O livro relata a ascensão ao poder de Hitler e Mussolini tecendo loas a Mussolini.  Curzio Malaparte foi fascista de 1922 até 1945 e depois simpatizante comunista e admirador de Mao Tse Tung até sua morte. Seus críticos e aqueles que o conheciam apontam que sua conversão tinha pequena dose de ideologia, grande dose de oportunismo e, sobretudo, amor aos donos do poder.

Lembrei-me de Malaparte quando li as acusações das figuras mais poderosas do Partido dos Trabalhadores (PT) à oposição com relação a CPI dos Correios : “A Comissão de Inquérito Parlamentar (CPI) para apurar a corrupção nos correios pretende acabar com a governabilidade e iniciar um processo de desestabilização do governo”. Já o jornalista Clóvis Rossi em sua coluna na Folha de São Paulo havia ironizado as acusações do núcleo dirigente do PT perguntando: Por que os donos dos bancos, ou os empresários do agronegócio tentariam desestabilizar o governo Lula se nunca ganharam tanto dinheiro como durante sua gestão? Quem estaria interessado em desestabilizar o governo? Duas visões opostas da crise política do Governo Lula. A posterior entrevista do deputado Roberto Jefferson à Folha de São Paulo aumentou  mais ainda o clima de incerteza políticas e trouxe á baila mais elementos que aprofundaram a crise.

Essa acusação à oposição e a resposta do jornalista não admitem no Brasil ou na América Latina respostas fáceis. É sobejamente conhecido, pois nossa história, que não é nem democrática nem republicana, tem demonstrado de forma transparente que a desestabilização de governos, sejam de direita ou progressistas têm sido o pão nosso de nossa história. Quem conhece a América Latina vive em contínuo sobressalto, a sensação que nunca me abandona é a de que estamos sempre sob um gigantesco barril de pólvora.

É interessante constatar que só um Presidente na conturbada história política do sul do continente sofreu um golpe de Estado por ser de esquerda, ou seja, por tentar subverter o modelo de dominação vigente. Nos referimos a Salvador Allende único Presidente de esquerda, eleito pelo voto popular, que comandou um governo apoiado numa coalizão de esquerda e cuja prática e ação política pretendia, pois havia sido eleito com esses objetivos, criar em Chile algo inédito na história política mundial: democracia com socialismo.

Sem dúvida a história registra outras situações pontuais na América Latina de dois ou três Presidentes que pretenderam combater a dominação política e as iniqüidades sociais com programas que eram considerados excessivamente progressistas para os padrões autoritários impostos pelas classes dominantes do continente. Alguns foram derrocados e outros assassinados depois de depostos.  Nos referimos, entre eles, ao Golpe Militar de 1955 na Bolívia que reprimiu brutalmente a revolução de 1952 nesse país e a Juan José Torres que por tomar medidas que feriam pontualmente interesses imperialistas e das oligarquias bolivianas foi derrocado por um golpe militar encabeçado pelo General Bánzer em 1971.  Asilou-se no Chile da Unidade Popular. Com o golpe de Pinochet pediu asilo político na Argentina o qual lhe foi concedido. Em junho de 1976, Juan José Torres foi seqüestrado, torturado e brutalmente assassinado por agentes da polícia boliviana com o beneplácito e apoio da ditadura Argentina. O governo militar argentino culpou como de praxe a "algum grupo terrorista". O que não explicitou é que esse grupo estava sob o comando das ditaduras bolivianas e argentinas.

Diferentemente do que pensam muitos analistas, os golpes militares na América Latina não são golpes contra Presidentes de esquerda que assumiram a Presidência com programas e práticas que beneficiassem majoritariamente aos trabalhadores e que ferissem os interesses dos que possuem o poder político e econômico.  Fora das exceções apontadas, na América Latina não tem havido Presidentes de esquerda. Ainda mais, a maioria desses golpes tem sido contra Presidentes que usurparam o poder mediante golpes de Estado ou quarteladas contra outro militar, independente de sua patente, que por sua vez também havia assumido o governo por um golpe de Estado ou por outra quartelada. Poderíamos dizer que não são golpes pela luta de alternativas econômicas, sociais e políticas. Não são golpes provocados pela encarniçada luta de interesses diametralmente opostos e pelo confronto de projetos políticos opostos, ou seja, formas diferentes de organizar as relações sociais e políticas. São golpes preventivos, como no caso de João Goulart, ou golpes pelas crises de hegemonia, regional e política entre frações da classe dominante, como no caso de Getúlio Vargas, ou simplesmente golpes oriundos das crises sócio-econômicas de nossos países, diante das convulsões sociais e das formas perversas de dominação política e econômica.

É difícil apontar nexos nitidamente causais entre os lucros de algumas frações da burguesia e a desestabilização dos governos desta parte do continente. As questões em jogo e os processos de desestabilização são muito mais complexos.  Podem ter, por exemplo, sua origem imediata em interesses feridos pontuais das classes dominantes nacionais ou multinacionais, que não seria o caso do governo Lula, ou podem ser ocasionados por afetar interesses de alguma fração da burguesia, ou podem ter sua origem no narcisismo doentio de algumas figuras proeminentes da política nacional ou podem ter sua origem no alijamento das mordomias governamentais a políticos, que têm horror de perder as mordomias que emanam do poder político. Poder político obtido e reproduzido através de práticas clientelistas e cuja lógica de manutenção exige o trato amigo e gentil de quem administra os cofres do país. Muitos dizem que também pode acontecer quando a corrupção atinge níveis extremos e não tolerados pelo sistema como no caso do ex-presidente Collor.

Falamos de extremos, já que é ingenuidade pensar que a corrupção não é inerente à administração da coisa pública no capitalismo. A corrupção se transforma em questão política desestabilizadora quando seus operadores são incompetentes politicamente e não socializam os “lucros” da corruptela com seus irmãos de classe ou porque deixam mais rastros que “ladrão de galinhas”, ou porque aqueles meios de comunicação descontentes com as verbas publicitárias que lhes são assinadas descobrem “repentinamente” nichos de corrupção em repartições púbicas.

Há alguns Ministérios nos quais todos sabem que a corrupção campeia livremente como, por exemplo, o da Previdência. Há muitos anos que periodicamente a opinião pública é informada de que foi “descoberta uma quadrilha de fraudadores da Previdência”.  Mas, há outras Empresas do Estado em que a cidadania fica perplexa quando é denunciado um foco de corrupção. Os Correios, orgulho dos brasileiros por sua eficiência e manejo administrativo e financeiro, acima de qualquer suspeita, deixa de ser orgulho. Somos agora informados que a Empresa não é muito santa nas licitações e outras questões amplamente divulgadas pelos jornais. Oportunidade que outro tipo de aproveitadores,  já está tentando obter lucros, propondo a privatização dos correios.

O importante é salientar que no Brasil como na América Latina, as “forças ocultas” a que se referia o Presidente Jânio Quadros, e que de “ocultas” não têm nada, estão sempre na moita esperando qualquer oportunidade para desconhecer a legitimidade dada pela formalidade das eleições aos Presidentes e se desfazer deles. Porém, a Técnica do Golpe de Estado de Curzio Malaparte não se aplica ao sul do Rio Grande. Possivelmente seu autor ficaria muito frustrado ao constatar que as teses do seu livro não se aplicam à gênese e desdobramentos dos golpes de estado da América Latina.

Mas, atualmente, e é impossível saber até quando, é evidente que a alternativa do Golpe de Estado não é cogitada na América Latina por ninguém. Nem pelas Forças Armadas, nem pelas classes dominantes. Além disso, contam com a forte oposição dos Estados Unidos que já avisou: Golpe de Estado nunca mais.

As crises, como mostram Equador e Bolívia se resolvem por outros mecanismos institucionais: renúncia ou impeachment. E sem dúvida é esse o pesadelo que atormenta as pessoas genuinamente democráticas do Brasil - que o Presidente eleito democraticamente se veja obrigado a renunciar ou que seja cancelado seu mandato via impeachment. Qualquer uma dessas alternativas seria desastrosa para a criação da democracia que ainda estamos muito longe de exercer.

 

Governabilidade e Crise

 Tanto os dirigentes do PT como a oposição apontam para um conceito fundamental que permitiria entender a crise atual: o conceito de governabilidade. Esse é um dos aspectos chaves que é manejado conforme seus interesses pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pela oposição.

Para o PT a oposição está criando artificialmente um clima de desestabilização. Como disse o Senador Mercadante, líder do Senado do PT, em discurso no Senado:"As elites querem derrubar o governo Lula, o único governo dos trabalhadores eleito na América. Foi isso que eles fizeram no Chile, e veja qual foi o resultado". Não é necessário dizer que comparar o governo Lula com o governo de Salvador Allende é o mesmo que comparar beterrabas com atas notariais. Não tem nada a ver um governo com o outro. O Senador neste caso perdeu a bússola da veracidade histórica. Por sua vez, o Ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, líder inconteste da oposição e sério candidato às eleições de 2006, disse que o governo parece “Peru bêbado em véspera de carnaval”. Senador e Ex-presidente apontam para o mesmo: crise de governabilidade criada artificialmente pela oposição para o PT, e produto da incompetência para administrar eficientemente os negócios do Estado para essa mesma oposição.

Uma coisa é clara. O Presidente Lula por ter perdido a iniciativa política, amargar derrota trás derrota no Congresso e nos Tribunais, sem apoio unânime do seu partido e muito menos desse caleidoscópio, ou melhor dito, desse amálgama fisiológico e de todos os sabores que é a “base aliada”, tem perdido nesta conjuntura as rédeas da condução política. Como dizem muitos analistas o país corre o risco de crises de governabilidade, fato este que colocam de perspectivas diferentes os políticos citados acima.

Mas, que quer dizer governabilidade? É uma palavra mágica, muito em voga em nosso continente, diante das recentes crises políticas de Equador, Bolívia e Argentina.

Em realidade este conceito atrapalha muito mais do que esclarece por ser marcadamente ideológico. O conceito de governabilidade foi criado pela Trilateral para Europa na década de 70 e devido às crises e instabilidade do México, Argentina, Venezuela, Equador, Bolívia e Peru, para  citar as mais agudas, seu uso disseminou-se na América Latina na década de 90. É um conceito profundamente equívoco que na sua formulação conservadora analisa os dois eixos da governabilidade, legitimidade e eficácia, com a velha filosofia do Príncipe Salina do Leopardo de Lampedusa. Mudar um pouco para não mudar nada mantendo sob controle as demandas populares.  Desde o ponto de vista conservador, nos seus fundamentos, a governabilidade, é um conceito ideologicamente gêmeo do neoliberalismo. A legitimidade se refere ao respeito à formalidade das eleições e a eficácia à garantia da liberdade irrestrita do mercado. De outra perspectiva isso significa o velho binômio: liberdade absoluta para as mercadorias, para as coisas, e restrições à liberdade e legitimidade das demandas dos setores populares.

O que interessa, e a isso se chama legitimidade política, é que os países tenham governantes eleitos nas urnas e que esse mandato seja respeitado. Mandamento que não se aplica muito bem a alguns países como Bolívia e Equador e que aparentemente diante da enorme legitimidade eleitoral do Presidente Hugo Chávez levou a Secretária de Estados dos Estados Unidos Condoleeza Rice a considerar que o conceito de legitimidade eleitoral deve ser revisado. Mas, o que importa e interessa é que a Comunidade Européia e os Estados Unidos já avisaram: chega de golpes de estado na América Latina. Há receitas mais civilizadas, como o impeachment, como os casos de Carlos Andrés Pérez na Venezuela, Collor em Brasil e Salinas no México. Ou a destituição sumária de Presidentes em caso de graves levantamentos populares, sem golpe de Estado, assumindo o Vice-Presidente para garantir a continuidade “democrática” e a voz das urnas, como nas situações de Gonzalo Sanchez de Losada e Mesa em Bolívia ou Lucio Gutiérrez em Equador, ou ainda renúncias dos Presidentes como na Argentina pelo “bem da nação” (De la Rua e Duhalde), ou simplesmente fugas como delinqüente de quinta categoria, como no caso de Fujimori em Peru e Salinas em México.

O outro aspecto da governabilidade desde o prisma conservador é a eficácia para administrar os recursos públicos sem comprometer os pagamentos da dívida externa, o que exige enxugamento dos gastos sociais para ter superávits fiscais e a inflação sob controle. A diminuição dos gastos em programas sociais tais como educação, saúde, seguridade social, reforma agrária, moradia e outros é condição sine qua non para manter a eficácia da governance.

Essa visão conservadora da governabilidade é profundamente contraditória: Em primeiro lugar, as eleições formais não resolvem o problema da crise de representatividade política, em países como Brasil, com longa tradição de práticas políticas e formas institucionais autoritárias e arcaicas que não respondem às necessidades democráticas. Devemos lembrar que a América Latina, especialmente aqueles países cuja limitada institucionalidade democrática foi quebrada pelas recentes ditaduras militares não enfrentam o desafio, como muitos analistas colocam, de consolidar a democracia senão o desafio muito mais complexo e profundo de destruir a institucionalidade herdada das ditaduras e criar a democracia. A segunda  contradição é evidente: A governabilidade só é possível quando os governantes atendem demandas básicas de vastos setores da população que incluídos, mesmo que precariamente nos mercados de trabalho, consumo e pagamento de impostos indiretos estão excluídos do acesso a condições de vida que lhes permitam sua digna reprodução como seres humanos.

 Desde a perspectiva conservadora a governabilidade consiste na elaboração de uma engenharia social de dominação emanada da cúpula do Estado que castre as demandas sociais como pleno emprego, salários dignos, legislação trabalhista, reforma agrária e outros, reprimindo e atenuando sofisticadamente ou com a força bruta dos aparatos repressivos os conflitos, de forma tal, que eles não ameacem a taxa de lucro e a estabilidade da dominação político-econômica.

 Porém, os Fóruns Sociais Mundiais têm elaborado outro conceito de governabilidade que vai além do binômio formal de legitimidade e eficácia. A governabilidade se refere nesta perspectiva à criação ou invenção permanente da democracia na qual tem um papel privilegiado a interlocução e articulação permanente entre a cúpula dirigente do Estado e a sociedade civil, notadamente os movimentos sociais. A governabilidade pressupõe um novo conceito de democracia que está além da formalidade eleitoral. Pressupõe um deslocamento do eixo da tomada de decisões da cúpula dominante para formas moleculares de participação política cotidiana e formas ampliadas, como referendum e plebiscitos em questões centrais e que afetem decisivamente as relações sociais, econômicas e políticas entre as pessoas e que possibilitem eliminar a miséria degradante da maioria da população. Esse tipo de consulta ampla seria para temas relevantes tais como sistema previdenciário, sistema de tributação, participação e sob determinadas condições de pactos ou alianças multilaterais como ALCA, reforma agrária, reforma do sistema político e judiciário e outros que afetam decisivamente a vida cotidiana das pessoas. A eficiência do Estado está dada pela sua racionalidade e transparência no atendimento das demandas sociais e sua legitimidade pela criação de direitos sociais e econômicos e obrigações sociais debatidas pública e abertamente com a sociedade civil e plenamente aceitas por esta. 

Lamentavelmente para as 52 milhões de pessoas que votaram no Presidente Lula, este e o PT optaram claramente pelo modelo de governabilidade conservadora. Esse modelo ao impor a submissão absoluta às necessidades de acumulação do capital financeiro internacional e das taxas de lucro do grande capital nacional e internacional bloqueia a governabilidade ao condenar à miséria parte importante da população, desestruturar o mercado de trabalho, criando o emprego temporal e instável e atingindo frontalmente a auto-estima e autodignidade das pessoas que vivem em neuroses permanentes acossadas pelo fantasma do desemprego. Só uma informação mostra o horror da governabilidade conservadora: de acordo ao Radar Social, publicação do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) órgão do Ministério de Planejamento, 1% das pessoas se apropriam de 50% do Produto Interno Bruto e 4 de cada 10 pessoas ganham menos de ½ salário mínimo. O desemprego na Região Metropolitana de São Paulo conforme o DIEESE oscila entre 16 e 18%.  Com essas taxas de miséria e de desemprego não há país governável, pois o tecido social e as relações de sociabilidade estão profundamente cindidos.

Em nome da eficiência e legitimidade formal o pacto de governabilidade conservador mantém a governabilidade com negociatas escusas, com alianças políticas fisiológicas e com a aceitação de condutas políticas renhidas com a ética e a transparência que deve nortear a administração da coisa pública. Nada deve assustar o mercado e assim se toleram pessoas em altos cargos da Administração Federal para que o capital especulativo usurário não se assuste e desestabilize a economia.

Essa lógica perversa norteou desde o começo a gestão do Presidente Lula. Só para citar os exemplos mais conhecidos. O Ministro Chefe da Casa Civil, José Dirceu deveria haver sido demitido quando vieram a público as tramóias do Sr. Waldomiro. Devia ter sido demitido porque é inaceitável que um alto funcionário escolha um assessor com livre trânsito no Planalto que seja um delinqüente. Sem dúvida, o Ministro é completamente inocente, mas não pode ser Ministro quem não sabe escolher seus colaboradores. Os casos do Sr. Meirelles, Presidente do Banco Central, e do Sr. Jucá, Ministro da Previdência Social são estarrecedores. Quando o Procurador Geral da República solicita que sejam processados é porque existem fundamentos convincentes de que suas condutas são passíveis de serem enquadradas como criminosas. Não são rumores ou opiniões de jornalistas. São processos encaminhados pelo Procurador Geral da República e ninguém ousaria insinuar que o Procurador Cláudio Fonteles é leviano. Em qualquer país eles seriam sumariamente demitidos. Aqui se sugeria que pelos menos fossem afastados até serem esclarecidas as denúncias.

É possível que as denúncias do Deputado Jefferson não sejam provadas. É possível que o sejam. Mas, não há dúvidas que a governabilidade conservadora, opção política do Presidente Lula e que desembocou na crise política atual chegou ao fundo do poço. Penso que a única opção política do Presidente Lula e que lhe permitiria recuperar a credibilidade política seria romper com a camisa de força em que se meteu - a governabilidade conservadora. O fracasso dessa opção bate na porta da maioria dos países da América do Sul porque não resolve nenhum de nossos problemas políticos e sociais. Pelo contrário, os aumenta e cria a permanente ingovernabilidade.

A verdadeira governabilidade só poderá existir quando se governar olhando para a maioria da população e não para o grande capital. Quando junto à maioria da cidadania se criar e inventar a democracia que tanto nos falta.

13 de junho de 2005
 
*Raul Patricio Gastelo Acuña, sociólogo e membro licenciado do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

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