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A Reforma Eleitoral: outro mostrengo à vista

 Raul Patrício Gastelo Acuña*

Usualmente nas crises políticas surgem variadas vozes das diferentes classes e estratos de classe que indicam ou sugerem os caminhos de saída, as formas de superar as crises. Em nosso país diante da grave crise que atravessa o país quase unanimemente se aponta como saída a reforma do sistema político. Essa reforma está centrada unicamente em uma Reforma Eleitoral.

De início há algo errado. Reformas políticas são necessárias para aperfeiçoar a democracia que é como disse um autor “criação e invenção permanente”. Portanto, a reforma política é muito mais abrangente que uma reforma eleitoral. Além disso a reforma política para combater a corrupção tem a marca do que suprime, do que reprime, de mecanismos criados para impedir alguma coisa, neste caso, a corrupção, e não para “criar” democracia. Daí derivam-se seus objetivos que, como veremos, negam a democracia ao propiciar que o voto que é só um aspecto menor da democracia formal seja ainda menos representativo da vontade dos eleitores.

Sem dúvida, a reforma política é fundamental, mas não aquela que está ou será debatida no Congresso. Uma reforma política teria que modificar substancialmente as bases da institucionalidade herdada da constituição de 1988. O projeto de lei da reforma eleitoral é uma monstruosidade que não contribui em nada para melhorar os hábitos, não mui santos, dos Partidos Políticos e de seus dirigentes e muito menos para aperfeiçoar um dos aspectos da democracia formal que é a representação política da cidadania.   Mais uma vez, amparado na legítima ira e ceticismo dos trabalhadores há intenções não reveladas de nos enganar e ludibriar mudando para pior o sistema eleitoral e de representação política sob pretexto de impedir a corrupção nos processos eleitorais.

A tal reforma, nos termos anunciados pelo Presidente Lula e os Partidos Políticos - financiamento público das campanhas eleitorais, voto de lista e não nominativo, fidelidade partidária e cláusulas de barreiras aos partidos pequenos - são mais um mostrengo que a autodenominada “classe política” pretende empurrar goela abaixo na sociedade. Ainda mais que essa discussão envolve questões complexas que a cidadania não está obrigada a conhecer e que até agora nenhum partido político teve a gentileza de explicar. Deviam fazer isso, pelo menos, no horário eleitoral, em vez de cansar nossa paciência, dos eleitores, com falácias e frases ocas.

Os argumentos dos defensores da reforma são simplórios, primários e não resistem a nenhuma análise partindo da perspectiva de que o tal mostrengo ajude a “criar” democracia. O argumento de que erradicaria os focos de corrupção política também é falaz. A justificativa é pouco convincente. Fazer a reforma política para combater a corrupção é a mesma coisa que dar um “mensalão” aos bandidos para que não assaltem bancos.

A democracia deve criar mecanismos de controle e fiscalização, especialmente da sociedade civil para que a ação dos partidos políticos e dos eleitos pelo sufrágio seja transparente e penalizar com cadeia a quem é corrupto, especialmente àqueles que abusaram da confiança que neles depositou a cidadania e usam o cargo para roubar, praticar nepotismo ou favorecer os amigos.

Para evitar dúvidas, estou considerando como corrupção eleitoral a compra do voto dos parlamentares, a lavagem de dinheiro sujo nas campanhas eleitorais, a invenção de contratos de gaveta com empresas do estado para saquear mediante prestações de serviços dissimuladas o erário público, e o tráfico de influências para alterar manhosamente normas de licitação ou licitações que favorecem os doadores clandestinos.

  O caixa dois é indicativo de corrupção. Quando o doador não quer que seu nome seja conhecido e entregue ao conhecimento público é por algumas das razões apontadas acima. Lembremos que o doador público pode abater parte da doação do imposto de renda e se graciosamente renuncia a esse incentivo legal e doa sem que essa doação conste da prestação de contas e sem recibo é por alguma razão ilícita.

Mas, pensar em reforma política com o objetivo de criar mecanismos para inibir a corrupção é primeiramente assumir que todos somos corruptos e que qualquer eleito sucumbirá às malas carregadas de dinheiro. Pressuposto este que é falso, pois os corruptos e os que corrompem são uma minoria no país. E em segundo lugar, porque a corrupção não se evita através de leis. Por último, na sociedade capitalista cujo objetivo é o lucro e na qual a relação entre as pessoas é através da mercadoria, através das coisas, a corrupção é inerente ao sistema. Não há nenhum país capitalista em que não exista corrupção. Em alguns é mais escandalosa que em outros, ou menos acintosa, ou menos aberta. Mas, existe em todos eles. Seria tolice dizer que esta corrupção, a das malas, caixas dois e cuecões é própria do ser humano. A corrupção atual do país é uma produção social de determinado sistema econômico, político e social, no caso, o capitalismo brasileiro e suas formas inescrupulosas de dominação política.

Em outros sistemas sociais a corrupção não estava centrada na aquisição de vantagens econômicas e lucros ilícitos como no capitalismo, no qual a categoria simbólica e real das relações sociais está centrada nas vantagens econômicas, no lucro, e é pela quantidade de riqueza material que ostenta que a pessoa será melhor ou pior considerada no seu convívio social.  Em outras formas de organização social, feudalismo, tribal e outras, a corrupção estava centrada em outros ganhos ilícitos que não eram econômicos e que tampouco atingiam todo o espectro social como é hoje. Possivelmente em todas as sociedade humanas pretéritas houve corrupção, mas as formas concretas que ela assume são históricas e diferem nos seus objetivos últimos. Na nossa sociedade é para obter lucros ilícitos. Na Roma imperial para obter privilégios com os deuses, na Grécia antiga para alimentar o ego de Zeus e no Velho Testamento para comprar a primogenitura por um prato de lentilhas.

Pensar que a reforma política acabará com a corrupção do sistema político é santa ingenuidade, pois a corrupção e o aliciamento são imprescindíveis à manutenção das formas de dominação da sociedade burguesa. A título de exemplo e sem intenções de aprofundar nesta questão que mereceria análise mais prolixa o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES) tem um orçamento de R$ 60 bilhões. Uma parte desse orçamento provém do Fundo de Amparo Social ao Trabalhador (FAT). O tesouro remunera aos trabalhadores com juros de 3% ao ano e empresta quase todo esse dinheiro aos grandes empresários industriais e agrícolas, brasileiros e estrangeiros, com juros camaradas, ou seja, subsidiados. Os trabalhadores subsidiam aos grandes empresários para que os explorem com mais requinte, isto é, modernizem suas empresas gerando, entre outras coisas, mais desemprego. Essas são as formas elegantes da corrupção das classes dominantes contra os trabalhadores. Porém, a fila de empresários solicitando créditos é maior que o dinheiro disponível. Como são escolhidos os empresários beneficiários do crédito? Adivinhem? Tudo de forma legal, sem dúvida. Por exemplo, nas privatizações do governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso o BNDES emprestou dinheiro a juros subsidiados às empresas que compraram as empresas de telefonia e de distribuição de energia elétrica. Tudo legal, mas que nitidamente é corrupção ela é.

A corrupção política é minimizada quando o sistema em si mesmo impede que esses focos de corrupção emerjam e floresçam como flores de cloacas. Está fora dos objetivos deste artigo tratar como a Constituição de 1988 foi um arranjo entre as classes dominantes e os Partidos Políticos tolerados e permitidos pela ditadura que cederam em alguns pontos, mas mantiveram intocados os mecanismos que impossibilitam a construção da democracia.

Com relação à representação política mantiveram três senadores por Estados que é uma herança do pacote de abril do General Geisel. É o único país do mundo em que existe essa aberração que há sido mantida para preservar privilégios espúrios de coronéis e caciques regionais. Ou seja, a reprodução de formas de dominação política que negam a democracia. A desigualdade na representação política é gritante: 18 votos dos paulistas valem o voto de um eleitor do Acre. Sem falar de outros casos aberrantes, como a quantidade de assessores parlamentares que não passam de cabos eleitorais e que representam tremenda desvantagem para aqueles que concorrem por primeira vez a um mandato. Não seria boa idéia limitar a dois o número de assessores parlamentares?

Sem falar da escandalosa disparidade de salários dos representantes do povo, dos altos cargos do executivo e da cúpula do poder judiciário com relação ao salário mínimo. Considerando as vantagens inerentes à “dignidade” do cargo o salário desses “funcionários do povo” é superior a 100 salários mínimos e a mais de trinta salários médios de trabalhadores de São Paulo registrados com Carteira de Trabalho. Essa é uma das corrupções mais abjetas de nosso sistema de dominação social. É imoral de qualquer ponto de vista esse abismo salarial. Por que não limitar o salário das altas cúpulas da burocracia do poder executivo, legislativo e judicial a 50 salários mínimos? Esse abismo social, 50 x 1 já é escandaloso, mas por alguma parte há de se começar. E sem dúvida, depois dos veementes protestos da burguesia e dos trabalhadores pela máquina de corrupção montada por alguns dirigentes do Partido dos Trabalhadores não haveria problemas para implementar essa medida. Ou haveria reclamações mil e os protestos não passam de lágrimas de crocodilo da burguesia, dos representantes do povo e da alta burocracia do Estado?

Qualquer área pública que seja rascunhada na sua superfície vai revelar situações escandalosas, vai revelar as abjetas imoralidades que sustentam nosso sistema político.

E agora, a “classe política” pretende acabar com a corrupção através do financiamento público das campanhas eleitorais. Para começo de conversa esse financiamento já existe. É a propaganda eleitoral por rádio e TV. Ou alguém pensa que essa propaganda é gratuita? É paga com nosso dinheiro, com o dinheiro arrecadado com impostos, aos canais de rádio e TV que cobram por esse serviço. As empresas de comunicação estão aí para ganhar dinheiro e nunca fazem caridade pública com partidos políticos ou candidatos. Além desse pagamento, cada partido recebe do fundo eleitoral outra dinheirama, que é em torno de R$ 50 milhões para cada partido “grande” e que também pagamos os trabalhadores. E agora como dizem alguns comentaristas, mais uma vez, o andar de baixo, a “plebe”, arcará com R$ 800 e poucos milhões/ano para financiar as campanhas eleitorais. O financiamento público da campanha não inibe a corrupção, pois partidos e candidatos não recorrem ao caixa dois por falta de dinheiro para suas campanhas. O caixa dois é independente da maior ou menor quantidade de recursos de partidos e candidatos. Seus objetivos são outros. Recorrem como já foi dito ao caixa dois, os doadores ou corruptores e aceitam essas doações os corruptos por razões ilícitas que não tem nenhuma relação com a maior ou menor quantidade de dinheiro utilizado nas campanhas eleitorais.

 Por que os doadores permanecem no anonimato? Essa é a questão e é ingenuidade, ignorância ou má fé pretender que com o financiamento público vai terminar o financiamento ilícito das campanhas eleitorais. É muito mais transparente que quem contribua apareça com seu nome e o montante da “doação”. Todos podem contribuir sempre e quando essa contribuição seja pública. Ficaria muito claro para o eleitor que interesses representam os candidatos e coibiria parcialmente, no futuro, favorecimentos ilícitos. Poderia evitar a lavagem de dinheiro em grande escala e poderia minimizar a importância do caixa dois e outros mistérios. Além disso, cada candidata (o) e o Partido deveriam colocar as doações na internet. Em todo o escândalo atual, há uma situação inexplicável. O Partido dos Trabalhadores (PT) aparentemente, pelo tipo de campanha, gastou um pouco mais ou um pouco menos que os outros grandes partidos nas campanhas de 2002 e 2004. Comparada com a do PSDB eu diria que este Partido, pelo menos em Fortaleza gastou muito mais. Por que, então, as despesas do PT aparecem tão elevadas com relação aos outros partidos? Ou todos os Partidos utilizaram caixa dois, ou esse dinheiro foi para o mensalão ou os dirigentes do PT se apropriaram de milhões de reais em beneficio próprio.

A única forma real de minimizar a corrupção eleitoral é sanção penal e civil drástica a corruptores e corruptos. Candidato que infligisse a lei teria seu mandato cassado e não poderia ser novamente candidato por um prazo de dez anos. No caso de ser o Partido, teria seu registro cancelado e todos os eleitos na legenda perderiam o mandato. As denúncias teriam tramitação sumária por iniciativa de qualquer cidadão ou Partido Político. Punições rápidas e severas é a única forma de terminar com essas pragas políticas sistêmicas. 

Uma segunda questão diz respeito à representação política. Deveria ser adotado o voto distrital puro. Cada distrito elegeria um deputado conforme o voto proporcional. O voto distrital diminui o custo da campanha, possibilita o controle e o contato do eleitor com seu representante e permite que o representante conheça os problemas do distrito e fiscalize in loco a aplicação das verbas federais. O voto distrital permite acabar com a instituição absolutamente antidemocrática do suplente. Morreu ou ficou inabilitado o titular antes de cumprir a metade do seu mandato  convoca-se eleições para esse distrito.

Com relação à propaganda partidária por TV e rádio deveria ter um tempo menor o que baratearia seu custo.

Na proposta de voto por lista fechada é o Partido que confecciona a lista e os eleitos serão aqueles que estão em primeiros lugares. Ou seja, o eleitor não sabe por quem vota. Essa disposição favorece o autoritarismo e os arranjos de cúpula. Esse sistema é uma burla à vontade do eleitor, pois este dá um voto em branco à direção do partido. Não há nenhum sistema eleitoral que represente realmente a vontade do eleitor e estabeleça representações políticas que reflitam a eqüitativa proporcionalidade e sua vontade. Mas, a lista fechada é o pior dos mundos, pois a soberania popular é delegada ao pequeno círculo que dirige o partido que escolhe os eleitos a seu bel prazer.

Com relação à fidelidade partidária, esse é outro autoritarismo que impossibilita a expressão da minoria dentro do Partido. A fidelidade partidária tem basicamente dois aspectos: votar conforme a orientação do partido e mudança de legenda. Com relação à primeira é problema a ser resolvido soberanamente pelos estatutos de cada partido e a lei não pode se imiscuir na vida partidária interna. Com relação à mudança de partido o parlamentar ou governador ou prefeito ou vereador perderia o mandato. O cargo é do Partido e não da pessoa, pois essa pessoa foi eleita pela legenda e os votos dos outros candidatos da lista. Obviamente e para evitar arbitrariedade essa cláusula não seria aplicável quando o eleito fosse expulso pelo partido.

A legislação eleitoral na medida que é um dos aspectos fundamentais da democracia e como sua negação, já que, a delegação de soberania é a negação da democracia e por isso falo de democracia formal, é uma parte pequena da “criação e invenção permanente da democracia”. Daí que a reforma política, que não vai além de uma mera reforma eleitoral, para que seja realmente política deveria revogar a Constituição de 1988 e convocar a uma Constituinte para elaborar uma nova Constituição que seja submetida à aprovação da cidadania. É próprio de uma Constituinte que seus membros cessam no seu mandato, pois só são eleitos com essa finalidade, uma vez elaborado o projeto a ser apreciado pela cidadania. Os constituintes distorcem o significado de uma constituinte quando são juiz e parte ao mesmo tempo, situação que aconteceu com a Assembléia Constituinte que elaborou e aprovou a Constituição de 1988 por ser constituída de deputados e senadores eleitos com outras finalidades. Além disso não foi submetida a um referendum popular.

A convocação da Constituinte é fundamental nestes momentos de aguda crise do sistema político. E entre outros aspectos a nova Constituição deveria determinar e incorporar como princípio central a participação direta da cidadania, através de plebiscitos e referendum, em todas aquelas questões que modifiquem de forma importante seus direitos e obrigações como, por exemplo, reforma da previdência social, reforma tributária, reforma trabalhista, reforma agrária, incorporação a mercados regionais ou sub-regionais, mudanças ecológicas profundas como uso ou proibição de transgênicos ou transposição de rios como o São Francisco ou em questões complexas como legislação sobre aborto e células tronco.

Usando as palavras de moda, a proposta de sermos Republicanos não passa de frase de efeito se não construímos a República Democrática. Nossa “jovem democracia” para repetir outra frase para enganar incautos é meramente formal, pois o cidadão só elege representantes que nunca escutam seus eleitores e que mudam suas propostas e programas utilizando mil subterfúgios.

Além disso, não se pode falar de democracia, jovem ou velha,  num país em que 44 milhões de pessoas não têm que comer e 5.500 famílias se apropriam de 44% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, ou seja, de quase a metade da riqueza gerada por 100 milhões de pessoas. 

 

06 de agosto de 2005
 
*Raul Patrício Gastelo Acuña, sociólogo e membro licenciado do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

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