ARTIGOS

Da crise mundial, de Barack Obama, do Fórum Social Mundial e de nossos destinos: seremos filhos do pântano ou do pantanal?

 Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Entrei o ano de 2009 como muitos brasileiros, muito atarefada,  e nem por isso menos sintonizada com os acontecimentos da virada do ano. Os anúncios da tempestade da crise mundial do capitalismo, no seu centro, postos nos noticiários, devem ter chamado a atenção de muita gente que não sabia, de fato, que vivia em um sistema capitalista e que este tinha crises periódicas. Há pouco tempo, eu mesma vivi um fato interessante sobre isso, com um menino de doze anos. Entrevistando seu avô, produtor rural, ele se intrometia na entrevista aqui e ali, querendo dar sua opinião. Conversando sobre o modo de vida de antigamente com seu avô ele resolveu dar sua opinião e disse: Antes, quando meu avô tinha minha idade, ele ia para a escola à cavalo. Hoje quando eu vou para a escola, já preciso de uma bicicleta. Mas, eu não sou capitalista. Eu ia perguntar a ele porque dizia que não era capitalista, curiosa que eu estava por ele usar esse conceito. Mas, o avô já incomodado com as interferências do neto pediu que ele se retirasse. Mais tarde, o encontrei com outro grupo de pessoas e resolvi perguntar-lhe porque disse que não era capitalista e ele respondeu-me: eu uso bicicleta pra ir a escola, mas eu nunca vou sair daqui pra ir pra nenhuma cidade ou capital, como muitos fazem. Entendi, então, rindo do meu engano. Capitalista para ele era quem migrava para a capital.

Mas, se parte da população não sabe o que é capitalismo ou capitalista, os detentores dos meios de produção sabem que estão no sistema capitalista, conhecem algumas de suas regras, como concorrência, lucro, mais-valia ou apropriação do trabalho alheio para obter lucro  e tantas outras coisas mais. Há também aquelas pessoas, inscritas nos movimentos sociais e intelectuais que o analisam e o combatem nas suas selvagerias. A dificuldade de todos, entretanto, está em entender suas crises. Há um certo número de empresários se debruçando sobre os escritos de Karl Marx para buscar compreender o que pode advir da crise que está sendo anunciada como uma das maiores do planeta, e de nossa história, já que o capitalismo está mundializado. Por ironia do destino, os mesmos que acusavam a esquerda de utilizar os pressupostos marxistas estão agora necessitando deles, já que Marx foi o único que estudou com seriedade, rigorosidade e método as crises do tal animal metafísico - o capital.

Esperamos contudo que aqueles que se debrucem sobre esses escritos não fiquem somente nos cálculos econômicos, mas procurem entender os processos e movimentos que o tornam um sistema perverso, porque funciona sempre para acumular e concentrar riquezas. E aí reside o "grande mistério" que muitos não querem entender, das grandes desigualdades sociais e concentração de renda. O sistema capitalista, além desse movimento peculiar de concentração de riquezas, nas mãos de uma ou poucas classes sociais, também aliena o ser humano, da sua totalidade, da natureza, da sua condição humana. Tendo como objetivo e categoria central o lucro, corrompe os valores e transforma tudo em mercadoria. É pois, um sistema corrupto e corruptor em sua essência e a mercadoria uma fantasmagoria, que pelo nível de abstração na sua realização, Marx quando a estudava foi chamado pelos filósofos da época de metafísico. Ao que ele respondeu, que metafísico não era ele, mas a própria mercadoria.

De fato, no livro primeiro de O Capital, no capítulo I que analisa a mercadoria, ele coloca essas sutilezas no item chamado "O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo": "À primeira vista,  a mercadoria parece uma coisa trivial, evidente. Analisando-a, vê-se que ela é uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas. Como valor de uso, não há nada misterioso nela, quer eu a observe sob o ponto de vista de que satisfaz necessidades humanas pelas suas propriedades, ou que ela  somente recebe essas propriedades como produto do trabalho humano. É evidente que o homem por meio de sua atividade modifica as formas das matérias naturais de um modo que lhe é útil. A forma da madeira, por exemplo, é modificada quando dela se faz uma mesa. Não obstante a mesa continua sendo madeira, uma coisa ordinária física. Mas logo que ela aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa fisicamente metafísica. Além de se pôr com os pés no chão, ela se põe sobre a cabeça perante todas as mercadorias e desenvolve de sua cabeça de madeira cismas muito mais estranhas do que se ela começasse a dançar por sua própria iniciativa."* Marx nos parágrafos subseqüentes continua falando sobre o "caráter místico da mercadoria", seu "caráter enigmático", o "misterioso" de sua forma e seu "cárater fetichista". Daí porque recomendo a todos, mesmo não sendo economista político, filósofo ou cientista social, a ler mais o capital e entender entre outras coisas muito mais misteriosas da América, porque ela tem que ser desvendada como um livro místico em todos os sentidos, como diz John Done. Daí, também, entender a corrida de alguns intelectuais para a leitura e revalorização de Mariátegui, que trabalha as categorias centrais de Marx, considerando, porém, a riqueza, a  diversidade cultural e, por que não mística, das Américas.

Para não me enfrentar somente com os labirintos econômicos e filosóficos do tal "bicho" eu recorro a uma imagem poética de Vicente Huidobro, no poema Altazor, que fala do ser humano, mas que bem poderia falar do capital como sendo "un animal metafísico cargado de congojas". Difícil de compreender, ele existe, no entanto, e distribui penas e tristezas, que carrega pelas classes desfavorecidas e pelas periferias de nossas formações sociais americanas.

Nos centros motores do sistema, ou seja, nas regiões economicamente mais ricas dos nossos países e nas regiões mais ricas do planeta está o seu coração, que, como abelhas rainhas, as classes que o detêm comem a geléia real, o néctar das riquezas, deixando para as periferias o labor e o trabalho das abelhas operárias. A cada crise no seu sistema, pondo em risco seu coração, ele se remodela para continuar vivo  e para isso, como um zumbi ou vampiro que precisa de sangue vivo para continuar existindo ele tem que sugar mais, concentrar mais alimentos até à morte ou à diminuição das condições de vida do restante. Seu coração e centro nervoso não podem parar, senão ele morre. É verdade, que boa parte da população trabalhadora desde sua formação, que é histórica, trabalha para isso - ver seus últimos estertores, para a criação de uma nova ordem econômica e social, mais humana, mais equânime e mais livre.

 É importante assinalar o que dizem os estudiosos da crise econômica, situando-a como uma crise de valor. E isso no capitalismo significa uma crise no coração do sistema. Eu diria que é uma crise também de valores, pois ela mexe com os fundamentos da nossa civilização.  Os estragos feitos, portanto, no coração do capitalismo, depois de ter sido feito o mea culpa pelos idealizadores das políticas econômicas neoliberais e especulativas do sistema financeiro, coração já implantado do capitalismo, chegou assim se anunciando como uma tempestade para todo o planeta e onde o capitalismo se apoderou com seus tentáculos. Na periferia, apreensivos, ainda vivemos a perplexidade e as especulações. Vivemos, de fato, momentos de hesitações, apesar de algumas pequenas medidas anunciadas  pelo governo com o fim de atenuar os efeitos do vendaval.

É nessa brecha, do desmoronamento das políticas econômicas neoliberais nos Estados Unidos da América, que assistimos o inusitado, o insólito, da eleição de um democrata negro, profissional liberal favorável aos direitos humanos e à paz nas relações dos Estados Unidos com o resto do mundo, chamado Barack Hussein Obama. Ainda perplexos vimos depois de uma campanha eleitoral sui generis ele chegar à sua posse repetindo o seu bordão de campanha: Sim, nós podemos.

Não me lembro de ter assistido alguma posse de presidente norte-americano antes, mas esta, apesar de estar tão atarefada não pude deixar de acompanhar alguns flashes. Além de histórica a posse de Barack Obama trazia um emblema de liberdade, de reconhecimento e de importância da raça negra, que adquiriu repercussão mundial. Não me lembro de ter visto um casal norte-americano tão bonito e simpático ocupando o primeiro posto na Casa Branca americana.  O bom gosto, a elegância, a naturalidade e charme com que desfilavam na posse e durante as recepções e comemorações, mostrava que aquele era um lugar que já poderia ter sido deles há muito tempo. Estavam, pois, em casa, e no seu lugar de direito. Mas, quando, sob a linda e poderosa voz de Aretha Franklin, a câmera enfocou os rostos compungidos dos milhares de cidadãos negros que ali estavam se reconhecendo de uma nova forma, com um  pouco mais de esforço nós poderíamos  enxergar os pássaros que voavam de cada um, como se cadeias tivessem se quebrado e a liberdade mais uma vez tivesse sido alcançada. Algo indizível e que, apesar da importância e peso naquela solenidade, não era o mais importante, nem o mais ressaltado no discurso de Obama.

Eleito para tirar o país da crise, Barack Obama com todos os seus predicados e suas representações culturais e éticas, colocou-se como um presidente que tem um sonho, o sonho americano. Eles "são a América" e isto significa poderio, império, riqueza, e nisto esteve calcada sua auto-estima americana, a vontade de fazer e superar todas as dificuldades que tiveram, as lutas, guerra de secessão, apartheids e reconstruções. Por isso e mesmo sendo opositor ferrenho de Bush durante as campanhas para as eleições e das críticas feitas às terríveis políticas por ele realizadas, agradeceu no seu discurso a generosidade do ex-presidente. Qualidade e predicado que infelizmente nem nós brasileiros,  nem o resto do mundo com quem Bush manteve relações no seu governo, pode constatar. A outra decepção inicial foi a manutenção de quadros de funcionários de Bush no manejo da economia, que pretende, pelo visto, ser conservadora. De qualquer forma, no meio da crise e das infinitas possibilidades de termos como presidente um sucessor de Bush todos levantamos as mãos para os céus e dizemos: aleluia! Não vou fazer um retrospecto da história dos Estados Unidos e nem fazer analogia com a do Brasil, porque são obviamente diferentes desde a colonização, mas vou me fixar em um ponto que acho importante: No fato, triste fato, de que representamos em termos econômicos parte da periferia desse sistema que está em revoluteio lá no seu centro, e  no fato de que os norte-americanos, no centro, têm um sonho reconhecido, um sonho americano que à sua simples menção todos reconhecem. Não por acaso ele está em todos os discursos.

Na esteira desse sonho Barack Obama vai tentar resgatar os Estados Unidos da crise, como seja. Um sapato chinês duplo: pela complicação do caso e, segundo os especialistas, pelas relações com a China. Eles estão no coração do capitalismo  e por isso, como diria Marx se estivesse nos assistindo, estão no meio do caldeirão alquímico do capital que já começou a ferver. Nesse caldeirão estaremos também nós, ainda que agora somente pelas rebarbas, mas logo, logo, ferveremos com todas as substâncias do "bicho". A pergunta é: como sairemos dessa, depois dessa transmutação dos elementos? De que forma sairemos ou ficaremos, quando se armarem todas as paliçadas defensivas, protecionistas, medrosas, dos países e regiões geoeconômicas, diante da necessidade de  sobrevivência e do salve-se quem puder? Eu não estou querendo ser agourenta, mas parto de algumas constatações que venho anunciando em vários artigos que fiz de 2003 a 2007, de que precisamos criar o nosso centro de convergências, o nosso espaço de consenso em vários sentidos, para não nos fragmentarmos como nação em momentos cruciais como esses pelo quais vamos ter que passar. Sem esse ponto de consenso, sem esse sonho, que apesar de tudo os norte-americanos têm, nós não agüentaremos o repuxo. E isso significa também, por outro lado, o que venho falando sobre a manutenção de um sentido a se perseguir, desde que começaram a ocorrer as transformações no nível da cultura no Brasil, com a campanha da eleição do presidente Lula. As transformações políticas foram e estão sendo lentas no que se refere principalmente ao Estado. E agora, com a possibilidade de uma dêbacle econômica essas questões pendentes e não resolvidas virão à tona. O modelo econômico calcado na idéia do crescimento econômico de "periferia subjugada", a continuar da mesma forma nos levará mais rápido à fervura do caldeirão da crise.

Escrever cartas para Barack Obama, como estão fazendo alguns jornalistas na mídia dita independente, não resolve nada nessa altura dos acontecimentos.  Como canta Roberto Carlos: carta já não adianta mais. Trata-se de se buscar o nosso próprio sonho e não andar à reboque do sonho do Barack Obama ou dos norte-americanos e Cia. Ltda dos países centrais do capitalismo. Deixemos eles de lado, e nos concentremos nas outras forças que nos liga e que nos dá sustentação. Se eles podem, nós também podemos. Diremos então a eles: Yes, We can.

E é aqui que entra em cena as duas alternativas políticas e econômicas que foram se construindo nessa contraditória fase de mudanças culturais: por um lado, o ressurgimento das relações econômicas e políticas entre os países irmãos da América do Sul em um processo regional de mudanças políticas, possibilitando a formação de uma região geoeconômica, que já se iniciou. A outra, mesmo de forma paralela, foi o surgimento, alimentação e nutrição do Fórum Social Mundial, que manteve acesa a chama do sonho, do sentido da possibilidade de um outro mundo diferente, incluídos outra economia, política e visão da cultura. A unidade na multiplicidade, a ecologia, a criatividade, as novas formas de pensamento e de relações de poder, gerando-se na incubadora dos movimentos sociais.

Não por acaso, no Fórum Social Mundial em Belém, realizado recentemente, estavam cinco presidentes desses países latino-americanos, em um claro indício de que precisam do apoio da sociedade civil e do sentido que os movimentos sociais emprestam às mudanças que estão ocorrendo e que ainda precisam ocorrer na América Latina. Dentre elas  está a necessidade de mudança do modelo econômico do Brasil e a realização de reformas estruturais. Davos não tinha este ano e nem terá por um bom tempo nada a oferecer à esses países. Os Estados nacionais na América Latina e particularmente no Brasil sofrem de velhice, sem sabedoria. E em estruturas carcomidas, remendo sai muito caro e não resolve, melhor seria, portanto, esses Estados, não só gozarem ou quererem o apoio dos movimentos sociais, mas assumirem o sentido que os move, que é a direção certa para encontrarmos esse espaço verde, esse reino das portas verdes, portas abertas para o futuro. Caso contrário, vale a pergunta: será que teremos futuro, como país e como povo?

Vendo os planos da estrada que liga o oceano pacífico ao atlântico, passando por vários países de nossa América e que se chama Transoceânica, vejo o ponto verde no meio do caminho, no Pantanal, o ponto de convergência no meio dessa estrada, que une todos os sonhos de uma nova região geoeconômica e política, e que pode vir a fundar uma nova civilização.

Nós, por nossas escolhas brasileiras, nesse momento de crise e "transmutação alquímica do capital" podemos nos tornar, bem como as futuras gerações, filhos do pântano, sem futuro, vagando pelo mundo, perdidos e fragmentados, ou poderemos nos tornar filhos desse pantanal, com toda a sua riqueza, transmutados para viver e construir uma nova civilização latino-americana, baseada em outros pressupostos de vida. A nossa América Latina nos acena, chamando para o sonho da pátria grande, e já estamos colocando nela os nossos pés. "Tesouro perdido de nós, distante do bem e do mal, filhos do pantanal".**

 

* Marx, Karl. O Capital: crítica da economia política . Tradução de Régis Barbosa e Flávio R. Kothe. Livro Primeiro, Vol. I. 3.ed.  São Paulo, Nova Cultural, Os Economistas, 1988. p.70.

** Clique aqui e veja a letra completa de Pantanal, de Marcus Viana.

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda -www.veronicammiranda.com.br
Data: 19/02/2009

*Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

 

A FALA - www.cepac-ce.com.br 

Espaço Virtual do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará-CEPAC

Proibida a reprodução de artigos e textos

Todos os Direitos Reservados