ARTIGOS

Réquiem para Michael Jackson ou Os Dilemas da Cultura Cibernética.

 Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Réquiem para Michael Jackson porque ele precisa ser chorado. Enterrado não se sabe onde, depois de grande show ou grande e espetacular evento, como propagandeou a grande mídia, Michael Jackson se foi e não pode ser chorado como um ser humano comum. Não estaria falando sobre este tema e respeitaria sua vida e sua morte, como um luto a que qualquer ser humano deveria ter direito, se a mídia do mundo inteiro e seus próceres já não tivessem, como lobos famintos, escarafunchado e noticiado os mínimos detalhes de sua vida e de sua morte. Não estaria escrevendo sobre ele, se ele não representasse um fenômeno coletivo. Alçado à condição de ídolo dos tempos modernos e cibernéticos Michael Jackson cercado por grande máquina de produção, de gerar dólares, mobilizou grandes multidões. Apesar disso viveu e morreu ao que parece em muita solidão e tomando remédios fortes que lhe causaram uma parada cardíaca e morte ainda relativamente jovem.

Dilemas da cultura moderna e cibernética que gera e acalenta ídolos para transformá-los em seus totens e ao mesmo tempo em seus bodes expiatórios. Woody Allen em seu filme Zelig retrata bem essa questão. Se Michael Jackson não pode descansar em paz como merecia, como ser humano e pessoa que ele era, que só conheceram os mais íntimos ou verdadeiramente amigos, tentemos pelo menos entender ou apreender alguns aspectos desse fenômeno coletivo, e que essa sua passagem ajude a colocar algumas reflexões sobre a cultura deste século e a nova civilização que está se gestando. Apesar dos prós e contras e da celeuma que gera na sociedade a morte de um ídolo de multidões, um ídolo da era da globalização, que por um lado é adorado e por outro lado difamado, acusado de doente, excêntrico ou bizarro, Michael Jackson plasmou a insatisfação, a solidão, uma estética e ritmo diferentes - o pop - incorporado das ruas, signos de nossa era moderna. E por esse motivo, além do marketing realizado por quem ficou com seus direitos autorais, muito ainda será falado e analisado sobre sua trajetória artística.

Sinceramente, apesar de ser de sua geração ou idade, nunca me senti muito sintonizada com essa estética. Lembrando, entretanto, que sua virada na carreira e a adesão ao Pop e à revolução da dança no palco acontecem bem mais tarde e cristaliza-se depois do vídeo clip Thriller como apontam os comentaristas. Minha memória busca o Michael Jackson de minha infância e adolescência e o escuto cantando Ben, com sua bela voz de castrati, quando ele ainda era criança. Revendo, através de noticiários e vídeos, a criança Michael Jackson já extasiava multidões com sua voz e era uma grande promessa como cantor e artista.

Mas, logo depois, a mídia trouxe à baila os problemas que tivera o cantor com a família, problemas pessoais que se relacionavam também com sua profissão e que ao que parece o acompanharam ao longo de sua carreira. E essa é uma das questões que eu gostaria de reter, e que vai além da condição de Michael Jackson, que é o aspecto do cuidar do outro ou do descuidar do outro como uma síndrome da cultura e civilização ocidental em que vivemos. Em relação a esse aspecto parece que Michael Jackson foi uma vítima, mas ele representa também uma multidão de crianças que sofreram e sofrem permanentemente violência de todos os tipos em nossa sociedade e civilização em que o ser humano virou “coisa”, artigo de consumo e de troca, em que as pessoas são vistas como geradoras de renda, fama e reconhecimento social na cultura narcísica, e em que as crianças dependem de adultos cada vez mais doentes e “normóticos”, para utilizar uma expressão já em voga e que expressa a loucura da normalidade neurótica dos nossos tempos.

 Outro aspecto desse descuidar do outro, de nossa cultura, e que se prolongou na trajetória de Michael Jackson foi a relação estabelecida com os remédios e médicos. O cantor morreu, segundo o relatado nos noticiários e jornais, por overdose de um analgésico muito forte que ocasionou uma parada cardíaca. Estava acompanhado de um médico cardiologista, contratado especialmente para acompanhá-lo em uma turnê que faria, mas que aparentemente o abandonou, chamando o corpo de bombeiros, e sumiu para evitar possivelmente um flagrante.

A questão ganha evidência porque sempre se coloca em nossos países periféricos, que o mau atendimento médico deve-se à medicina pública, mal paga pelo Estado, e que esta é a responsável por não cuidar ou descuidar das pessoas. A medicina privada estaria apta a atender melhor, porque os médicos e hospitais cobrando mais caro, em ambientes e condições melhores e mais caras de atendimento, teriam um resultado mais satisfatório. Sem querer negar a necessidade de recursos para os setores públicos de saúde, o caso Michael Jackson deixa patente que o buraco é mais embaixo. Ou seja, a função de cuidar do outro no sistema médico-hospitalar ou no que diz respeito à saúde instituída não se resolve simplesmente com dinheiro, é uma questão inerente à cultura e à civilização. Neste caso, o dinheiro complica mais essa função, pois se é verdade que o médico fez o que Michael Jackson queria aplicando-lhe qualquer remédio que ele solicitou, o médico desistiu de sua “autoridade” de curador, de quem está habilitado e tem condição de cuidar do outro e por isso não vai lhe causar danos para cumprir qualquer ordem pelo gordo pagamento que vai receber. Se for verdade que atuou sem considerar os perigos da medicação e sob ordens do paciente faltou ética, cuidado, e sobrou apego ao dinheiro.

A saúde e medicina pública e privada são mais complexas, com múltiplos desdobramentos para serem debatidos neste século de mudanças da civilização. A trajetória de Michael Jackson é recheada desses exemplos, da busca de superação de seus limites e problemas de saúde, através de tecnologias estranhas, como a câmara hiperbárica que usava para prolongar a vida, que causou frisson na mídia, mudanças de cor da pele e inúmeras cirurgias plásticas, que ligam a questão médica por um lado ao desenvolvimento da tecnologia e às muitas invencionices nessa área, e por outro lado à indústria da saúde em que o importante é gerar renda, lucro, competitividade.   

Essas questões aparentemente da área da saúde se encontram nos marcos da civilização moderna e capitalista que consumimos, e que nos consome como seres humanos. O que se sabe através de Michael Jackson sobre tecnologias da saúde, e que é reputado a ele como tratamentos estranhos e bizarros deveria ser colocado também como bizarrices da medicina e saúde instituída. As pessoas consomem o que está patenteado, que é fiscalizado e ofertado por profissionais de saúde. Mas esses tratamentos estranhos são feitos para quem tem dinheiro para consumi-los. Então, concluindo: bizarro não é somente Michael Jackson na busca de resolver seus limites intransponíveis ou na sua doença. Bizarra e doentia é a saúde instituída, a medicina, os médicos e a tecnologia da saúde que vendem produtos bizarros e estranhos ao ser humano, bizarra é a civilização que sustenta parâmetros de saúde visando lucro a qualquer custo.

É bom que fique claro, que há uma distinção entre avanço da medicina e da ciência com a finalidade de superar os problemas da saúde e o avanço da medicina e tecnologia para vender e gerar lucro. A primeira cuida, a segunda descuida e lava as mãos, quando o profissional de saúde é pego em flagrante.

Bem relacionada a esse problema na trajetória de Michael Jackson e que representa a cultura moderna é a fissura que existe em “domar o corpo”. Michael Jackson representa essa estética da submissão do corpo como um autômato, um corpo submisso para deslizar no palco, andar para trás quando anda ao mesmo tempo para a frente. Horas de exercício e preparo corporal. Corpo da era robótica, cibernética, thriller, indo quase além do humano, mostrando o impossível do corpo.  Mesmo significando uma quebra com uma dada estética, como algumas pessoas já colocaram na mídia e trazendo uma estética que era também a das ruas, de todas as ruas, subúrbios e periferias para o palco, a relação com o corpo mostra essa tentativa de submissão.

A esquizofrenia moderna, que não é somente de Michael Jackson é a tentativa de superar o corpo, domar o corpo, manipular o corpo a contento, como o outro que a cultura não conseguiu integrar. A cultura moderna esquizofrênica não tenta integrar o corpo, mas submetê-lo, criar artifícios, colocá-lo em um padrão, esquecendo que cada exemplar humano é único e que com o corpo nós todos da cultura moderna temos que aprender a nos relacionar de forma mais integrada. Dito assim, até parece que corpo e mente são separados, mas de fato, a cultura ocidental cristã e mais recentemente tecnológica condicionou o corpo primeiro em uma função da natureza e como tal tentou subtraí-lo e não aceitá-lo e a tecnologia moderna o transformou em algo que poderia ser manipulado e superado.

A ausência de consciência corporal própria da cultura moderna, da saúde institucionalizada, em que o corpo é considerado algo para ser conhecido, manipulado, transformado por profissionais de saúde e por tecnologias cada vez mais incompreensíveis ao cidadão comum e leigo no assunto, alija e aliena o ser humano do seu próprio corpo. O corpo é, neste caso, um outro, para ser examinado, transformado, curado dentro de padrões técnicos e estéticos. E nesses padrões deverá ser encaixado. E assim não é considerado que cada corpo é único porque parte de uma única pessoa, um todo, com sua própria dinâmica, suas reações e órgãos que funcionam de forma involuntária e proporciona a todos a possibilidade da vida terrena. É um outro vital, que as pessoas não querem assumir como tal e integrá-lo como tal. Em geral nem consciência têm disso. A cultura moderna explora e estuda o corpo para submetê-lo e não para conhecer seus ritmos e viver em paz e pulsando com ele.

As cirurgias plásticas que fez Michael Jackson para mudar o corpo, de outras formas são utilizadas massivamente. Aquilo que parece bizarro em Michael Jackson, considerado por muitos como levado ao extremo, está em muitas clínicas do planeta. Homens enxertando panturrilhas, mulheres enchendo bustos e quadris, ou diminuindo, de acordo com a moda. Pessoas mudando as cores dos olhos, e por aí vai. A questão que se coloca não é que alguém não possa fazer o que quiser de sua aparência, mas justamente o contrário, se faz tudo isso para caber em uma dada aparência estereotipada. Faz-se tudo isso por não se aceitar as diferenças de corpo, de cor, de cabelo ou não se aceitar o próprio corpo. E nesse caso a medicina estética não está preocupada com a saúde e nem com a integração do corpo. A beleza deixa de ser harmonia e passa a ser esteticismo, o corpo se aliena e deixa de responder às necessidades da própria pessoa para responder às necessidades do padrão moderno da cultura, ou do diagnóstico médico e das invenções da tecnologia moderna que quer vender.

Michael Jackson com seu talento, sua solidão (apesar das multidões) e seus problemas criou uma nova estética plasmada nas coletividades modernas, a arte robótica, replicante, um pouco matrix, e se tornou seu prisioneiro. Além disso, tornou-se parte da máquina de fazer dinheiro em que foi lançado desde a infância pela família. O risco da projeção coletiva é sempre este: as multidões não o queriam e não o querem somente como um ser humano que tem sua expressão e realização na arte, mas como um ídolo, onde podem ser projetados os talentos e expurgados todos os defeitos e malefícios da cultura moderna. As multidões querem adorá-lo, e tirar um pedacinho do Totem, mas também querem crucificá-lo, para não precisarem fazer isso a elas mesmas. A mídia, as empresas, as pessoas que lucraram e lucram com o seu talento desde criança não o querem como um ser humano, mas como um ídolo que gera lucro e bônus até no seu enterro transformado em grande evento.

A arte que somente plasma não é simbólica e não pode transcender os problemas e dicotomias de uma época, não transforma. A idolatria e a crucificação de um ídolo não resolvem mais as questões da cultura e os problemas coletivos. Quem quiser se resolver e transcender os males modernos tem que crucificar-se a si mesmo e iniciar sua própria busca. Que a morte inesperada de Michael Jackson nos sirva, então, para a reflexão e para interromper o transe coletivo. Que seu talento seja ressignificado naquilo que realmente veio para ficar. Que ele descanse finalmente em paz!

 

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda -www.veronicammiranda.com.br
Data: 11/07/2009

*Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

 

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