ARTIGOS

América  Latina, o Estado autoritário que "machuca" ou a refundação da república.

 Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Inicio este artigo pensando nos acontecimentos em Honduras, mais precisamente na ditadura que lá se estabeleceu com a deposição do presidente Zelaya, quando eram praticamente nulas as previsões de que isso poderia ocorrer novamente na América Latina. Decerto o fantasma da ditadura ainda ronda os países da América Latina ou os esqueletos dos nossos velhos Estados republicanos não foram todos retirados do armário. E este é um problema a ser enfrentado ao mesmo tempo que se constroem novas utopias nos países das Américas, que consulte novos paradigmas. "O Estado Brasileiro, esse dragão", como o denominei em artigo do ano de 2003,  guarda similaridades com outros Estados da América Latina, são todos republicanos com democracias diferentes ou formas diferentes de representação política e com culturas próprias e diferenciadas. A história nos ajuda a estabelecer as diferenças na formação desses Estados Nacionais, que apesar de republicanos tiveram processos de independência diferentes, principalmente o Brasil que foi monárquico antes de ser república, além de ser colonizado por portugueses com língua diferente da maioria dos outros Estados colonizados pela Espanha. Quinhentos anos e pouco de história de colonização parece muito, mas é pouco se considerarmos a cristalização do que se chamou Estado Nacional no final do século XIX com a proclamação da República no Brasil, e a independência e fundação da república na maioria dos outros países.

Nós brasileiros temos um pouco mais de um século de República, que em vários processos históricos, rupturas e mudanças foi denominada de República velha e nova e tantos outros adjetivos. A res publica, entretanto, que definiria essa forma de poder político foi bastante conturbada e muito mal exercida. Um dos problemas do século que passou, e que caracterizou de certa forma a república nos países latino-americanos foram as ditaduras, dentre elas as militares. Volvo os olhos para o século passado e vejo o fim de uma das mais resistentes e sanguinárias ditaduras do século, no Chile, que teve 27 anos. Quase  uma década depois, apesar de ter havido eleições e três mandatos presidenciais o espectro da ditadura continuava, com Pinochet vivo e comandante em chefe das forças armadas, e em 1998 depois de entregar o comando do exército, assumiu o cargo de senador vitalício. Os crimes e atrocidades patrocinados nos seus 27 anos à frente do governo militar no Chile não podiam ser comentados e muito menos cobrados pela população ainda amordaçada. Eu poderia falar de qualquer ditadura latino- americana do século passado, inclusive a do Brasil, mas falo de Chile por ter sido a última ditadura resistente do século passado que parecia encerrar o ciclo das ditaduras latino-americanas e que se caracterizou como uma das mais violentas, com toque de recolher por anos a fio.

Em 2004, já no final do governo de Ricardo Lagos estive em Chile  e pude perceber de perto o significado e os males acarretados por essa ditadura. As pessoas ainda viviam como amordaçadas e sufocadas, sabendo poucas notícias de fora do país e poucas do próprio país, pois os meios de comunicação atuavam como se estivessem ainda sob o toque de recolher. À boca pequena fiquei sabendo por um médico sobre o grande aumento de doenças mentais, quadros depressivos e patologias afins, como resultado do longo período vivido em uma cultura do medo, onde as pessoas que queriam democracia e uma sociedade menos desigual passaram a ser consideradas inimigas públicas e a população sob o toque de recolher deixou de ter vida social. Para celebrarem um aniversário à noite, em suas casas, tinham que enviar para os militares a lista dos convidados que sairiam à rua, à noite, caso contrário poderiam ser presos ou até assassinados. Assim viveu a sociedade chilena por longos anos, segundo o que me informaram.

 Sem os esclarecimentos devidos, sem a reparação dos crimes da ditadura, sem a punição devida a todos os que cometeram assassinatos, prisões violentas, exílio de milhares de pessoas, a sociedade e cultura vivia ainda sob o prisma da distorção dos fatos. Parte da população e dos que vieram depois, nascidos sob o signo da ditadura e toque de recolher diário, acreditavam que a ditadura e os problemas sociais do país eram causados pelos que lutaram contra as desigualdades sociais, por maior expressão e direitos da população. Tive oportunidade de observar um artigo de uma moça, que devia ter algum tipo de problema mental, mas também problemas ideológicos sérios, acusando o próprio tio em uma revista, de voltar a Chile como outros exilados, como fantasmas que não tinham mais lugar naquela sociedade. Depois nos informaram que ela, filha de pais de esquerda na época do golpe chileno, tinha sido estagiária no jornal  El Mercúrio, um dos principais apoios da ditadura militar, e queria preservar provavelmente sua carreira. Talvez tivesse muito medo de ser identificada com o parente exilado, mas nesse ato mostrava sua capacidade também de exercer a crueldade, aprendida e germinada decerto em um sistema perverso como a ditadura. Medo incutido pela ditadura, que sem sombra de dúvida contribuiu muito para  torná-la uma pessoa reacionária e doente.

Não vou falar sobre as atrocidades que ocorreram nos bastidores dessa ditadura, porque tem quem o faça melhor do que eu, e hoje já existe literatura sobre isso. Quero deixar patente simplesmente o que percebi em minha estadia, dos danos que uma ditadura e a falta de liberdade podem causar às pessoas e à cultura. A arte e cultura stricto sensu no Chile passaram a ser limitadas e os artistas perseguidos, já que tinham sido importante expressão durante o período da Unidade Popular, no governo de Salvador Allende. Uma sociedade em que se impede a expressão criativa da cultura tende a fenecer ou a perder sua vitalidade. Comecei a perceber certa tristeza nas pessoas, um clima às vezes pesado, que contrastava com a receptividade, gentileza e afetividade tão presentes na população. Os artistas, artesãos e pessoas comuns com quem pude conversar sentiam-se sufocados por não terem espaço, nem liberdade, pois apesar de oficialmente não haver ditadura, ela ainda era exercida pela cultura do medo e pela não reparação dos erros e crimes cometidos ao longo de 27 anos.

Pensando na incrível receptividade do povo chileno, em país tão bonito e maravilhoso, na diversidade da cultura que ainda tinha tão pouca expressão, rememorei os tempos de universidade, na década de 70 do século passado aqui no Ceará, ainda na ditadura militar brasileira. Entre colegas contemporâneos Chile era visto como o último bastião da resistência política e cultural em nossa América, no constrangimento econômico e político que foi colocada a América Latina na conjuntura da guerra fria e das armações da CIA, que patrocinou a maioria dos golpes militares. Pensava nos intelectuais, políticos, artistas e populares perseguidos, exilados, e que nem podiam ser ouvidos e comentados em seu próprio país durante a ditadura.

Como disse Ricardo Lagos em dezembro do mesmo ano, Chile, o país com a última ditadura militar dos ciclos de ditaduras militares geradas na guerra fria, "parecia uma panela fervendo que precisava ser destampada, senão explodiria". Essa sensação me acompanhou durante minha estadia por lá, à medida que entrava em contato com pessoas de origens e círculos sociais diferentes. As observações eram: "eu não sei nada do que acontece lá fora, os meios de comunicação nos deixam ilhados". Ou outra observação como esta: "Antes da ditadura eu adorava olhar a cordilheira, em qualquer lugar que eu estivesse em Santiago. A cordilheira para mim era esse ponto de referência maravilhoso. Agora, quando olho a cordilheira rodeando a cidade por todos os lados sinto-a como uma prisão. Como se ela cerceasse a nossa liberdade e não nos deixasse sair e nem nos comunicar". Não preciso dizer que a cordilheira não saiu do lugar e está ainda lá, linda e maravilhosa, mas essa imagem que me  foi passada representava um certo estado de espírito, um certo estado de sufoco, de falta de liberdade e por que não de depressão. Por trás de tudo isso a necessidade de resgatar a verdade dos erros políticos, dos crimes não punidos, da justiça não realizada,  de restabelecer a liberdade.

Em Arica, no norte do Chile, do alto do morro da Concórdia, palco de disputas antigas de limites entre Chile e Peru, olhando e fotografando a Ilha de Alacran vi o mar revolto, a natureza emergindo no mar aparentemente sereno, decerto mostrando o descontentamento. Em Santiago, em primeira mão assisti o filme Machuca. Os cines cheios, os burburinhos para comentar o filme que era a trajetória de um cidadão de sobrenome Machuca. Sua trajetória de vida mesclada com o próprio golpe militar, que em imagens antigas machucava a todos que vivenciaram o golpe e a ditadura. Machucava mais uma vez, para que a verdade pudesse vir  à tona. Apesar de ter sido uma ditadura militar os comentários eram unânimes: O golpe do Chile foi o golpe de uma classe social, orquestrado com a CIA. Os militares só passaram a ter poder no país, a partir daí. O golpe do Chile foi um golpe da desigualdade econômico-social e política, que encerrava também a "canga" da dependência que os países da América Latina carregavam como países periféricos no capitalismo.

Foi, portanto, com alívio que em dezembro do mesmo ano vi nos noticiários as ações judiciais impetradas pelo Estado contra os militares responsáveis por uma quantidade de crimes e atrocidades aos cidadãos chilenos. A prisão de vários militares e envolvidos nas chacinas, que se pode acompanhar pela internet, foi testemunhada por um público que gritava e pedia justiça. Aves voando pelas gargantas sufocadas. A reparação dos danos causados pela ditadura começou a se fazer de forma mais célere, e já no governo de  Michelle Bachelet os atos imorais de Pinochet na ditadura militar vieram à tona. E a população de Chile e de todo o mundo pode ficar ciente, através dos noticiários, que Pinochet, sua família e amigos além dos crimes da ditadura tinham desviado uma grande quantidade de dinheiro público que estavam em contas particulares nos paraísos fiscais, e que além disso eram ligados ao narcotráfico.

A ditadura sempre justificada pelas "libertinagens da democracia" e pelos problemas da representação política veio abaixo. Uma ditadura não pode ser justificada jamais. Todas essas lembranças desagradáveis para mostrar o que pode acontecer com a sociedade e cultura quando a população é privada do exercício da liberdade. Só o reconhecimento dessa verdade engasgada e da corrupção e crimes de lesa humanidade ocorridos durante a ditadura, com seu devido encaminhamento pelo poder judiciário que ainda se estende aos dias atuais com novas prisões ocorridas ultimamente,  possibilitou a abertura para uma disputa política eleitoral mais saudável, iniciando um ciclo político de maior participação em Chile, de retomada da cidadania, de ações para o resgate da cultura, com a eleição da primeira mulher na presidência da república chilena e da saída do país do "aislamiento" que se encontrava na relação com os outros países da América do Sul, ajudando efetivamente a construir o novo bloco geoeconômico e político da América Latina. Michelle Bachelet termina este ano seu mandato de presidente da República com a maior aprovação popular (75%) de toda a história chilena.

A ditadura atual em Honduras, que depois de um ciclo de eleições com a ascensão da esquerda, buscando novos rumos na América Latina, não tem respaldo e reconhecimento dos governos que formam o novo bloco de poder e de mudanças na América Latina, e, aparentemente, pelas medidas publicitadas de Barack Obama também não tem apoio dos Estados Unidos, mas a prudência nos recomenda que é necessário voltar a olhar para o caráter autoritário de nossos Estados constituídos, para as estruturas de poder que necessitam ser remodeladas e garantir minimamente a continuidade dos processos de reconstrução, ainda que lentas, de nossos países latino- americanos.

De fato, a absolutização do poder em qualquer nível representa sempre a possibilidade de corrupção e de distorção, assim nos mostra a história. Quanto mais absolutos forem os poderes de uma sociedade, onde o espaço público seja pouco exercido, mais corruptas e menos transparentes serão as instituições dessa sociedade. A república em seu significado primeiro mudava o sentido do poder, instituído nas sociedades ocidentais, de poder divino e absoluto das sociedades monárquicas e teocráticas, para as sociedade laicas, não fundadas na religião, onde o poder seria oriundo do povo e das representações políticas da população, que em princípio passariam a ter vez e voz. Apesar de não ter surgido na Revolução Francesa, o conceito de República se alarga e se modifica com as primeiras instituições dos direitos individuais da pessoa humana e da cidadania. E mesmo que Napoleão Bonaparte tenha se auto-proclamado Imperador, logo depois das proclamações democráticas, de tomada da Bastilha e lutas sangrentas da Revolução Francesa, os ideais da revolução francesa se difundiram, foram abraçados por todo o mundo ocidental e são vigentes até hoje. Quando falamos hoje de direitos humanos e cidadania nos reportamos a essas conquistas. O conceito de república foi alargado mais ainda com a fundação das repúblicas socialistas.

República e Democracia são conceitos que passaram a interagir de várias formas na formação dos Estados nacionais ocidentais e adquiriram características próprias nos processos históricos e desenvolvimento dessas sociedades. Já existe literatura atual e rica sobre o assunto, mas me interessa  para essa discussão o caráter autoritário que pautou a formação e desenvolvimento de nossas repúblicas latino-americanas. E não por acaso, mas pelo fato do tema apresentar atualidade e urgência, diante da formação de nova região geoeconômica e política na América Latina, da renovação e constituição dos novos poderes com novas eleições, principalmente no Brasil, pela deflagração da crise econômica do capitalismo mundial que nos afetará a todos e pelo renascimento de novos valores e paradigmas para a sociedade e cultura, que tendem a se expressar politicamente na fundação do que podemos denominar "vizinhança de uma nova civilização".

Sabemos que hoje ainda existem no Brasil grupos sociais que defendem a monarquia e estados teocráticos, em outras palavras estados de representantes de Deus e não representantes do povo e um governo de poucos. O desejo da maioria da população, entretanto, ainda é ao que parece de continuar com a república, mas fazendo valer a res publica. O poder distanciado da população, o pouco espaço público ainda existente, os problemas recentes com um dos poderes - o Congresso nacional- a percepção cada vez maior de que o Estado lato sensu está um tanto putrefato e sem vitalidade para tocar os novos desafios deste século, coloca em pauta as necessidades de repensar os poderes constituídos, as formas de fazer política, o remodelamento do Estado, enfim, a refundação da República em nosso país e quiçá nos outros países da América Latina.

 Essa mudança ou o caminhar para essa refundação de fato já está ocorrendo em países como a Bolívia. Acompanhando de longe o debate que se faz entre as várias tendências políticas do Estado e várias cosmovisões temos claro de que Bolívia é um Estado que está se reconstruindo como um Estado plurinacional e isso indica uma direção diferente da reconstituição dos poderes da nova república e democracia que estão se gestando na América Latina.

Acompanhando a discussão realizada sobre a visão da política em Bolívia, pelos bolivianos, percebe-se dentre todas  as divergências e especificidades da economia, política  e cultura, que duas cosmovisões permeiam essa refundação nacional: uma ligada aos povos originários e camponeses que ascenderam politicamente e outra que encerra  a visão de esquerda intelectual, marxista e pós-marxista com a herança da república, democracia moderna, e por que não colonização ocidental.

Além dos movimentos populares, sindicalismo e organizações partidárias, em Bolívia há a organização dos povos indígenas, e o Estado plurinacional boliviano reconhece 36 povos originários. Para os povos originários que compõem a maioria da população a América Latina  já não é mais América, mas Abya Yala. Desde o ano de 2004 que os encontros ou cumbres dos povos originários se articulam em torno de Abya Yala, o nome para a América que significa "terra madura", "terra em florescimento" e "terra viva" na língua do povo Kuna. O nome Abya Yala para designar o continente americano não significa simplesmente um sinônimo, mas encerra uma cosmovisão diferente da ocidental e que já está se fazendo politicamente nos movimentos dos povos originários da América e buscando seu próprio lugar no Estado Plurinacional da Bolívia e em outros países, como Equador, em que os povos originários compõem grande parte da população. O fato dessa cosmovisão está perpassando as constituições desses Estados latino-americanos tem um peso importante político-cultural em nível continental na atual conjuntura.

Através de uma entrevista com o intelectual  aymara Fernando Huanacuni dada a Vinicius Mansur¹ podemos perceber algumas diferenças básicas dessa cosmovisão. Uma das questões básicas que ele coloca é sobre a mudança de ciclos da natureza que acompanha a história e que segundo o seu calendário aymara e dos povos originários se regem através do término de um sol e do ascenso de outro sol. Segundo ele em 1992, que no calendário aymara corresponde ao ano de 5500 terminou um sol, "então a história vai voltar a ascender." E continua: "Nossos avós, de diferentes culturas indígenas, sabiam desses ciclos, do renascimento do sol, por isso começaram a se organizar. Em 1992, diferentes povos se reuniram para poder começar esse novo sol. E as culturas antigas guardaram, sobretudo, valores e princípios, e isso é o que agora está renascendo, porque é necessário, é questão de vida, não somente algo político ou social. Apesar da parte política ser a que mais se vê, a parte espiritual, as oferendas, as cerimônias, é que são a base fundamental de toda a força política, social , jurídica, econômica, educativa."

No início desse novo ciclo há toda uma idéia de sacralidade da natureza e espiritualidade diferente dos ocidentais porque a natureza permeia tudo, inclusive a economia e política. O retorno dessa cosmovisão tem o sentido, segundo ele, de "lembrar ao humano que ele tem um coração(...) que existe vida porque existe sol, porque existem ciclos, porque existe chuva, porque existem sementes, porque existem rios, porque existem montanhas, porque existem árvores.Temos que despertar e entender que a vida é uma complementação e reciprocidade do todo, um equilíbrio perfeito. E, se destroçamos uma parte, vamos destruir tudo. Aqui, nós dizemos Pachamama, ou Madre Tierra. Em outras partes, os indígenas dizem Madre Selva, Madre Agua. Então, identifica-se que nós não somos seres humanos e natureza, mas parte da natureza, não somos superiores. Essa forma de pensar existe da cultura antiga. O renascimento do tempo está nos convidando para que voltemos a essa antiga forma de pensar. Não podemos fazer mais danos à mãe Terra, essa é a primeira mensagem. Todos os povos indígenas originários, desde o Alasca, estão saindo em defesa da vida. Estamos convidando todos os Estados a dar um giro em suas políticas, seus decretos, suas Constituições. Até agora, somente as Constituições de Equador e Bolívia sabem que existe a mãe Terra, enquanto todas as outras Constituições só falam em direitos humanos. E isso não é viável, porque a vida não é só humana."

Essa cosmovisão questiona profundamente a sociedade criada sob o signo da colonização, em seus princípios e sua forma de civilização: "Temos que ver o que trouxe a colonização. O processo de colonização individualizou o pensamento, nos dessensibilizou. Já não se sente sequer pelo outro, pelo humano, quanto menos pelos animais, pelas montanhas. Se um tem comida, não importa se os demais têm. O processo de descolonização agora tem que sensibilizar, tem que nos naturalizar e nos fazer voltar ao conceito comunitário. Para as pessoas de pensamento ocidental, o sol é simplesmente um astro, nada mais. Para nós, é o pai Sol, nos referimos a ele com respeito, porque sua energia dá a vida. Quando a mãe Terra se desperta, nós damos alimento a ela, porque ela não é somente um objeto inerte, mas um ser que vive. Então, temos que despertar as pessoas. Estamos ilhados em nossas casas e apartamentos nas cidades, desintegrados. Temos que conectar outra vez o que a colonização desconectou."

Os povos originários, na voz de Fernando Huanacuni, falam também da difícil relação com os latino-americanos, de cultura ocidental, segundo eles por imitarem a Europa, enquanto os europeus buscam os povos originários para aprenderem a viver melhor: "Primeiro, eu diria que os latinoamericanos têm que se encontrar com os indígenas, para depois poder dialogar com a Europa. O seu pensamento não está relacionado com o movimento indígena, tornaram o movimento indígena invisível porque pensavam que ele era inferior. Eles simplesmente imitaram a Europa. Dizem América Latina, percebe? Para nós, somos Abya Yala, assim chamamos nosso continente há milhares de anos. E te digo mais: temos mais diálogos com os europeus do que com os latinoamericanos.(...) Porque os latinoamericanos querem ser como os suíços, os alemães, os ingleses, os italianos, seguem no processo de colonização. O indígena amazônico ainda briga com os garimpeiros. Estes destroem florestas, destruíram árvores mãe, árvores pai, árvores de milhares de anos, as cortaram para mandar para o mundo ocidental. Para nós, são as avós, os avôs, é vida, são nossos mestres. O indígena chorou muito e segue chorando porque desequilibraram tudo. E os europeus estão mais preocupados. O europeu se deu conta da poluição. Já chegaram ao extremo de seu capitalismo, do desenvolvimento da modernidade, já foram ao abismo e sabem que essa não é a resposta. Esse modelo o deixou doente e estão buscando alternativas, por isso procuram os indígenas com maior força. Vieram buscar aqui nossos arquitetos, não os que são formados em universidades, mas os que trabalham no campo, para aprender a fazer adobe (casas construídas de barro). Os europeus sabem que nessas casas ficam menos doentes. Mas, um dia, quando a modernidade já não puder dar as respostas, os latinoamericanos vão se dar conta que a resposta estava ao seu lado, só não queriam nos escutar porque pensam que não somos muito inteligentes."

Nessa cosmovisão o modelo político da Bolívia enquanto socialista  é questionado. Para eles, do movimento indígena, com um presidente indígena, Bolívia tem modelo comunitário e não comunista, e assim define o modelo político comunitário: "Partimos de premissas. Quando falamos de comunidade, não falamos só de humanos. Comunidade é tudo: animais, plantas, pedras. E não para vender. Por exemplo, no governo boliviano, existem marxistas. Bom, nosso país tem uma reserva muito grande de lítio e sua exploração é alvo de muitas especulações. O lítio pode deixar a Bolívia poderosa. Mas o mundo indígena não quer explorar o lítio. O marxista quer, tem somente um pensamento material. Nós preferimos não explorar porque é importante para o equilíbrio da vida. Mas o marxista não pensa assim. Para mudar o sentido de um rio, o marxista vai colocar tratores e pronto. O indígena vai dizer “não, calma, espera, vamos pedir permissão para os nossos ancestrais e vejamos se é bom”. O marxista vai dizer “claro que é bom, aqui vamos produzir”. Ele não vê importância no espiritual, não o sente. Por isso ainda não está entendendo."(...) Mas, o movimento indígena não é só do campo, é uma forma de vida e um convite a viver com respeito. As montanhas estão degelando. Vai faltar água. E isso vai afetar a todos, brancos, mestiços, indígenas etc. Por isso, necessitamos de novas formas de política, porque as atuais não nos permitem resolver. E isso é incumbência de todo mundo. O ocidente tem buscado respostas e o povo indígena as está dando: para que todos tenhamos alimentos, temos que produzir com os ciclos da natureza, não somente com elementos químicos, ou de maneira anormal ou antinatural. Os povos originários estão avisando que as mudanças da história são também mudanças de ciclos naturais. Por isso, devemos aproveitar este momento e voltar ao paradigma comunitário e ao seu modelo pedagógico, jurídico, de governo. Aqui, por exemplo, nas comunidades, não há eleições. Nós não queremos a democracia, como agora se conhece, porque ganha o que faz mais campanha, o que tem mais dinheiro, o que tem mais poder de influência nos meios de comunicação. Aqui, um é a autoridade em um ano, no ano seguinte é outro, no seguinte outro, ninguém pode repetir. Todos têm que participar e todos têm que se desenvolver como autoridade. Porque se alguém se mantém, algo vai falhar na sua mente e tudo vai se desequilibrar. Então, para que descanse, se passa para o outro."

Citei largos trechos dessa interessante entrevista que pode ser lida na íntegra no sítio da ALAI-América Latina em Movimento, porque ela representa e coloca a base de pelo menos duas cosmovisões diferentes com as quais temos que lidar neste inicio e meados de século e sobre as quais temos muito que aprender e buscar o equilíbrio: sendo ao mesmo tempo América Latina e Abya Yala. E sobre esses fundamentos provavelmente será refundada a república. Há muito ainda a ser debatido sobre esse tema. Corações e mentes construindo um novo modelo político para dar sustentação a uma nova civilização. Não poderemos fugir de uma e outra cosmovisão, e do fato de que precisamos criar um eixo sob o qual possam girar essas diferenças sem diluí-las, criando as pontes necessárias. Um dos problemas, entretanto, ainda é o Estado, que no Brasil precisa de reformas urgentes. Os governos passam e o Estado fica. E mesmo com algumas modificações e conquistas sociais, culturais, ele ainda é um "dragão perigoso", de estrutura patrimonial e arcaica, um arcaísmo que não representa de fato nossas ancestralidades.

Outro aspecto da democracia moderna e república fundadas a partir dos princípios da revolução francesa, que agora está sendo reformulado em nossa América é a entrada do feminino no espaço público de forma notória com a eleição de duas mulheres como presidentes da República no Chile e Argentina, considerando também as formas comunitárias de fazer política, como formas mais horizontais e femininas. Sobre esse aspecto a historiadora francesa Michelle Perrot dá conta de que na Revolução Francesa a participação da mulher foi pequena e muito reprimida, e em 1792 os clubes femininos foram fechados e as mulheres confinadas aos seus papéis de mães e donas de casas. A república e democracia moderna no seu inicio deixou a mulher de lado. Houve um alistamento, um chamamento para as mulheres participarem no inicio da revolução francesa, mas logo depois que a situação se estabilizou foi encaminhado o seu retorno para o lar. As revoluções do século XIX baseadas nas idéias da revolução francesa seguiram a mesma orientação. A emergência da mulher e do feminino na política latino- americana atual ocorre concomitante com a emergência de novos paradigmas, em que a natureza passa a ser  também um novo foco para a democracia e república.

Li no jornal El País, porque mesmo tendo Abya Yala no meu coração sou também latino-americana que lê notícias da Europa, que provavelmente as próximas eleições presidenciais no Brasil se definiriam entre três mulheres: Dilma Rouseff, Marina Silva e Heloísa Helena. Fiquei torcendo para que pelo menos desta vez os europeus tenham razão, pois são três mulheres íntegras, batalhadoras, ao dia com os problemas centrais do país e que com certeza vão levar este país a um debate muito construtivo sobre a refundação da república, e sobre as duas cosmovisões que nos habitam dentro e fora, na cultura do país. Quem levar mais votos no final levará três energias, três bandeiras políticas que no fundo é somente uma, que carrega a força feminina, o verde de Abya Yala e a justiça social e econômica da América Latina. Acho que conheci uma nova versão da lenda de São Jorge e o dragão. Nesta, além de São Jorge, um ser humano pode acabar de vez com o mito dragão-estado: uma mulher. Que viva Brasil!

 

 ¹ Entrevista concedida por Fernando Huanacuni a Vinícius Mansur - Nosso modelo não é comunista, mas comunitário. A disposição em :http://alainet.org/active/31648&lang=es. Acesso:06.09.2009.

 

 

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda -www.veronicammiranda.com.br
Data: 06/09/2009

*Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará - CEPAC.

 

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