ARTIGOS

Chile e Bolívia, duas marchas diferentes e um mesmo sentido: o questionamento do "homo mercadoria" e o advento de novas formas e paradigmas, ou o chamado para uma nova racionalidade do Estado.

 Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Atiçada pelos acontecimentos na América Latina e mais recentemente por duas marchas, em Chile e Bolívia - a primeira por uma educação gratuita que não seja mercadoria, a de Bolívia dos povos Tipnis defendendo um importante Parque Nacional reserva e terra de seu povo (Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure) por onde passaria uma estrada construída por empresa brasileira - enquanto ressoava em meus ouvidos a crise econômica européia, norte-americana e do capitalismo mundial, li e reli fatos e análises, algumas maravilhosas, de pensadores que fazem nosso continente e que há muito descortinam para nós as dores e flores de nossa América Latina, os pontos de convergências, os pontos de rupturas da economia, da política, as racionalidades e utopias.

A marcha sofrida dos Tipnis da Amazônia à cidade de La Paz em subida penosa, que não faltou repressão policial e as marchas consecutivas, greves de fome de estudantes e apoio de grande parte da população chilena deixou, entretanto, um gargalo na garganta, com as espadas e os gritos de todos os povos da América Latina, que lutam pela vida e direito à existência digna. Em meio ao turbilhão da crise mundial e a formação de uma nova região na América Latina, muitas decisões podem ser tomadas e de fato isto está acontecendo. E a pergunta é:  em nome do que e em nome de quem?

A resposta para tais indagações é fácil por um lado e realmente difícil por outro. É fácil dizer que os representantes dos Estados nacionais estão respondendo à formação de uma região econômica e se protegendo da crise mundial a qualquer custo em defesa dos seus países e por isso agem em nome do Estado, e é fácil dizer que a população e os povos em Chile e em Bolívia, por exemplo, estão lutando pela sobrevivência e condições de vida, por uma vida mais digna e a preservação de suas culturas. O meio de campo, ou a distancia que vai de uma a outra posição é o que é realmente complicado. E nesse embate estava eu com meus gargalos.

Despertei ouvindo a antologia de Inti-Illimani de 1973 a 1978 e logo, qual Isadora Duncan, fui pega pelos ritmos, a profundidade das músicas e saí dançando ritmos diferentes sem saber e inventando, com os huaynos, joropos e tantos outros ritmos de nossa América, que o grupo Inti- Illimani divulgou.

Enquanto ouvia Corazón Maldito de Violeta Parra "Corazón, contesta/ por qué palpitas. Sí, por qué palpitas/ como una campana que se encabrita, sí, que se encabrita. Por qué palpitas?” Palpita, talvez por uma resposta capaz de absorver um único sentido que nos une e nos deveria unir nessa "peleja" que é a construção de um novo mundo e de uma nova existência. Não podemos mais ser sozinhos, sentimos também como coletividade. Dói, e me vem à memória a dor de Francisco de Assis  que "sofria porque o amor não era amado". E a pergunta zunindo como uma abelha sobre a cabeça vem: Por que Evo Morales disse aos povos Tipnis que não poderia voltar atrás na construção da estrada através do parque, argüindo ser uma questão de Estado,  depois de ter assumido a missão de levar os povos originários às alturas, como a música andina colhida e divulgada pelo grupo musical  Inti-Illimani? Por que esses povos amazônicos tiveram que subir montanha acima, às alturas de La Paz, em uma marcha com sofrimento, força, disposição e a solidariedade da maior parte dos povos bolivianos dessa nova era, para mostrar a Evo que ele deveria governar com seu povo, para lhe lembrar de sua missão com os povos originários e com a Pachamama?

E logo escuto "El pueblo unido, jamás será vencido/el pueblo unido jamás sera vencido! De pie, cantar que vamos a triunfar. /  Avanzan ya banderas de unidad, y tu vendras  marchando junto a mi/ y asi veras tu canto y tu bandera/ al florecer la luz de un rojo amanecer/ anuncia  ya la vida que vendrá./De pie, marchar/ el pueblo va a triunfar/ Será mejor la vida que vendrá (...) Y a ahora el pueblo que se alza en la lucha/ con voz de gigante gritando: Adelante!"

E este foi um hino cantado na Unidade Popular no Chile dos anos 70 do século passado, que é cantado novamente por seus indignados estudantes, centrais obreras, apoiados pela população em suas marchas, exigindo educação gratuita no país onde o sistema neoliberal foi um dos mais efetivos na América Latina e transformou a educação em mercadoria. A marcha em Bolívia e a marcha em Chile têm um só sentido: lutar contra os ditames de um sistema que transforma o ser humano em mercadoria a um nível insuportável, tentando homogeneizar tudo e destruir as culturas  e os valores desses povos. É o questionamento do "homo mercadoria" e o advento de novas formas e paradigmas ou o chamado para uma nova racionalidade.  A mesma luta dos indignados na Europa, pois aqui em nossa América que poderia ser um bastião das defesas naturais, da biodiversidade e das culturas dos povos, estes encontram uma ação contrária do Estado.

Quando percebemos a lógica econômica  e política dos Estados latino-americanos vemos a inexorabilidade de seus atos numa racionalidade que se contrapõe aos povos. E quantas vezes vamos ter que perguntar: os novos e novas mandatárias da América Latina estarão imbuídos do sentido de suas eleições no que se relaciona à defesa dos povos e sua função histórica ou a estarão exercendo  simplesmente como mais um cargo de presidentes destes países?

As questões começam a se separar e a se decantar, os povos o sentem e o adivinham, os interesses do Estado são diferentes dos interesses dos povos. E em maior ou menor grau de Chile a Bolívia, há o peso da coletividade nesse questionamento.  O que me leva a pensar que os presidentes e lideranças deveriam ouvir mais música e quem sabe dançar nossos ritmos latino-americanos para captar as razões que só o coração conhece. "O coração tem razões que a própria razão desconhece", dizia Pascal, mas é nelas que a distância entre o que pensam os mandatários na defesa do Estado e os povos em sua defesa e sobrevivência pode ser explicada e reconduzida. Essa é outra racionalidade.  A lógica desses Estados putrefatos que tentam abocanhar as novas formas que se gestam na América precisa ser quebrada. Os bolivianos já descobriram que não basta somente subirem às alturas  do mando político com suas lideranças, pois os Tipnis tiveram que fazer literalmente a subida às alturas de La Paz para garantir vida e sobrevivência de seus povos e a vida dessa parte do planeta.

Os representantes do Estado como sempre acusam a direita e outros fatores externos quando os povos resistem ao Estado. Mas apoiando a marcha dos Tipnis estavam as principais organizações indígenas e obreras de Bolívia e  muitos populares sem organização, com cartazes de solidariedade e apoio que agradeciam aos Tipnis pela luta deles para salvar um parque nacional precioso para todos os bolivianos. Havia cartazes, também, em meio ao carinho e receptividade à marcha dos Tipnis, agradecendo à Evo Morales por ter uma atitude contrária aos povos, pois estes acabaram reagindo e se unindo ainda mais em um sentido, que era o sentido "primigênio" da revolução boliviana.

Nestes últimos meses tenho me perguntado como me sentiria se fosse mandatária de um desses países da América Latina, com uma missão histórica difícil, e que por isso mesmo se chama missão. E penso que não seria fácil. Do ponto de vista do poder político esses Estados  são ninhos de cobras. Os Estados não estão constituídos para fazerem mudanças, mas para a defesa do status quo. As mudanças, em tese, deveriam ser feitas pelos povos e suas representações. Pergunto-me até que ponto esses mandatários no dia-a-dia das decisões políticas, sabem discernir suas decisões políticas dos interesses de manutenção do Estado?

O Estado, essa instituição muito estudada e qualificada, às vezes muito presente e detestada, às vezes muito ausente e reclamada  é o sustentáculo de classes sociais, do sistema em que vivemos, e de fato não passa de uma ficção, na qual estamos enredados. Por um lado, porque ele sempre defende interesses não muito claros apesar de ser sempre constituído “para todos”, mas quando ele atinge e discrepa dos interesses dos povos ou das classes dominadas as razões são sempre de Estado. Dever-se-ia supor que os povos atingidos não são desse Estado, para eles o Estado não passa de uma ficção.

Desisti de todos os estudos sobre os Estados latino-americanos para fazer perguntas. De fato, depois de cada eleição a quem serve esses presidentes? Em uma análise que considero mais rudimentar poder-se-ia dizer em seco que eles se elegem pelas mãos dos povos e também pelas coalizões políticas de todos os tipos, mas ao se confundirem com o próprio Estado servem para defender uma classe, o hegemon, ainda que muitos se coloquem acima disso.

No caso Boliviano, em um Estado plurinacional, de um governo que se pretende revolucionário, que imbuído por seu representante significava um governo com os povos, teve uma fratura exposta quando Evo Morales disse não poder voltar atrás por uma questão de Estado. E então, de quem é o Estado? Pelo visto já não era dos povos, já que a maioria da população passou a apoiar a Marcha dos Tipnis. A retratação de Evo Morales em boa hora lembrou-nos dos processos bolivianos de derrubadas de presidentes e de não aceitação permanente de um Estado estranho à cultura dos povos bolivianos. Agora, em meio a uma revolução e à fundação de outra institucionalidade reapareceu o fantasma do Estado irreversível, que nós brasileiros tanto conhecemos.

O desafio de mandatários indígenas e mulheres, alçados ao poder pela necessidade de uma nova ordem na América Latina, não é manter, pois, esse Estado velho, corrupto, carcomido, um verdadeiro ninho de cobras, sem coração. Essa entidade de ficção, sustentada em um sistema que desmorona e em um hegemon sem ideologia, que toma os cérebros de pessoas humanas, honoráveis, valentes e valiosas para atuar contra a vida e contra os povos, deve ser transformada.  O desafio é grande, sabemos,  e o que está na balança no final das contas é se o (a) mandatário (a) será simplesmente alguém que ocupará mais um cargo do Estado para as finalidades tecnocráticas da modernização e reestruturação do capitalismo ou alguém com a missão de garantir o futuro dos povos.

No último caso, se for a real opção dos mandatários latino-americanos, conceitos como miséria, consumo e técnica têm que ser reavaliados à luz de outros paradigmas e perguntarem-se e aos povos também, o que eles  significam realmente e a importância de cada um deles nessa empreitada. Será que garantir um ou dois salários mínimos para cada habitante do país á custa da natureza, da cultura dos povos, de sua forma de viver, de seus valores, resolve? Será que conseguir energia e recursos monetários a qualquer custo, para garantir o futuro de países ou torná-los potências econômicas competitivas, não será um risco, quando os próprios povos não aceitarão o preço, resistirão e tudo ficará no meio do caminho?

As "marchas" anunciam uma nova forma de resistência e mostram também que os povos estão tendo clareza cada vez maior de que o que é bom para o Estado nem sempre  é bom para os povos. Se ainda não sabemos os resultados do desmoronamento do capitalismo, mas podemos prever e imaginar que boa recuperação desse sistema não haverá para os povos do planeta e das regiões que estão se reestruturando, melhor seria os mandatários desses Estados caminharem, de fato, com os povos. Acreditando que o Estado do ponto de vista dos povos ainda é uma ficção, ao qual eles nunca chegam, nunca alcançam e por isso deve ser transformado, criando outra institucionalidade e outra racionalidade, nas quais esses mandatários possam imprimir as marcas de verdadeiros representantes dos povos. É com essa marca, dos povos, que conseguiremos ir adiante, mesmo com a crise econômica e política mundial. Destruir essa institucionalidade perversa do Estado e basear-se em outra racionalidade é o desafio dos mandatários latino-americanos para ir em frente e não sozinhos, mas com os povos deste continente. Os povos cantam assim, como Geraldo Azevedo em Dia Branco:

Se você vier pro que der e vier comigo

Eu te prometo o sol...

 

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda -www.veronicammiranda.com.br
Data: 06/11/2011

*Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará - CEPAC.

 

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