ARTIGOS

O BRASIL DE ENCONTRO COM SUA PRÓPRIA CARA

 Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

A festa da comemoração das eleições de 2002 no Brasil foi uma festa sem igual do Arroio ao Chuí. Muito provavelmente nunca tivemos uma comemoração de tal magnitude. Nem na independência do Brasil, nem na proclamação da República, nem em outras datas importantes recentes. Guardadas as devidas proporções, se compararmos o crescimento da população e do país em suas várias áreas e setores, a diferença entre esta comemoração e as  primeiras está principalmente na qualidade.

Parecia-nos que pela primeira vez a população brasileira havia se encontrado com sua própria cara, dançava o seu próprio ritmo, cantava sua própria canção e reconhecia no presidente eleito um presidente à imagem e semelhança do povo brasileiro. Alguém disse que o Brasil viveu um "orgasmo político", mais acertado seria falar em êxtase. De qualquer forma, significou uma passagem ou prenúncio de uma nova fase que teríamos que viver no país e que estamos iniciando. Já não éramos mais os mesmos. Toda essa energia liberada tinha uma única direção: para frente, para as mudanças requeridas pela população brasileira, pela constituição da nação brasileira, em dívida consigo mesma sob vários aspectos, e que se traduziu em sentimento de esperança. Essa energia precisava e precisa ser realizada. Iniciou-se um processo de formar uma alma coletiva ou uma identidade brasileira, como queiram.

De início pude perceber um movimento diferente. As pessoas com confiança queriam dar sugestões. Falavam nas esquinas, nas praças, nos ônibus, quem deveria ser colocado para ministro, o que o Lula deveria fazer, porque tal  e qual ministro indicado não servia, da mesma forma como discutiam a seleção de um time de futebol, ou aquela falta do juiz, ou o crime ocorrido na cidade, ou ainda a chuva que carregou o carro na rua esburacada. Discutia-se política como algo que estava fazendo parte do cotidiano, com alegria, com o coração, como algo a que todos tinham pleno direito de fazer. Expressões de uma grande participação que tendiam a se organizar dentro de um novo parâmetro cultural, a ser por nós conquistado. Essa era a confiança que havia trazido aos brasileiros a eleição de Lula e todo o movimento de "despertar" ocorrido durante o processo.

O interregno criado entre eleição e a ocupação de cargos no novo governo e a definição de acordos políticos para tocar o barco, ainda em andamento, deixou-nos em suspenso. De repente, parece-nos que as energias estão soltas, ansiosas, indecisas, e algumas desiludidas. Volvemos os olhos, não sem dor e um certo desencanto, para os entraves e os nós górdios da economia, do Estado Brasileiro e das fissuras existentes, seja em nível superficial, seja em camadas mais profundas na "cultura" brasileira.

Não por acaso tenderão a emergir os preconceitos, os regionalismos, o debate das tendências políticas diferentes, a questão das etnias, do sincretismo religioso, das identidades. A mesma energia que em um momento nos impulsionou ao êxtase político, à nossa "cara" alegre e vibrante das comemorações, nos impulsiona  agora para a resolução dos problemas adiados, mascarados, e que perpassam as contradições que vivemos. Nossa verdadeira face não nos chegará através de propaganda ou do convencimento, senão do enfrentamento de nossas mazelas, do reconhecimento de nossas cisões, dicotomias ou fissuras, e das nossas capacidades infinitas e criativas que muitas vezes estarão envolvidas no lodo ou na lama daquilo que muitos consideram "a pobreza", ou ainda nas roupagens simples e sem muito glamour  das expressões da "população excluída".

Esse mesmo Eros que nos levou nas asas do êxtase também nos levará à tensão das oposições e das contradições. Quanto mais resistirmos, quanto mais mascararmos e quisermos evitar os pontos doloridos, petrificados e não resolvidos de nossa cultura, mais duro será o processo. O Brasil, nos seus substratos psíquicos, nas ações que emergem através de sua expressões culturais e políticas em um sentido amplo, pulsa querendo sair de suas entranhas para construir um mínimo denominador comum.

Precisamos nos conhecer e nos reconhecer como brasileiros, para podermos nos reconhecer dignamente como cidadãos planetários. E nesse âmbito emergirão, se permitirmos, as nossas maravilhas e as nossas mazelas, as nossas diferenças. As duras provas dessa convivência, que já começou a se fazer, não poderão ser levadas a bom termo sem um sentido. Um sentido que já foi o propulsor das eleições de 2002.

Esse sentido, carregado pela população nesse processo e canalizado dentro de uma proposta política carregava um símbolo, que foi catalisado principalmente na figura e na postura do Presidente Lula. O símbolo não está nele. Ele é apenas um catalisador. A possibilidade de perdurar essa ligação poderá fazê-lo um indutor desse processo, juntamente com seu ministério e equipes de trabalho com ele afinados. Ou, então, a recusa e a incapacidade de captar e canalizar esse movimento farão transmigrar essas energias para outro porto, ou ainda, a condensação e a não realização dessas energias nos levarão  a períodos de tensão insustentáveis, com fins não previsíveis.

Vivemos um momento histórico em que se nos abre uma janela. Um encontro da nossa história com o nosso próprio "mito", a possibilidade de encontro com nossa verdadeira face e uma prestação de contas conosco mesmos no momento presente. O processo é maior do que nós, que estamos nele imersos, e por isso é necessário se ouvirem as várias vozes, da sociedade, da cultura, criando-se os canais adequados para que as vozes não "costumeiramente" contempladas  possam se manifestar contribuindo com o processo, em vez de se tornarem vozes destrutivas. Isso só será possível com a abertura para a ampla participação e com o acolhimento das críticas, das diferenças de pensamento. Teremos que exercer como nunca a democracia e a tolerância, deixando de lado os resquícios paranóicos do poder, heranças nazistas, stalinistas e ditatoriais brasileiras também.

Se a população tiver formas adequadas de expressar suas satisfações e descontentamentos, puder colocar suas contribuições ao processo, e seus indutores não pretenderem realizá-lo de forma vertical (de cima para baixo), as fases de tensão pelas quais necessariamente passaremos serão atenuadas.

O momento é de ruptura, que significa risco,  e que necessita da coragem de todos, para não se omitirem dos seus papéis. Não olhar para trás, nesse caso, terá um significado importante para todos - significa não querer reeditar aquilo que já passou, que não combina com esse movimento para frente que vivemos, de mudanças. Significa que temos que viver o presente, as demandas e necessidades do presente sem tentar represá-las em função de um futuro, que não sabemos se acontecerá. Significa, também, que não podemos viver historicamente o que já passou.

Já tivemos república dos amigos, já tivemos república das eminências pardas, já tivemos repúblicas do populismo, agora precisamos de uma república criada à imagem e semelhança dos brasileiros, uma identidade que à ferro e fogo teremos que buscar agora, para o nosso próprio bem. Estamos nos reinventando como brasileiros, e precisamos nos dar conta disso para não darmos com os "burros n'água". A transparência será um requisito necessário.

O movimento é para frente e se não captarmos isso verdadeiramente, como a mulher de Lot no Antigo Testamento, ficaremos petrificados e viraremos estátuas de sal. Será que teremos novas oportunidades?

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda -www.veronicammiranda.com.br
Data:01/04/2003

 

*Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

A FALA - www.cepac-ce.com.br 

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