ARTIGOS

As marchas chegaram ao Brasil: um ciclo que se fecha, o grito ancestral, as cidades malvadas.

 Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Enquanto me preparava para escrever  eu pensava que nos meus cinqüenta e tantos anos de vida, nunca havia imaginado  que no "Brasil cordial" eu veria tamanhas marchas e passeatas de pessoas de todas as idades e classes sociais nas ruas, lutando por cidadania. E o que é melhor, tendo algumas respostas rápidas e conquistando um espaço de poder nunca antes tentado. Passei um tempo sem querer escrever sobre tudo isso, pois acho que mereço "curtir" este momento e ficar alegre e contente, por mim e pelos brasileiros. Apesar de todas as análises políticas, filosóficas, históricas e necessárias sobre essa conjuntura tão surpreendente eu só consigo sentir realmente que houve um desbloqueio. É como se a população se perguntasse a si mesma,  pela primeira vez, e cada um por sua vez: Quer dizer que nós podemos também fazer isto? Quer dizer que nós temos poder? Quer dizer que se nós vamos pras ruas nós também podemos mudar alguma coisa neste país? E é sobre esse encontro das pessoas com uma faceta delas mesmas, que só agora foi reconhecida em conjunto nas ruas, onde manifestaram com faixas, cartazes, cânticos e gritos, com mãos e pés ao longo das ruas nas cidades "feitas para odiar", que acho importante refletir. Nas pontas do iceberg de um sistema excludente, da violência urbana, com serviços precários e deficitários, infernos cotidianos, as cidades nasceram de novo sob os pés caminhantes que sangraram as ruas com outras proposições e gritaram com força: Não queremos mais esse sistema de transportes, esse sistema de educação, esse sistema de saúde, essa violência.  Que bom será reconstruir as "cidades malvadas" em um lugar de paz, de direitos, de vida!

Lembrei-me, então, de forma muito clara o que disse e escreveu um sociólogo e pensador peruano (Aníbal Quijano) sobre  a discussão da modernidade na América-Latina. Discutia que na América Latina pelo processo de colonização não tinha se estabelecido a modernidade, mas a modernização. A diferença para muitos pode ser sutil, mas é verdadeira. Vivemos até agora a colonialidade do poder, mas vivenciamos, enfim, um período de retorno, onde podemos descolonizar ou se não impedirmos recolonizar as Américas. Podemos recuperar os processos perdidos, unir as pontes. Nossas escolhas serão importantes. E agora ao sentir esse desbloqueio, essa ruptura, que anos atrás expressei em imagens como um nascimento, um parto ou um fruto, se vê a olhos e ouvidos nus, nas expressões das pessoas, nas novas expressões políticas, os sintomas sutis da modernidade. Bom, então a modernidade não é tão ruim quanto se pinta. Ela é até necessária nesse confronto de mundo moderno e mundo ancestral (América e Abya Yala) que estamos vivendo, para formar o novo mundo nas Américas. Participar, sentir-se parte de um povo, sentir-se responsável pela reconstrução de cidades, de um país, exigir uma representação verdadeira, uma democracia verdadeira e participativa, lutar pela vida e os direitos fundamentais do ser humano é como viver uma "revolução francesa" em outro milênio, ou resgatar princípios herdados da cultura ocidental que nunca foram tão presentes, conscientes e reconhecidos. É sobretudo vivenciá-los. É um ato de emancipação e  liberdade.

Vista de outra perspectiva, toda essa movimentação é resultado também de um ciclo que está se fechando e outro que está se abrindo, um pachakuti que foi anunciado este ano, e que ocorre coincidentemente nas festas do sol, solstício de inverno - época de renascimento. Para quem não se deu conta há uma grande movimentação da natureza e dos povos ligados à natureza nas Américas e no Brasil, dos quais temos uma herança não de menor importância que a ocidental, e a quem estamos arquetipicamente ligados. Foi deles, dos povos indígenas, o primeiro desbloqueio este ano, quando, com um grito ancestral decidiram se insurgir contra uma ordem política que os leva paulatinamente ao extermínio como povos e culturas. Apesar do não reconhecimento político dos povos indígenas pelo Estado Brasileiro, seus gritos e lutas ecoaram pelo Brasil, em vários movimentos e confrontos com fazendeiros, políticos  e através, também, da ciberesfera. Em alguns momentos se uniram às passeatas e marchas urbanas sob os gritos em uníssono da população de "os índios representam". Em um GT com os povos indígenas na Câmara de Deputados, neste mês de junho, uma liderança indígena disse: "Nós somos os primeiros povos desta casa e precisamos ser respeitados."  A percepção de que os povos originários  compõem nações e etnias diferentes, mas ao mesmo tempo se inscrevem no conjunto da população brasileira ou povo brasileiro, deu o mote de que as bandeiras nacionais desfilando nas ruas, que o hino nacional sendo cantado nas marchas não eram simplesmente uma questão ufanista ou de nacionalismo fascista como querem analisar algumas pessoas, mas a compreensão e o reconhecimento de ser parte do povo brasileiro. O povo brasileiro se reconhecendo. O caminho para a plurinação? Esse movimento que se iniciou há tempos atrás no primeiro governo Lula, mas que foi esvaziado com as mudanças de rumos do governo e da política. Agora, contraditoriamente ressurge como protestos durante a copa das confederações e até mesmo questionando-a. Até a estátua do poeta Drummond na cidade do Rio falou com cartazes em fotos pitorescas: "No meio do caminho tinha uma copa/ No meio da copa encontramos um caminho." A efervescência no inconsciente coletivo já manifestada em outras conjunturas políticas reforçando candidaturas, agora reforçaram a cidadania, questionando os gastos e corrupções com a copa de futebol. Apesar  de alguns analistas dizerem que o tema corrupção sempre foi um artifício da direita para dar golpes de estado, infelizmente ela é muito real e o sistema de representação política está tomado por ela. A corrupção política, a traição dos ideais políticos da maioria da população que acreditou em um caminho e em uma estrela ( Se aqui a estrela não se vê jamais) misturam-se enquanto os pés sangram nas marchas e uma fonte de novas inspirações e expressões políticas nasce para gerar um novo fruto. 

A população brasileira está exigindo representatividade e participação política real enquanto descobre e ocupa um espaço de poder real:  as ruas. Vem pras ruas! É o chamado. Os jovens com caras pintadas tais quais os povos indígenas se preparando para uma guerra, congregam através do facebook e da ciberesfera em uma horizontalidade desconhecida até pelos movimentos sociais organizados que protagonizaram muitos momentos nas duas últimas décadas. Desmontam as formas de fazer política e deixam muitas pessoas atônitas, preocupadas e temerosas: a denominada direita com medo de uma revolução, a denominada esquerda com medo de um golpe. Antigos intelectuais "parametrados" analisaram  as marchas como movimentos inconsistentes e temporários, os políticos tradicionais ficaram insatisfeitos porque não havia lideranças para cooptar e as dúvidas e reticências existem e continuarão por bastante tempo, até aprendermos com as novas experiências, decantá-las e realizarmos todo o necessário. O importante é saber que cordas se romperam para compor uma nova harmonia. Um novo espaço de poder  e participação, que também quer paz, foi descoberto e reconhecido, agora urge que se aproveitem as novas formas de expressões políticas e se criem novos eixos na representação política, na economia e na cultura. A mobilidade da época, na configuração de novos tempos e espaços, recomenda a não criação de modelos e sim eixos, pois como em todo tempo moderno verdadeiro "tudo que é sólido se desmancha no ar". É bom pensar que a população sabe agora que pode derrubar políticos e governos. Será que eles também tomaram consciência  dessa nova realidade?

 

VEJA : TERRA BRASIL...AVANTE! Imagens feitas no passado sobre o presente.

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda -www.veronicammiranda.com.br
Data: 30/06/2013

*Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará - CEPAC.

 

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