ARTIGOS

O ESTADO BRASILEIRO, ESSE DRAGÃO

 Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Das aventuras do povo brasileiro nas eleições de seus governos e representantes políticos muito tem se falado, estudado, produzido. No meio da polêmica sobre o  voto do "salvacionismo", a busca de um salvador da pátria, e a do voto consciente, histórico e cidadão, eu fico com as duas versões. O povo brasileiro além de histórico é "mítico". E não poderia deixar de ser uma vez que carrega um passado sempre presente, do irrealizável, que o faz necessitado de voltar sempre às suas origens. Fissuras no seu desenvolvimento como povo, como nação, grandes dívidas econômicas, sociais, políticas e culturais. Daí eu entender que apesar de militantes políticos, constituintes de movimentos de base e participantes  de uma sociedade civil ativa, muitos brasileiros carreguem em seu íntimo o secreto desejo de eleger um São Jorge que debele as mazelas insuperáveis do Estado Brasileiro.

Votamos secretamente em São Jorge e descobrimos depois que ele é somente humano e nem sempre heróico como a situação requeria. Votamos em proposições políticas para que as mazelas do Estado Brasileiro sejam debeladas e descobrimos depois que o Estado não é somente um Estado, mas um dragão. Ficamos assim divididos e desconcertados: se não pegamos o "mito", ele nos pega. O melhor é considerá-lo.

O Estado Brasileiro desde sua formação até o desenvolvimento de seus inúmeros tentáculos, nos dias de hoje, é um verdadeiro dragão. Volvemos os olhos para a história e o temos desde a sua formação massacrando os ideais da população brasileira. Criadas as vigas de nossa cultura e sociedade, na salada étnica, religiosa, econômica e cultural que se desenvolveu com a empresa colonial no Brasil criaram-se também as fissuras, as dicotomias, que iniciam sua cristalização no século XIX, a matrix e início da formação do Estado Brasileiro.

 Aí iniciaram-se nossa eternas dívidas econômicas, aí iniciaram-se as oligarquias, aí iniciaram-se os acordos políticos espúrios, e foi reforçado o patrimonialismo, herança do Estado Português sem dúvida.Foi se constituindo uma espinha dorsal que passou a mediar nossas ações políticas, de sobrevivência, de constituição de uma nação e até dos nossos sonhos e ideais, impedindo suas realizações. Aí também iniciaram-se os nossos descontentamentos, e nossos ideais sob várias roupagens, ora liberalismo radical, ora socialismo e tantos outros, que tentaram se manifestar contra as injustiças sociais, e foram aplacados pelo Estado, em função de uma unidade que servia a uma ou poucas "elites", e às nações emergentes do hoje todo poderoso capitalismo mundial.

De lá pra cá, entre colonialismos e neo-colonialismos, divisão e re-divisão internacional do trabalho e outras redefinições internas brasileiras, temos ainda um Estado Capitalista Monopolista, procurando satisfazer a boca insaciável do "mercado", através do sistema financeiro e produtivo do país e seus detentores, em detrimento da maioria da população, com uma sociedade civil crescendo à sua margem, e com um sistema de poder capaz de contrariar qualquer forma já estudada. Foucault aqui refaria os seus estudos, os seus conceitos. Temos, então, como ele provavelmente teria que fazer, que desentranhar o significado histórico e mítico do poder do Estado Brasileiro.Uma empresa deveras árdua e complexa sobre a qual me atrevo agora, apenas, a fazer alguns comentários.

O Estado Brasileiro tal qual um dragão suga os brasileiros, através de impostos, a maioria deles indiretos sobre a maioria pobre da população, de altos salários do erário em detrimento dos cidadãos comuns, da corrupção no seu aparato burocrático, dos acordos políticos e medidas que encetam e ensejam políticas econômicas excludentes.Ora se apresenta com os "empregos" acenando para uma quantidade de brasileiros desempregados e sem forma de sobreviver por causa das políticas econômicas que ele mesmo enceta, criando suas castas defensoras em seu seio e o corporativismo que assola o país.Ora num passe quase de mágica os deleta de suas folhas de pagamento, prejudicando-os, para cumprir seus objetivos renovadores de oxigênio, e para poder continuar nos sugando. Aqueles que o defendem sempre defendem também alguns interesses particulares, dentre os quais muitas vezes o próprio interesse.

O corporativismo, cheio das ambigüidades próprias dos seus sujeitos constituintes, que ora são cidadãos, e como tais querem as transformações que necessita o país, ora são defensores desse Estado e por que não do seu emprego. A população em geral sempre desconfiada do Estado e não por acaso, senão pela prática da vida cotidiana ao longo já de dois séculos. Mas, por outro lado,  a população necessitada e carente de políticas públicas que minorem a situação difícil e às vezes de penúria que o próprio Estado cria e ajuda a criar, aceita ser "anexada".

Não precisamos estudar e entender Max Weber de cabo a rabo, para sabermos o que significa a burocracia brasileira. Quem já teve o desprazer de lidar de alguma forma com a burocracia kafkiana brasileira e sair sem muitas lesões, pode se considerar doutor em Weber, pois isso é quase impossível. Se não quisermos fazer alguma coisa entreguemos à burocracia brasileira. E é por isso que os programas sociais não caminham. É para se perguntar: será que há interesse em fazê-los, já que ficam entregues à burocracia, que nunca realiza nada? À imagem e semelhança das "elites" que governam, os objetivos da burocracia do Estado Brasileiro são outros.

E assim, o Estado das "elites" brasileiras nos sangra, e nos convoca para através de eleições conjuntas fornecermos o álibi para  a monstruosidade desse dragão. E, como se não fosse bastante, usa o dedo acusador, através de várias das suas instâncias e de seus poderes - executivo, legislativo e judiciário- sobre a população chamando-a de corrupta, marginal, "pobre"(e aqui chamam a "pobreza" de mancha), incapaz, amorfa e tantos outros pejorativos, criando mitos, no sentido grego e mentiroso da palavra, para justificar sua permanência, para não "soltar o osso" e continuar sugando. E do outro lado, através dos noticiários, ouvimos os roubos de juízes da previdência, ouvimos o envolvimento do poder legislativo com o narcotráfico, ouvimos o envolvimento de vereadores com o roubo da merenda escolar de crianças da escola pública. E, então, percebemos que o Estado Brasileiro tal qual está constituído e montado tem que ser depurado.

É plenamente justificável, então, que os brasileiros ao não conseguirem realizar nunca através de suas proposições políticas seus desejos de uma vida mais digna, pensem em secretamente eleger um São Jorge, que com sua lança afiada acerte o coração desse dragão, e nos devolva nossas energias sugadas, nossos ideais frustrados, nossas potencialidades não desenvolvidas, nossas divisões e fissuras que precisam ser seladas.E assim, caímos na dura realidade, depois das eleições, ao perceber que não há nenhum São Jorge, mas um presidente e representantes eleitos dispostos a dançarem com o dragão em vez de matá-lo.

Dançar com o dragão sem ser São Jorge é dançar com o Mito nos dois sentidos. O dragão-Estado não tem somente aquela cara terrível e tenebrosa que nos suga e nos explora como população e classe trabalhadora brasileira. O dragão é um sedutor.Coopta todos aqueles que estão investidos de poder pela população, através de sua sedução, sinalizando poderes não imaginados por Fausto de Goethe, nem por Cristo ao ser tentado no pináculo pelo demônio. Nesse caso, dançar com o dragão e ainda pretender vencê-lo é vencer a si mesmo, tarefa hercúlea e quase divina. Dançar com o dragão faz estadistas renunciarem a idéias, já escritas, de toda uma vida, e  discursos de palanques de uma vida toda.Mas é uma tarefa heróica, para aqueles que pretendem entrar para a história como humanos que conviveram com o mito e o transcenderam.

Nessas pegadas, temos que ir investindo muito nos grandes avanços conseguidos pelos movimentos sociais, pela constituição de uma sociedade civil cada vez mais articulada, que precisa mostrar sua força e sua presença, principalmente em momentos cruciais como os que vivemos atualmente.Não se deixar iludir pelas seduções do dragão-Estado e cumprir o seu papel e sua responsabilidade como sociedade civil nesse processo.

Em todo caso, e considerando os movimentos sociais no Brasil, se não houver um esforço heróico de nossos representantes para vencer o dragão, teremos que acreditar que ainda muito podemos fazer para que ele de tão pressionado e atrapalhado comece a devorar sua própria cauda.

 

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda -www.veronicammiranda.com.br
Data:04/04/2003

 

*Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

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