ARTIGOS

OS DOIS BRASIS E A REVOLUÇÃO DAS FLORES: UMA EXPERIÊNCIA DE REVOLUÇÃO TOTALMENTE BRASILEIRA

 Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Instada por uma crítica de que o Governo Lula nunca teve pretensões de fazer revolução e que seus objetivos sempre foram outros, eu escrevo esta crônica, em pleno Domingo de Ramos, depois de receber uma mensagem via e-mail sobre o seu significado para os latinos. O Domingo de Ramos chamava-se "Pascha Floridum", "Pascha Florum" ou "Dies Floridus" todos significando Páscoa das Flores ou Dia das Flores.

Ocorreu-me, então, que vivemos essa passagem, essa páscoa, essa ruptura, esse marchar de uma "Revolução das Flores", para uma vida nova no Brasil, para fazer florescer a nação brasileira. Uma revolução completamente brasileira, e como tal "cordial" - ninguém me culpe por isso, não comecei essa história - porque se destina não a separar, nem a guerrear, mas a unir as pontas de um mesmo laço brasileiro, de dois Brasis; porque começou com paz e amor; porque para fazer a justiça social e a democracia que necessitamos, além das medidas de emergência e algumas reformas estruturais e de justiça social, precisamos dar uma reviravolta cultural e, portanto, também política. Esta sim, talvez seja a maior ruptura do momento, que servirá como base sólida para o futuro por vir. Por que teríamos que fazer uma revolução igual às outras, de outros países e nações, com toda a originalidade que carregamos e a singularidade de nossa história? E assim, talvez tenhamos que mudar um pouco o conceito de revolução.

E, como uma simples observadora, que também tem o privilégio de participar como população desse processo, passo a fazer algumas considerações sobre essa "revolução" desde o começo. Ora, uma revolução desse tipo não poderia nunca ser iniciada pelas "elites" que sempre governaram o país, porque essas "elites" não são "inclusivas". Ao contrário, desde o início do Estado Brasileiro elas trataram de transformar as fissuras existentes no seio da população em fossos de diferenças. Diferenças gritantes entre regiões, diferenças gritantes entre classes, diferenças gritantes entre etnias, diferenças até entre religiões no meio do sincretismo religioso brasileiro. Uma desigualdade também na mentalidade.

Essas fissuras chegaram a um ponto crítico, e quando a população percebeu que havia um candidato presidente que era operário, que ousava vestir um paletó com gravata de grife e com essa postura dizendo "eu sou um operário brasileiro, me reconheço como tal, e mesmo assim posso vestir a roupa que quiser", a população reconheceu uma verdade que sempre lhe foi negada. A verdade que um operário, ou qualquer brasileiro que não pertencesse às "elites" tinha o direito de se vestir como queria e não somente da forma como essa "cultura das elites brasileiras" tinha preconizado durante séculos.Para essa cultura, e ideologia, "o povo tinha que ficar no seu lugar". Nos jornais, a imprensa de direita questionava o paletó e a gravata de Lula, dizendo que ele queria enganar a população porque se vestia assim.

Ora, esses preconceitos nos remetiam imediatamente às senzalas, há séculos atrás, quando na mentalidade escravista um escravo só podia  vestir roupas de algodão, as sedas eram para os senhores. Percebemos assim, como durante a campanha das eleições 2002  emergia o preconceito, o passado colonial brasileiro mais que presente como um vulcão pronto a explodir. Mas essa atitude de Lula, tão questionada pela direita, foi também catalisadora de um símbolo, quando os brasileiros que não pertenciam às "elites" reconheceram que o candidato Lula estava fazendo o que todos queriam fazer e não sabiam, e que agora através dele essa mudança tinha sido sinalizada. Lula não era só reconhecidamente do seio do povo, era também povo que se valorizava, que reconhecia seus direitos: um brasileiro igual à maioria dos brasileiros em sua origem, e um brasileiro que todos gostariam de ser.

 Com  a eleição de Lula começa essa ruptura, por esta trazer em seu bojo uma reviravolta cultural em suas proposições políticas e no desejo da população que o elegeu. E foi com esse mesmo espírito que o Presidente Lula fez suas primeiras viagens ao exterior como presidente do Brasil. Apresentou-se como um operário, nordestino e brasileiro orgulhoso de sua condição e não com vergonha, ou quase  se desculpando por ser brasileiro, como alguns presidentes anteriores faziam. Nessa condição ele não estava sozinho. E brilhava, não somente por suas qualidades especiais e trajetória de vida que o levou à presidência, mas também e principalmente  porque carregava o Brasil nas costas.Todos o acompanhavam vibrando pelo seu desempenho. É um representante reconhecido.

 E assim é chegado o momento de realizar aquilo que a ministra Marina Silva falou em conferência no Fórum Social Mundial 2003, em Porto Alegre - dar oportunidades para que os brasileiros da mesma condição sua e do presidente Lula, não tenham que passar por todas as dificuldades que passaram, e necessitarem ser tão especiais para chegar aonde eles chegaram. As oportunidades têm que ser dadas à maioria da população, começando pelo reconhecimento dos seus direitos em vários níveis.

Comecemos reconhecendo que há dois Brasis: O Brasil das "elites" e o Brasil da maioria da população, que vive a "cultura da pobreza". Já tivemos oportunidades, através das análises de intelectuais brasileiros, de questionar Os Dois Brasis de Jacques Lambert, a famosa tese dualista do Brasil pobre e Brasil rico. O questionamento entendia, diferentemente de Lambert e das teses dualistas, que o Brasil pobre existia porque existia o Brasil rico, como partes orgânicas do desenvolvimento econômico-social desigual e combinado, para atender as necessidades concentradoras do capital. Obviamente temos que entender que isso não foi feito em um vazio político, e que todas as justificativas, dentre elas as culturais, foram muito utilizadas para seus agentes perpetrarem tais desigualdades. Parece-nos que ao não conseguir debelar esses problemas pelas rupturas econômicas necessárias, considerados os riscos para a conjuntura política atual, deveríamos começar pela ruptura cultural e política, virando o Brasil de ponta-cabeça.

Para pensarmos os dois Brasis dessa perspectiva, é necessário considerar que foram essas elites que constituíram todo o aparato político e burocrático do Estado- incluindo aqui os partidos políticos que do ponto de vista da população são braços do Estado, ao invés de canais políticos de representação, com raras exceções - e que por dois séculos este monstro está aí a mediar nossas relações, se interpondo entre os representantes eleitos e o próprio povo.

Foram essas elites que quiseram apagar a "mancha" da escravidão do Brasil, queimando a documentação e os rastros de sua existência, mas não reparando as injustiças causadas. Foram essas elites durante muitos anos que não quiseram reconhecer os direitos que os indígenas tinham de suas terras e de sua cultura. Foram essas elites que demoraram a reconhecer e a aceitar o que eles acreditavam ser a cultura da "pobreza", nos ritmos, nas danças, na música, nas religiões,  e que não eram parte da herança cultural do colonizador e depois dos neo-colonizadores. As "elites" e o Estado das Elites Brasileiras quando aceitam não "incluem" verdadeiramente a "cultura da pobreza", mas a "anexam" e muitas vezes a descaracterizam.

Mesmo assim, esse outro Brasil, não aceito pelas elites, com uma força fenomenal foi se impondo desde o século XIX. E o fez com outros ritmos, que não os trazidos pelos colonizadores, como a música de Chiquinha Gonzaga, por exemplo, com o  samba que desceu do morro depois, com o forró mais recentemente, que conquistou todo o país, com a música e os ritmos afro-brasileiros dos baianos, que estão se popularizando mundo afora, com os craques do futebol brasileiro, quase todos de origem humilde, do seio do povo, para fazer o Brasil brilhar aqui e lá fora, e com os movimentos sociais genuinamente brasileiros, que se organizam para fazer valer os direitos da população considerada "pobre".

Temos o exemplo do carnaval, a passarela do samba, com suas raízes fincadas no morro e a expressão de seu povo e sua arte maravilhosa, que generosamente abriu suas portas e acolheu a burguesia e todos os segmentos da sociedade em sua festa, para brilharem juntos para o mundo todo. E as outras expressões variadas e populares por todo o Brasil que explodem no carnaval e fazem todos compartilharem essa riqueza cultural.Esse "Brasil brasileiro", com formas próprias de ser e de viver, que trazem força e colorido para esse país, não consegue carregar essa alegria e vitalidade para a esfera da política e do Estado Brasileiro.

Essa esfera que é a do comando, que dita as regras no Brasil, faz as leis, as aplica e as fiscaliza é cinza. Cristaliza algo que não é alegre, que não é vital e que traz esse fosso entre aqueles que fazem o Brasil vivo e pulsante, e aqueles que o dominam. Essa elite que não aceita um Lula de paletó e gravata, porque povo não deve se vestir assim no Brasil, essa mesma elite que não deixou o jogador Sócrates, quando estava no auge de sua carreira, entrar em clube privado de grã-finos no Centro-Sul, justificando que ele era famoso como jogador, mas era apenas um jogador de futebol e aquele era um clube da elite. Essa elite não tem condições de "incluir" a população, pois não é inclusiva e muito menos brasileira, no sentido real do termo. Para encontrarmos nossa cara temos que fazer uma reviravolta e começar a mudar. Encontrar um terceiro ponto, um novo parâmetro cultural capaz de  selar essa fissura ou fosso.

O Brasil precisa mudar a cara de sua esfera política, seu Estado e seu comando, levando o colorido de seu povo, seu ritmo, sua cara alegre e vibrante, seu jeito, renunciando às velhas formas de fazer política e aos acordos espúrios feitos à revelia das necessidades da maioria da população.Ora, diferentemente do que se tenta passar através dos recursos midiáticos e da visão das elites, "a cultura de pobreza" no Brasil nunca massacrou ninguém, nunca excluiu, mas somou e acolheu a população sem distinção. Um exemplo é a eleição de seu próprio presidente, à sua imagem e semelhança, que procura a paz, a fraternidade e os acordos.

Mas o povo brasileiro, com sua "cultura de pobreza" esperava e espera, agora,  que por via pacífica, de acordo com as leis do Estado Brasileiro, sua cultura e seus direitos que estão no papel, mas que são tão negados, e suas diferenças, sejam reconhecidos e aceitos, para que possa ter um mínimo denominador comum, e possa como uma nação verdadeiramente constituída, forte e pujante, fazer face aos desafios maiores que virão neste século. Sem a "cultura da pobreza", o Brasil é verdadeiramente pobre. Essa cultura precisa ser reconhecida e aceita nas várias instâncias e âmbitos do país e da nação, para que o Brasil faça o seu processo de "inclusão social e cultural".

Comecemos cantando com o Ari Barroso:

"Brasil !
Meu Brasil brasileiro,
Meu mulato inzoneiro,
Vou cantar-te nos meus versos...
.................................

Ô abre a cortina do passado,
Tira a mãe preta do cerrado,
Bota o rei-Congo no congado,
Brasil!
Brasil!"

 

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda -www.veronicammiranda.com.br
Data: 13/04/2003

 

*Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará -CEPAC.

 

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