ARTIGOS

O Império do Medo nas Terras de Lampião ou Matrix é aqui

 Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

 Façamos de conta que estamos em um teatro ou em um cine. Aparece uma cena. Um juiz telefona e diz: “Não se preocupe, eu vou fazer eles desistirem da ação. Depois liga para outro cidadão e diz: “José você vai ter que me ajudar. Temos que fazer os pequenos produtores desistirem dessa ação contra o Banco. Recebi um telefonema da desembargadora, o homem lá do governo falou com ela e disse pra ela interceder. Se eu não fizer o que ela quer, ela me transfere para aquela cidadezinha horrível que eu não quero ir. De qualquer jeito esse caso já era mesmo perdido.Questão de produtor miserável contra aqueles caixa altas...”

 Em outra cena, o Secretário da Agricultura fala com o auxiliar: “Arranje um lugar no departamento para um novo funcionário que vai chegar amanhã.” O funcionário diz: “Mas não tem lugar pra mais ninguém. Ele responde: "Não tem importância não, arranje da mesma forma, porque ele é “clone” do Afrânio, aquele peixe graúdo do governador. Assim também eu consigo uns votos bons para prefeito lá da minha cidade...A gente tem que manter a máquina.”

 Em outra cena ainda outro telefonema. Dessa vez o governador: “Já disse, rapaz, pra não me comunicar essas coisas por telefone, pode ser interceptado. Você faz como combinamos, intercepte o telefone deles todos, e aquele caso do radialista que fala contra o meu governo, você coloca no andar de cima do mercadinho dele um posto de fiscal da fazenda. Ele é um pequeno comerciante e deve sonegar imposto como todo mundo. Diga pro pessoal marcar em cima dele.”

 Bom, isso não é o mundo do passado, nem do futuro, mas do presente brasileiro e nordestino. Isso também não é “Matrix”, o filme dos irmãos Wachowski, mas tem clones, máquinas e redes virtuais de maracutaias, muita perseguição, pouca liberdade e medo, conservação de um status quo antigo, que remonta à própria criação do Estado Brasileiro, com possibilidades de cada vez mais se destruir o que é humano, o tecido social e levar à destruição cada vez maior da cultura.A cultura da dominação, através de seus vários mecanismos cada vez mais simulados, pode nos levar também à perda dos valores humanos e éticos. Parafraseando Caetano Veloso que disse, o Haiti é aqui, eu digo,  Matrix é aqui. Pois apesar dessas cenas serem reais elas não aparecem no palco, são cenas de bastidores. O que aparece é o simulacro. Mas todos sabem delas e existem códigos já implícitos, para não ousar, não falar, ceder e não insistir. Mas se vive o “faz-de-conta”, a ilusão.

 O filme Matrix paradoxalmente é o resultado dessa “sociedade de consumo”, virtualizada, que ele mesmo tenta questionar, se tomarmos como referência para suas idéias o trabalho de Jean Baudrillard Simulações e Simulacros, e se considerarmos que esse mundo das máquinas e virtual é a própria sociedade de consumo, do fetiche e da ilusão que já vivemos. O filme vende tudo, e faz vender desde óculos, figurino, kung fu,  até auto-conhecimento e  espiritualidade um tanto questionável. Um pastiche de filosofias orientais, ocidentais, mas sem dúvida um filme de ótimos efeitos especiais. Assisti aos dois, Matrix e Matrix Reload e achei interessante do ponto de vista da ficção, dos efeitos que os tornam impactantes, tecnologicamente bem realizados, mas rasos e superficiais sob outros pontos de vista. Mais metafórico do que simbólico. Os diálogos têm que ser ouvidos com detenção, em suas frases de efeito, já que o próprio filme e as imagens não passam esse significado mais profundo, daí a dificuldade de muitas pessoas em captar o sentido ou significado que os próprios autores quiseram lhes conferir. Imagens carregadas de símbolos e significados profundos, ou verdades, não carecem de explicações.Mas, como um filme metafórico, e como alegoria, presta-se para várias comparações,algumas já feitas, com o mito da jornada do herói estudada por Carl Gustav Jung e junguianos, entre outros.

 Para quem não assistiu, os filmes, que formam uma trilogia, da qual só dois até agora nos chegaram, tratam de um mundo que se quer real. Aparece como real para Neo, o protagonista da história, até ele ser convocado por sonhos, e através de um tipo de iniciação entrar em outro mundo que é verdadeiramente o real. O que ele vivia até então, ele descobre, é virtual, nada mais e nada menos do que um sistema de computador – a matrix, onde está tudo programado. Descobre, então, levado pelas mãos de um iniciador, que há um outro mundo realmente humano, que é Zion, e que corre o risco de ser destruído. Ele foi localizado por dito iniciador, que acreditava em oráculos, por apresentar potencialidades, e quem sabe defeitos de fabricação, para ser o predestinado e evitar a destruição de Zion. Os dois filmes, que são uma continuidade, vão desde sua iniciação de predestinado, com todas as dúvidas, medos, descobertas de enigmas que fazem a trajetória de um herói até ele chegar à fonte e ao criador da matrix, começando a se tornar supra-humano, quando começa a entender a linguagem das próprias máquinas.

 O filme se presta para várias interpretações, e já que ele não está sendo entendido completamente no “significado profundo” que alguns tentam lhe conferir  e que muito provavelmente faz parte também do pacote  de publicidade, melhor seria compará-lo com nossa própria realidade ilusória, buscando verdades há muito recolhidas e cada vez mais virtualizadas. Assim poderemos aproveitar o “boom” de Matrix para algo realmente necessário: buscar entender um pouco de nossa sociedade, os mecanismos de nossa cultura, nossos destinos.

 Provavelmente e segundo as idéias de Jean Baudrillard, a realidade e irrealidade nordestina tenha mais a ver com suas idéias de simulação do que o próprio filme “Matrix”, que dizem os autores é baseado em suas idéias. Acompanhando as declarações de Baudrillard à imprensa em que ele nega que os filmes trabalhem a contento a sutileza da “simulação” da sociedade moderna, gostaria de citar suas idéias apenas como referência, já que a sua idéia de objetivação do mundo, do desaparecimento da alteridade, da virtualização e da perda do real é  mais profunda, mais complexa e  eu correria o risco de simplificá-la.

 Mas indo nas pegadas de suas próprias declarações, a simulação da realidade que existe em sua teoria ocorre em apenas um mundo e não em dois, como coloca o filme Matrix, que se divide em dois mundos : Matrix e Zion.Um real, prestes a ser destruído, e um virtual dominado pelas máquinas, onde todos vivem a ilusão de serem reais. Nós vivemos os dois, ao mesmo tempo, dupla face, em que  uma é a real e a outra a simulação cada vez maior da realidade, lembrando que essas idéias dialéticas, em que  nós vivemos duplamente  a  essência e a aparência, são bem antigas. O problema,  segundo Baudrillard, é que no mundo moderno essa aparência, ou objetivação cada vez maior da realidade fez-nos perder aquilo que havia de subjetividade, para não falar de essência. Há uma coisificação do mundo, uma fetichização, e além disso uma virtualização até da arte. Se nas artes e na cultura, stricto sensu, no Brasil e especificamente no Nordeste, ainda nos resta um capital simbólico, na política talvez não possamos dizer o mesmo, estamos virtualizando a dominação, o autoritarismo, o coronelismo e o clientelismo com tudo o que eles encerram.

 Esse mundo real, onde todos esses mecanismos de dominação, ilustrados acima, que começaram  no século XIX, na época em que as perseguições políticas aos cidadãos brasileiros e nordestinos que contraditavam a ordem era serem enviados para a Guerra do Paraguai, se perpetuam, mas de forma simulada, onde aparentemente esses mecanismos já incorporados a uma cultura autoritária não existem, pois já não se precisa mais ameaçar o juiz que abandone o caso, ao burocrata que faça o que já está codificado, estruturado, programado, “o toma lá da cá”, “uma mão lava a outra”, tudo permeado pelo sentimento do medo. Essa forma de atuar e aceita, difícil de quebrar, foi construída historicamente através de mecanismos  que se renovam e fazem permanecer estruturas antigas sob novas roupagens. A criação de mitos, que não encerram verdades, mas falsificações, para justificar essa realidade virtual, essa “matrix”, foram construindo esses simulacros, formando uma “alma brasileira” e eu diria também nordestina, como já estudaram alguns pensadores brasileiros, que reputo de falsa, de simulação. Uma identidade forjada e imposta, para manter uma estrutura de dominação.

 Para sentir o nível do simulacro existente nessas relações que se iniciaram há quase dois séculos só fazendo o jogo da verdade e mentira.

 O nordeste brasileiro, foi dito por economistas conceituados há décadas atrás, é uma região que pela formação de sua economia ficou estagnado economicamente. Essas idéias dualistas já foram questionadas e colocadas sob um novo enfoque, o da dependência imperfeita, na década de 70 do século passado. Mas foi baseada nessa noção de estagnação econômica, de uma região atrasada em relação a uma região desenvolvida que foi pensado primeiramente o planejamento regional, com o intuito de resolver os desequilíbrios regionais, desde a década de 50 do século passado, com a criação da SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste).

 É necessário entendermos que esse planejamento, de outra forma e com outras características  já havia começado desde o século XIX. As primeiras tentativas tinham sido realizadas com a criação do IFOCS no final do século XIX transformado em DNOCS (Departamento Nacional de Obras contra a Seca) durante a República Velha e que tem perdurado até hoje. O primeiro, IFOCS, depois DNOCS, calcado na idéia de que a pobreza do nordeste  e suas dificuldades econômicas  eram causadas pela escassez de chuvas e  água foi questionado por parlamentares de nosso país já no século XIX. Acompanhando as atas do parlamento brasileiro no século XIX vemos como a discussão da forma de apropriação da água no nordeste, sempre beneficiando os fazendeiros e latifundiários é antiga. Os parlamentares do Sul questionavam os recursos enviados para o nordeste com o propósito de resolver o problema da seca, dizendo que os recursos eram aplicados em açudes construídos nas grandes propriedades, que beneficiavam uma pequena parcela da população deixando a maioria da população fora do benefício ou subjugada aos grandes proprietários através do líquido precioso. As outras formas de democratização da água eram recusadas pelos latifundiários e políticos regionais.

 Infelizmente, as argumentações dos parlamentares do Sul não foram bem consideradas naquela época e nem depois, já que o problema não era somente local ou regional, não era somente econômico, não era somente um problema dos nordestinos - que na época não eram chamados assim - serem dependentes de uma natureza ingrata. Era, na verdade, um problema eminentemente político. E às formas de subjugação já existentes nas relações sociais criadas pelo latifúndio e uma ordem política terrível e centralizadora se somou mais um recurso de dominação: a água planejada.

 A existência e continuidade do DNOCS  foi um pano de fundo, com a criação de um aparelho burocrático exponencial, que serviu às elites políticas, e que se constituiu durante a República Velha até há pouco tempo em um antro de corrupção, resultado de uma ordem política em que o público e privado se confundiam. Mas não só isso foi determinante de tal estruturação. Mas, também, o jogo político feito em nome de uma governabilidade do poder central que se apoiou nas várias conjunturas de centralização e descentralização do poder político, nas oligarquias, nos poderes locais, como fiel da balança, desde que o Brasil era uma composição de províncias, até se tornar o Estado Federativo que é hoje. Esse jogo político é permanente em nossa história  de República Federativa.

 A política de planejamento calcada na idéia da pobreza e da seca  que inicia com a República Velha corresponde aos interesses das elites regionais. As oligarquias vão ao poder central de “pires na mão”, e não como partes da unidade federativa que têm direitos e deveres. Conseguem aquilo ou parte daquilo de que necessitam, às vezes as migalhas, mas em troca do aval do poder central, para se reproduzirem e se sustentarem política e economicamente, preservando seus interesses em detrimento dos interesses da maioria da população. Dessa forma, as questões estruturais nunca foram  tocadas.A estrutura latifúndio-minifúndio, da qual ninguém mais fala, perdura, e a concentração de recursos e renda são crescentes. As mesmas estruturas que produziram a miséria e a pobreza ao longo de quase dois séculos, reforçadas e redirecionadas nos marcos da divisão e redivisão nacional do trabalho. No Ceará a oligarquia Pompeu Acióli na Primeira República caiu de podre. A intervenção do Governo Central chegou quando a população espoliada ao extremo já não tinha mais o que perder, e pelo visto nem o Governo Central.

 A revolução de 30, do século XX e a intervenção nos Estados da Federação fizeram supor que o poder das oligarquias tal qual haviam se estabelecido, sob a nova ordem política, não se constituiriam mais um grande problema para o sistema federativo. De fato, e há tese de história do Ceará mostrando isso, os próprios interventores da união foram cooptados pelas oligarquias locais. A história econômica do Ceará e outros Estados Nordestinos continuaram mediados por essa relação  política e pela história das secas, que passou a se constituir em álibi para as oligarquias locais, que exploravam a pobreza local para  pedir recursos ao poder central, como uma esmola para os flagelados. Esmola esta que em grande parte ficava nos bolsos e cofres das “elites atrasadas” e perdulárias. Criou-se assim, também, a tão pouco digna cultura do flagelo e da seca, com a qual os nordestinos não gostam de se identificar. Mas uma cultura do flagelo que serve para perpetuar o poder dos “coronéis”, que a utilizam na forma de “regionalismos”  reivindicando recursos para os estados do Nordeste, tratados como seus quintais ou feudos.

 Dentro da conjuntura da política desenvolvimentista os estados do nordeste se tornam alvo da política de planejamento, que embora possa se dizer hoje bem intencionada quanto à região, não considerou devidamente a estrutura política  e, por último e não de menor importância, não conseguiu junto com essa política desenvolvimentista, que passou pela criação da SUDENE, realizar uma reforma estrutural, que era a Reforma Agrária, que teve seus primeiros passos ensaiados e foi transformada brutalmente em Estatuto da Terra pelo Governo Militar. As questões estruturais não foram resolvidas no nordeste. Foram mantidos os principais aspectos da antiga relação “toma lá da cá” nos governos da ditadura militar com as elites regionais.

 Com essas políticas de desenvolvimento, o nordeste brasileiro, que antes não era necessariamente conhecido como Nordeste, passa a fazer parte da zona de semi-árido ou zona de seca, incluindo partes de outros estados de outras regiões. Esse recorte e privilegiamento da seca ou semi-árido para tratar  e realizar políticas públicas para o nordeste, muda e complica, como estudam alguns intelectuais brasileiros, a questão da identidade da população que o habita, e começa-se a descobrir que apesar de todos serem colocados sob uma mesma denominação “nordestinos”, há nesse espaço várias identidades e muitas diferenças. Mas “os nordestinos” como passam a ser reconhecidos os habitantes dessa área, são pessoas da zona do semi-árido que  carregam, por outro lado, o estigma da seca e da pobreza. É, dessa forma, que na redivisão nacional do trabalho, a população do sertão nordestino sem outras alternativas de sobrevivência vai servir de mão-de-obra barata para a construção urbana e indústria do centro-sul. Daí decorrem também os preconceitos.

  Com  a redemocratização do país tivemos novamente uma brecha de esperança e um início frustrado de Reforma Agrária que logo desembocou em políticas obscurantistas no Governo Collor, e foram retomadas depois sob a máscara do neoliberalismo.  O neoliberalismo como máscara, e de um modo geral, considerando as exceções, logo tornou-se o governo do império, refazendo os princípios oligárquicos de trocas de favores com o poder central, com o crescimento de uma rede mais invisível e imperceptível de reprodução desse poder político, principalmente no interior dos Estados, com o crescimento “relativo” da pobreza, com uma marca de liberdade que nunca existiu, e o deslocamento dos privilégios para os setores financeiros e industriais. Os pressupostos da velha “matrix” continuaram e foi iniciado um novo período de reconstituição das redes políticas, da falta de democracia e de continuidade do poder, ou seja, ausência e impossibilidade de alternância política. Voltamos, no Nordeste,  ao “coronelato” sem perceber realmente  que nunca havíamos saído dele, mas agora sob outras máscaras, com outras roupagens.

 Agora estamos diante de uma nova ordem política no país, em que o carro chefe seria o “social” e que em tese deveria reformular e romper com essas relações. As composições políticas do governo central, que ora  privilegiam a manutenção da governabilidade ainda não apontou em uma direção diferente. A reativação dos órgãos de planejamento regionais que carregam a possibilidade de recompor novamente um espaço político dessas “elites oligárquicas”, os acordos políticos realizados,  seja em nível de Estados, de composição ministerial e cargos, entre união e Estados da federação tendo em vista as duas reformas fiscais - tributária e previdenciária - tornando o governo central um governo de base ampla, leva-nos a crer que o círculo vicioso das relações União-Estados da Federação não será quebrado e reformulado sobre novas bases. Pois para isso é necessária a reformulação de dadas políticas e mecanismos de concentração de renda e a realização de reformas estruturais.Entretanto, na forma em que estão sendo feitos esses acordos, essas reformas estruturais não são possíveis, pois quebrariam esses “apoios recíprocos”. Falando de outra forma, esse círculo vicioso não pode ser quebrado sem incômodo, sem perdas de poder político e privilégios, e sem a criação de um espaço realmente público, para que possibilite a alternância política, que é o que significa a democratização de uma sociedade mantida, ainda hoje, sob as redes das oligarquias. De outra forma, também não será possível modificar o Estado Brasileiro, principalmente no que se refere ao patrimonialismo.

 Mas o que tem tudo isso a ver com o filme “Matrix” ? Tal qual “Matrix” o Nordeste Brasileiro, para não generalizar, vive sob o signo de uma dominação política, que se virtualizou e que através de diversas máscaras culturais e políticas foi se renovando nesses quase  dois séculos de Estado Brasileiro. Vivemos, como em “Matrix”, o signo da ilusão. A renovação dessas máscaras, e dos mecanismos econômicos e políticos que já foram questionados por estudiosos da economia política, da história e da questão regional, tendem novamente a se reconstituir sob novos parâmetros, mas sempre dentro de uma mesma moldura política, em que constam, ainda que cada vez mais mascarados, a privatização do público, a constituição de redes virtuais de dominação, o apoio do poder central às oligarquias em troca de apoio à governabilidade, e em detrimento do próprio movimento político de esquerda que já é atomizado e frágil. Mas a dificuldade de entendermos e captarmos todo esse movimento leva-nos à ilusão de que tudo está sendo feito de forma diferente, quando a estrutura de dominação continua quase igual há dois séculos.

 Temos assim, nós nordestinos, com poucas exceções, a possibilidade de vivermos as oligarquias sob a “máscara” do Social. Elas podem se redefinir dentro dessa nova ordem, e a população mais uma vez será a sacrificada. Desta feita, a esquerda também será mais atingida, e já está sendo, pois em tese é base do governo central que tem acordo de governabilidade com as oligarquias. A constituição de um centro político de direitos não pode ser feita em nossa estrutura política brasileira, sem quebras e reformas profundas. A tentativa de junção por acordos, sem perdas de privilégios, sem incomodar a população - melhor seria dizer sem incomodar a burguesia e oligarquias, já que a maioria da população já é incomodada há séculos - mais uma vez sacrificará a maioria da população, até agora sem direitos.

 Um dos aspectos terríveis da “matrix”, ou seja, dessa simulação, é a introjeção coletiva do autoritarismo e de uma certa estrutura de dominação virtualizada, que torna grande parte dos nordestinos, verdadeiros “clones” de coronéis, sem na verdade terem esse poder e muito menos a consciência dessa estrutura perversa. Os coronéis virtuais são autoritários, arrogantes, com aqueles que consideram menores ou sem poder equivalente, mas perfeitamente capazes de ficar aos pés de uma autoridade maior, ou outro coronel. Nos aparatos burocráticos do Estado as pessoas internalizaram determinados códigos, para não perderem o emprego já difícil, porque sabem que tudo é conseguido através de um “peixe”, ou um padrinho, ou um protetor, ou de “uma mão que lava a outra”, do clientelismo mais descarado. Ninguém questiona de onde veio essa ordem. Se conseguir se comportar dentro dos ditames da tal ordem chegará a algum cargo importante e será um “coronel virtual”. Terá suas próprias redes de protegidos, que lhe retribuirão com favores e obediência. Se sair da linha poderá se tornar um “outsider”, marginal ao infernal sistema.

 Naquela área provavelmente não conseguirá nada. Será queimado pelo “serviço de propaganda secreto” que conta com a influência do poder daquele coronel virtual e de sua rede. Esse sistema típico de  filme “matrix” existe nas instituições burocráticas nordestinas com ramificações no poder central, nos colégios, nas universidades, nos hospitais e em tantas outras instituições e ambientes. Encontraremos também esses coronéis virtuais em profissionais liberais, médicos e tantos outros, que exercerão essa relação com seus clientes e ainda com seus empregados domésticos,  e na sua disseminação na sociedade e cultura. Alguém poderia argüir que isso é uma rede de interdependência. Eu responderia que uma rede de interdependência só poderá existir entre pessoas minimamente autônomas e iguais, ou pelo menos não tão desiguais. Essa, na verdade, é uma rede de subjugação, de dominação, de freio da liberdade mínima das pessoas, e que existe em uma sociedade onde os direitos das pessoas não são reconhecidos. Porque esse sistema e mecanismos de poder são alimentados e realimentados por mecanismos políticos e econômicos excludentes que reforçam a miséria, a falta de direitos e cidadania.

 A falta de liberdade, de autonomia, mesmo que inconsciente, nos leva ao medo. Em uma sociedade onde os direitos não são reconhecidos vive-se sob o signo do medo. Além da pobreza e da falta de condições de sobrevivência que geram um medo latente de não conseguir sobreviver, um medo de seus filhos não terem futuro, o medo de não ter emprego, há o medo de perder qualquer coisa que consiga, por não se submeter, por não se subjugar às relações do “coronelato virtual”, e o medo de não ser considerado alguém, de não ser pessoa. Sob o medo as pessoas tornam-se hipócritas, vis, cínicas e ressentidas. O medo é uma criação negativa que permanentemente ativada por mecanismos, dos quais não temos consciência, acaba por se tornar autônoma. Perdemos o controle sobre o medo  e a consciência dele, e isso gera violência não somente individual, mas também violência coletiva. O medo é o reverso da liberdade e do amor. Com medo não há esperança.

 Se há algo nos filmes  "Matrix" e "Matrix Reloaded" que pode ser percebido, perpassando-os é o medo. Da mesma forma, o império do medo  criado por esse coronelato, que foi se tornando virtual, existe no nordeste brasileiro para não generalizar, há muito tempo. Foi,  assim,  em uma sociedade miserável, em crise, em que grande parte da população era rural e não podia sair nas estradas sem ser assaltada ou molestada por bandidos e grupos de bandidos, que surge Lampião. Lampião que é tido por muitos, e confirmado por relatos, como facínora, bandido terrível, incontrolável, é considerado também por muitos, e ficou no imaginário da população nordestina e brasileira, como um herói. Herói às avessas diriam. Mas a pergunta é: Por que um bandido como Lampião torna-se herói do povo? Sem ter respostas definitivas, pois é uma questão complexa, poderíamos aventar, entretanto, a possibilidade de  Lampião representar “aquele que não tinha medo do próprio medo”. E não só o medo dos bandidos nas estradas, que já se autonomizara, mas do principal medo, representado pela dominação das oligarquias, dos latifundiários. Lampião fazia os fazendeiros descerem de sua posição de coronel e ficarem aos seus pés, por medo. Aquele mesmo medo, agora ampliado, que ele sentiu quando capangas de um coronel mataram seu pai.  Lampião, na sua coragem, ousadia e ressentimento, mudava os pólos de subjugação, mostrava de uma forma inversa que um coronel poderia ter medo de um pobre trabalhador.

 E isso surge, também, em uma conjuntura de falência e repressão de todos os movimentos de oposição, de liberdade e de independência. Não havia alternativa constituída para se mudar aquela forma de poder e sociedade. Quando a liberdade mínima não é possível, nós temos o seu contrário, o medo. A virtualização dessas relações, a inconsciência desses mecanismos,  nos levam a um medo profundo. E isso só pode ser mudado, em uma sociedade, com a restituição dos direitos de pessoa humana e com a restituição da liberdade de ser. Em uma sociedade como a nossa, e diferentemente do filme “Matrix”, nós precisaremos não de um predestinado, mas que todos ou quase todos  sejamos predestinados, que buscando decifrar todos os enigmas e dominações causados por esses mecanismos já seculares, que se virtualizaram, e tendo coragem para subverter  a ordem do “medo” possibilitemos a criação de uma sociedade mais real, mais humana, mais justa, mais livre e mais democrática. Caso contrário, é melhor nos prepararmos, pois concomitante ao aumento e autonomização desse medo e à falta de alternativas políticas surgirão muitos Lampiões.   

 
Texto publicado também em Artesanias - de Verônica Miranda -www.veronicammiranda.com.br
Data: 03/07/2003

*Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará - CEPAC.

 

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