ARTIGOS

Brasil: O encontro do seu mito com sua história

 Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Há pelos menos duas formas, em nossa cultura ocidental nos últimos 50 anos, de interpretar o mito. Uma advinda da herança cultural grega, onde o mito é sinônimo de mistificação e falsidade, e outra advinda de diversas tradições orientais e de culturas consideradas arcaicas, nas quais se incluem as indígenas, em que os mitos encerram verdades. Nessa concepção, através de uma linguagem simbólica o mito leva as pessoas a um centramento, a um eixo, a recuperar sua sacralidade, sua integralidade, ao conhecimento de verdades sobrenaturais e essenciais. É pois, o mito, como as imagens simbólicas, uma linguagem da alma, e portanto, de um tempo não linear, não histórico, mas que corresponde a uma história primordial, anterior e além da história, e da criação no sentido cosmogônico.

Curiosamente, nós brasileiros por nossa formação cultural carregamos incrustados na alma e em nossa história o mito nas duas acepções. Quando aqui, no Brasil, chegaram os primeiros portugueses eles não somente encontraram um povo mítico, com cultura e religiões próprias - as muitas etnias e culturas indígenas donas dessa nossa terra. Mas também tiveram oportunidade de exercer a sua própria mitologia, suas religiões, suas fantasias e de projetarem isso em um povo que consideravam diferente, inferior, a partir de uma visão eurocentrista, e que o queriam submetido como parte da empresa colonial portuguesa. A análise, em uma abordagem histórico-antropológica e psicológica, de Roberto Gambini¹, em seu instigante e belo livro " Espelho Índio - A formação da Alma Brasileira", mostra uma perspectiva diferente, quando ele analisa em detalhes e através de gravuras, pinturas, relatos de viajantes e dos jesuítas, o nível de fantasia e projeções criadas pelos europeus sobre as culturas indígenas brasileiras. Em alguns quadros há extrapolações da fantasia, e junto com a realidade estão elementos míticos como dragões, como se fossem partes da realidade. Considerando o aspecto fantasioso dos europeus colonizadores e a análise que o autor faz sobre aspectos da própria religião cristã à época da colonização, aparece claro em sua abordagem, que tanto uma quanto outra cultura eram míticas e religiosas e o não reconhecimento da validez da cultura e religião indígena e a tentativa de impingir-lhes um Deus e rituais cristãos ocasionou a perda da alma indígena.

Sem pretender reter aqui para essa questão todos os elementos e riqueza da análise do autor citado, é importante lembrarmos que em um nível do nosso inconsciente coletivo, e em uma abordagem junguiana, podemos nos considerar também ainda lacerados. A parte cultural e da alma indígena lacerada, em um nível profundo, ainda está em nós. Talvez não de forma tão aparente e que chegue à superfície, quanto culturas como a mexicana, que segundo análise de Octavio Paz, faz o mexicano uma pessoa dividida culturalmente - a alteridade cultural não está fora, mas está dentro de cada mexicano, na divisão existente neles mesmos, e isso é visível. Mas, no caso brasileiro isso ocorre em um nível mais profundo, e que  apesar de ingenuamente chegarmos a pensar ter sido suprimido pela cultura colonial européia e pela história, em cada brasileiro habita um ser também mítico  e não somente no sentido europeu, mas no sentido indígena e depois também no sentido africano. A alma brasileira é assim formada desses três elementos fundantes. E isso não seria um problema, mas somente uma riqueza, se essa alteridade cultural interior fosse reconhecida e aceita, para que se pudesse chegar a uma síntese ou a uma convivência pacífica desses aspectos.

Mas a possibilidade de vivenciarmos naturalmente e completamente os dois outros mitos - indígena e africano - foi sacrificada pela cultura européia e hegemônica. A ocorrência e presença desses dois elementos culturais se dá muito mais pela transgressão, explosão e imposição, do que pela aquiescência das elites, do Estado e de instituições como a Igreja, ao longo da história brasileira. Durante toda a nossa história as expressões culturais e religiosas dos indígenas e afro-descendentes foram consideradas pela cultura hegemônica como algo inferior, folclórico, supersticioso, e mais recentemente turístico.

Ora, essa parte não contemplada, e que está de alguma forma em todos nós brasileiros, pede realização. Independente da cor da pele e dos traços físicos, em lugares recônditos da alma está aquilo que somos, mesmo que negado. O prejuízo disso é que ao negar aquilo que somos ficamos com a pior parte. Dos índios perdemos a ligação com a natureza e a possibilidade de sacralizá-la, e de conservar um dos bens maiores que temos - a terra; perdemos também seus mitos e suas verdades. Dos africanos perdemos a energia exuberante, a vitalidade, a força de expansão, o orgulho da raça e sua riqueza mitológica; dos portugueses perdemos uma de suas melhores partes, o lirismo, e acabamos de forma despeitada contando as piadinhas de português, por ter, quem sabe, de engolir toda a dominação e um aparato burocrático de Estado que nos estafa desde sua formação.

Mas é estranho ter que afirmar, que mesmo negando a tão propalada democracia racial brasileira e substituindo isso por tentativas de supressão racial brasileira, não se pode dizer que um brasileiro de pele negra, afro-descendente não sinta saudade como os portugueses e sim banzo como os escravos africanos. Também não se pode dizer que um brasileiro de pele branca não sinta necessidades de ir a um terreiro da umbanda, do candomblé e de adotar as religiões africanas, ou que ainda um brasileiro branco passe a necessitar da análise dos mitos ou de rituais xamânicos e indígenas. Hoje sabemos que as próprias tribos indígenas, que lutam duramente pela sobrevivência de sua cultura, necessitam cada vez mais dos meios de comunicação da cultura branca e negra e da relação com essas culturas. Ao assumir esse entrelaçamento de almas, que não tem necessariamente, no Brasil, correspondência com a cor da pele, poderemos construir realmente a "democracia racial brasileira". Nossos pedaços de alma brasileira precisam ser aceitos antes de podermos falar em democracia racial e em povo brasileiro constituído. Além disso, a integração econômico-social e a aceitação da cultura  das populações pobres, que são, exteriormente, na grande maioria afro-descendentes e descendentes de índios, seria a outra forma de contribuir para a construção efetiva dessa democracia, para se fazer justiça social e diminuir o preconceito.

A emergência da necessidade de formação de uma consciência nacional e da constituição de uma identidade passa necessariamente pelo desvelamento do Ser brasileiro. Em pedaços (?), lacerado(?), mas com possibilidade de se caminhar para uma síntese ou uma convivência e aceitação da alteridade. É nesse momento que a história do Brasil abre uma janela e se encontra com seu próprio mito, e temos a oportunidade de descobrir os mitos falsos, as mistificações construídas política e culturalmente, como forma de dominação da população e das culturas, e os mitos que nos anunciam a verdade sobre nossa identidade, sobre o que somos realmente e podemos vir a ser. Talvez tenhamos perdido algo, que foi suprimido e que não pôde se desenvolver. Talvez tenhamos partes conflitantes que não se aceitam, mas que são necessárias para a composição do todo. Talvez haja demasiada imposição de determinados aspectos, que não deixam os outros aspectos importantes e necessários crescerem e florescerem. Precisamos agora de um espelho índio, negro e branco não só para realizar projeções, como ocorreu na colônia, mas para nos recompor e nos reconhecermos naquilo que somos.

Sobre a alma, e sobretudo a alma brasileira, nada melhor do que um mito brasileiro para tratar o assunto. Semanas atrás em site da internet, em importante resgate, Leonardo Boff² nos presenteou com um mito dos índios Maués, da área cultural do Tapajós-Madeira. Um verdadeiro tesouro perdido brasileiro, que reproduzo aqui.

"Reza o mito: Quando o mundo foi criado não existia a noite. Havia só o dia e a luz penetrava em todos os espaços. A luz só não chegava nas águas profundas do rio. Os Maué, por mais que quisessem, não conseguiam dormir. Viviam cansados e com os olhos irritados pelo excesso de luz."

"Certo dia, um deles encheu-se de coragem e foi falar com a Cobra Grande, a sucuriju, toda escura, considerada a senhora absoluta da noite. Era ela que mantinha a noite presa no fundo mais fundo das águas."

"A Cobra Grande ouviu as lamentações do índio. E vendo a pele dele, amorenada pelo sol escaldante e os olhos avermelhados pelo excesso de luz, teve pena dele. Relutando muito, por causa dos riscos, propôs um pacto:

"Eu sou grande e forte. Sei me defender. Não preciso de ninguém. Mas, muitos dos meus parentes são pequenos e indefesos. Ninguém cuida deles. Especialmente vocês andam por aí, sem olhar onde pisam e assim os matam sem piedade. Como eles vão se defender? Então, eu lhe proponho a seguinte troca: Você me arranja veneno e eu cuidarei de distribuí-lo entre os meus parentes pequenos indefesos. Os grandes não precisam dele porque podem se defender sozinhos. Assim, vocês, Maué, quando caminharem por aí, olhem bem onde vão meter os pés para não pisar nos bichinhos pequenos. Agora eles terão como se defender. Em troca lhe darei um coco cheio de noite".

"O Maué aceitou proposta. Correu para o mato e logo estava de volta, com o veneno para a Cobra Grande. E ela, em troca, lhe entregou um coco, cheio de noite. No momento da troca, ela ainda recomendou: "De jeito nenhum abra o coco fora da maloca". O índio prometeu manter o pacto. Mas, os demais índios ficaram loucos de curiosidade. Queriam conhecer naquele momento mesmo a tão ansiada noite. Juntos abriram o coco bem no meio do roçado. E foi então que sobreveio a desgraça: trevas cobriram o mundo. Não se via mais nada. E uma angústia imprevista e terrível invadiu o ânimo dos Maué."

"Houve uma correria geral. No foge-foge precipitado, ninguém pensou nos bichinhos pequenos que já haviam recebido veneno da Cobra Grande. Os primeiros a receber foram as aranhas, as cobras pequenas e os escorpiões. Esses se defenderam das pisadas dos índios, mordendo-lhes os pés e as pernas. Foi aquela calamidade."

"Os poucos que sobreviveram às mordidas venenosas sabem agora como se comportar. E a partir de então todos começaram a tomar cuidado com os bichinhos pequenos para não pisar neles e não serem mordidos, convivendo pacificamente e no maior respeito mútuo."

O mito dos Maués é um desses mitos redondos - fecha por todos os lados, como uma mandala - que serve para a compreensão de diversos casos e situações, de casos particulares e individuais, a casos mais coletivos e até culturais. Mas tem um fundo comum que trata do desequilíbrio das relações de poder, e da necessidade de compensação. Como a natureza, tudo precisa conviver com seu oposto, em equilíbrio. Luz demais acarreta problemas e necessidade da noite e da sombra.O dia precisa da noite e vice-versa. A sombra ou a noite não contém somente o que é mau, o incontrolável e desconhecido, mas saindo do fundo do rio a noite pode conter elementos preciosos que compensa aquilo que está desequilibrado.

A cobra grande aparece do fundo do rio, assim como aparece o desejo profundo da população brasileira de mudar a situação do país. O desequilíbrio nas relações de poder, na constituição dos direitos, na situação econômico-social, na imposição de aspectos político-culturais hegemônicos desde a colonização, e na necessidade de constituição de uma identidade é gritante. As estatísticas confirmam as desigualdades e necessidades de compensação e de equilíbrio em quase todos os setores da sociedade brasileira. A desigualdade é histórica e crescente. Ora, a solução é a noite. É nos voltarmos para os aspectos inconscientes, não percebidos, não consultados, falsificados, mascarados durante muito tempo. É reconhecermos a constituição do Estado Brasileiro, como um mito na acepção portuguesa e colonizadora da nossa História. Um verdadeiro dragão, que falsifica e media as ações dos cidadãos, impedindo a verdade dos seus direitos e ajudando a promover uma relação de extrema desigualdade. A solução é sairmos em busca da quebra de estruturas e do caos (noite) para podermos nos recompor em uma nova identidade, em um novo patamar. É ir ao lodo do fundo do rio para recobrar o desejo de ser e resgatar as partes que deixamos suprimidas, nas sombras e porões da história brasileira.

Ora, mas construir uma consciência e identidade nacional tem um preço. A contrapartida é que os pequenos que até agora não tinham como se defender dos grandes que pisavam sobre eles, receberão uma dose de veneno para poderem se defender. E essa é uma parte fundamental. O veneno não  mata somente, ele também cura. Neste caso ele restabelece o equilíbrio nas relações de poder.

O veneno que a cobra grande pode nos trazer é a irrupção de uma agressividade sadia, que foi perdida nas mil justificativas, mistificações e construções do homem cordial brasileiro. Precisamos resgatar a parte aguerrida de nossos ancestrais índios, que além de dividirem terras brasileiras com brancos e negros, moram também em nós, no fundo do rio. É necessário cada vez mais ir à luta pelos direitos em todos os âmbitos, em nosso país. É necessário começarmos a aprender e vivenciar a força, a vitalidade e a agressividade sadia das culturas indígenas e afro-brasileiras, que estão em todos nós. O lirismo português será resgatado como um bom complemento de tudo isso. Esse processo e movimento, que já se iniciou, tende a continuar: o mito dos Maués denuncia e recorre às nossas origens, se encontra com as necessidades históricas brasileiras e exige realização. Que o mito dos Maués nos ilumine no ano de 2004, e que a saúde brasileira e o equilíbrio nas relações de poder comecem a ser restabelecidos.

 

¹Gambini, Roberto - Espelho Índio. A Formação da Alma Brasileira - São Paulo, Axis Mundi: Terceiro Nome, 2ª ed., 2000.

 

²Boff, Leonardo - O cuidado dos grandes pelos pequenos -27 de novembro de 2003 in:Adital : Agência de Informação Frei Tito para a  América Latina - Disponível em <www.adital.org.br>. Acesso em:29 de novembro de 2003.

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda -www.veronicammiranda.com.br
Data: 29/12/2003

*Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará - CEPAC.

 

A FALA - www.cepac-ce.com.br 

Espaço Virtual do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará-CEPAC

Proibida a reprodução de artigos e textos

Todos os Direitos Reservados