ARTIGOS

Anti-cristo ou anti-cristo: o feminino e a natureza serão"novos tempos" para o novo Papado.

 Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Muita celeuma, expectativas, prognósticos, cobertura da mídia, opiniões de gregos e troianos,católicos, cristãos e ditos não cristãos, políticos e analistas de toda ordem sobre a nova eleição do Papa. Em plena democracia moderna e ainda convivemos com o absolutismo monárquico, um representante de Deus sobre a terra, ainda que seja de um pequeno Estado-o Vaticano. Apesar disso, sabemos o porquê de tanta repercussão neste país de verdes florestas e tantas religiões. O Brasil e outros países da América Latina, além de terem sido fundados sob a pilhagem das potências européias, foram fundados também sob o signo da cruz cristã aqui aportada com os colonizadores.

A hegemonia religiosa da Igreja Católica no Brasil e as ligações entre Estado e Igreja até o final do século XIX, quando com  a denominada "Questão Religiosa" o Estado foi laicizado, é a responsável por uma cultura impregnada de cristianismo, apesar de sê-lo de uma forma sincrética. Um sincretismo religioso que apesar de nos dias atuais já ser bastante manifesto, foi perseguido durante muito tempo por autoridades da Igreja no Brasil, e ainda agora, nos últimos dias de comoção pela morte e substituição do Papa, uma autoridade dessa mesma Igreja disse através da mídia que a "religião católica é a única religião verdadeira neste país".De fato, essa opinião e posicionamento que para uma grande quantidade de pessoas poderia  parecer obsoleto tem respaldo na  Igreja de João Paulo II, que a despeito de nos últimos tempos de seu pontificado ter atitudes tolerantes em relação a outras culturas, nas visitas realizadas a vários países não católicos (preocupado com a expansão do catolicismo), ativou todo o tradicionalismo da Igreja, amparando o conservadorismo e o fundamentalismo.

Apesar do sincretismo religioso, da migração de um grande número de católicos para outras religiões, filosofias, ou para nenhum exercício religioso, é de se supor que  a substituição de um Papa com poder absoluto sobre a Igreja deverá ter alguma repercussão em país tão grande e populoso, e com influência do catolicismo e cristianismo como o Brasil. A Igreja no Brasil, apesar de estar separada do Estado tem atuado politicamente como um poder paralelo, ora apoiando o Estado, ora como um contra-poder aos excessos do mesmo e apoiando o seu "rebanho". As contradições no seio da Igreja Católica Brasileira são muitas e se expressam através de suas várias entidades e conselhos, e de seus teólogos sobre a forma de atuação política e evangelização,que hoje já se encontram em publicações e na mídia, mas é importante observar que no tocante aos dogmas e à doutrina as vozes discordantes não parecem muitas.

Isso não seria tão importante para pensarmos o que seria esse novo papado que se anuncia, se vivêssemos em uma época em que os costumes e as culturas se coadunassem com esse tradicionalismo, com essa doutrina e os dogmas que provavelmente persistirão nesse novo pontificado. Não tenho muitas ilusões de que o "Espírito Santo", como convocou um padre dia destes em um artigo, possa fazer muita coisa em relação a isso. Pois do pontificado do Papa João Paulo II ficou uma maioria quase absoluta de cardeais "papáveis" que comungam com essa doutrina e essas diretrizes religiosas. O espírito santo não conseguirá impor por exemplo, um cardeal simpatizante da Teologia da Libertação que seria muito bom para a América Latina, em uma maioria de cardeais que não simpatizam com essa Igreja do Povo. Desta forma, qualquer Papa da América Latina conservador poderá ser igual ou pior, do que qualquer outro Papa de outro continente, até mesmo no fundamentalismo que pode advir de uma conjugação com as tais "potências globalizantes".

Mas nos tempos atuais, e há que se considerar isso, a espiritualidade não é vivenciada somente no âmbito das religiões. E enquanto as religiões têm um limite e recorte próprio que é o recorte da cultura, a espiritualidade convive com outros liames. A criação de um eixo, da vivência de uma interioridade, de um espaço sagrado, o religare, não têm mais que acontecer necessariamente no âmbito das religiões. E ao mesmo tempo, na época de grande transitoriedade que vivemos, onde "tudo que é sólido se desmancha no ar" dogmas e diretrizes religiosos sem flexibilidade não podem fornecer o substrato necessário para as necessidades individuais e culturais. A transformação do planeta em "aldeia global" trouxe também a convivência da população cristã ocidental com religiões orientais, outras filosofias, outras experiências e vivências neste âmbito. E vem possibilitando o resgate de outras expressões das culturas locais e da vivência aberta e sem culpas do sincretismo religioso.

Mas, além disso, as duas grandes questões que a Igreja terá que enfrentar, já anunciadas também por teólogos e colocadas por eles como a participação da mulher na Igreja e as questões ecológicas, e que para mim confronta seus dogmas, é a emergência do feminino e da ecologia profunda. E ao dizer isso, me vem ao pensamento algumas especulações que surgiram em jornais nos últimos dias sobre uma profecia apócrifa de São Malaquias, um monge irlandês do século XII sobre os Papas da Igreja Católica. Segundo as profecias, e através de associações que fizeram, várias delas continham elementos que as relacionavam aos Papas passados. A profecia relativa ao 111º Papa, que será escolhido agora, o chama De Gloria Olivae (Gloria da Oliveira). Considerando um tanto temerário interpretar profecias, ainda mais apócrifas, não pude, entretanto, deixar de associá-la à leitura que estava fazendo. Por coincidência, em uma passagem da leitura a Oliva ou Oliveira era colocada como um símbolo da quaternidade.

Ora, muito embora a cruz cristã seja um quatérnio, o cristianismo sempre trabalhou com uma espiritualidade em trindade. O quarto sempre foi considerado o anti-cristo. Ao mesmo tempo, esse quarto, vindo depois de três masculinos- pai, filho e espírito santo - era considerado como o feminino. O feminino e a natureza. O que estava embaixo, o inferior.E o quarto passou a ser aquela parte pouco iluminada, satânica, ligada ao pecado e aos instintos: mulher e natureza. Assim na mitologia judaico-cristã é Eva a corruptora de Adão, ligada à terra e à serpente, capaz de se deixar seduzir pelos prazeres carnais e materiais,do corpo, capaz de se deixar seduzir por outro tipo de conhecimento, de perder a inocência.

A única mulher tolerada na Igreja católica é a Virgem Maria, um arquétipo assexuado, mãe através somente do Espírito Santo, porque Maria não possui instintos. Em outras religiões cristãs não aceitam nem a Virgem Maria.Mas em outras, alguns padres e teólogos começaram a resgatar Maria Madalena, como uma apóstola mais próxima de Cristo e com seu próprio evangelho, obviamente ocultado por uma ordem religiosa patriarcal. Maria Madalena um arquétipo mais completo da mulher mística juntava sexualidade, natureza e  espiritualidade. De fato unir natureza e espírito é uma das características da espiritualidade feminina, e há estudos sobre isso.

A perseguição às mulheres místicas denominadas bruxas que foram queimadas vivas em fogueiras na Idade Média pela Santa Inquisição, por terem uma espiritualidade ligada à natureza, por seus poderes divinatórios que não se submetiam ao poder patriarcal, por sua espiritualidade direta, realizando seu espaço sagrado sem necessitar de padres e hierarquia da Igreja, dão conta de como o feminino e suas formas próprias de expressão da espiritualidade foram perseguidos e injustiçados pela Igreja católica.

Sem querer fazer apologia de nenhuma religião ou corrente religiosa, gostaria de reter o aspecto do desenvolvimento da espiritualidade feminina (religiosa ou não) que não separa natureza (instinto) e espírito, antes faz a ponte entre as duas coisas.O corpo, a matéria, sua ligação com a terra, com água e com o sublime, a alegria, a dança e a festa são características dessa amplitude. O feminino profundo que emerge buscando o seu lugar em nossa cultura tão patriarcal não deseja assumir a espiritualidade na forma desenvolvida pelos homens em uma cultura patriarcal. Assim, acredito que o papel da mulher na Igreja Católica com o qual o novo Papa deve se defrontar não será simplesmente o de assumir funções sacerdotais tais quais as que os homens sempre ocuparam, mas que sendo consideradas sujeitos nas atividades religiosas, possam também aportar novos valores e novas experiências, em busca de uma espiritualidade mais completa e que possa finalmente consultar a natureza e a sexualidade.Tal qual na atual sociedade e cultura como um todo, o feminino que emerge, que não é o mesmo que o estereotipado e tão desgastado pelas ideologias patriarcais e ainda dominantes, busca o seu próprio lugar e é propositivo, traz novos valores, novas experiências, para mulheres e homens.

A discussão da ordem patriarcal nesse âmbito da Igreja  e das religiões, ainda que essa questão extrapole esses limites, teria um papel importante na própria redefinição da família, em uma ordem mais igualitária, mais horizontal, mais feminina e que poderia se tornar também menos violenta e cumprir um papel mais integrador do ser humano.

A questão ecológica não está dissociada disso, pois é necessário se sentir natureza, assumi-la, sentir-se umbilicalmente ligados à terra, assumir os instintos, a sexualidade, o corpo, que não teriam porque estar dissociados da razão e da graça, para de alguma forma evitarmos terríveis catástrofes para a humanidade.E de resto, para juntar o pão e o vinho tão celebrados no cristianismo. Dessa forma,querendo ou não, já estamos vivenciando a emergência do 4, aquilo que a igreja sempre considerou o anti-cristo, que o próprio Cristo, pelo testemunho dos evangelhos não considerou.Não considerar  esse quatérnio, de alguma forma, é ser anti-cristo. Anti-Cristo ou Anti-Cristo: o feminino e a natureza serão "novos tempos" para o novo papado. De alguma forma, dentro ou fora da Igreja, o quarto, o "anti-cristo" deverá ser vivenciado por ela nessa "Glória da Oliveira".

E se o novo papado incorporar estas questões importantes estará finalmente cumprindo e realizando o quatérnio da Cruz.

 

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda -www.veronicammiranda.com.br
Data: 17/04/2005

*Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará - CEPAC.

 

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