ZOANDO NA CAATINGA

A VOZ DE VALDENIRA


Valdenira é uma paraibana do semi-árido, vivendo na confluência de vários Estados. Ela é da base da base. Não tem computador e me telefona sempre para dar notícias e falar suas impressões sobre muitos assuntos que afetam os brasileiros da caatinga e de todo o país. Coloco aqui sua fala e discuto com ela suas idéias, às vezes muito radicais e críticas, mas quase sempre cheias de razão e divertidas. Acompanhe.

 

Valdenira hoje está com tudo.Telefonou-me cheia de lições de nutrição.

"Minha amiga, aquela história do questionamento da comida do Fome Zero deu pano pras mangas.Você imagina que o pessoal se reuniu pra discutir essa história e aí caíram na parte da "nutrição". Muita gente com raiva porque dizia que desde os antigos o povo sabia se alimentar e que o problema não era esse, o problema era a falta de comida mesmo."

"Nossos avós e bisavós morriam velhinhos e resistentes. E nunca precisaram de nenhum nutricionista. E ainda tinha aquela história "que sertanejo é antes de tudo um forte". É verdade que houve um tempo que a situação da fome não era a mesma de hoje. Vivendo com dificuldade, mas o pessoal tinha seu feijão verde, seu milho, seu jerimum, macaxeira, farinha de mandioca, seu maxixe, sua galinha e ovos caipiras, melancia, sua rapadura, seu cuzcuz, sua vaquinha do leite e, de vez em quando, uma carninha de criação, um peixinho de água doce. Mas foi tudo se acabando, minha irmãzinha. Os terreninhos foram diminuindo, diminuindo,fomos ficando só com o quintal da casa, num dava mais pra nada. Nem os donos de terra quiseram mais morador e dizem que não têm dinheiro pra contratar trabalhador. A coisa agora tá nua e crua. Estamos por aqui na base da cesta."

E essa cesta, Valdenira, é boa?

"E num é esse o problema, minha amiga. Tudo isso que a gente comia antes, quando tinha nossas terrinhas, agora é comida de burguês. Se a gente for no mercantil e olhar os preços toma um susto. Feijão verde são seis reais, inhame porque é comida das dietas das madames é o olho da cara. Quantos inhames comi na minha vida! Nem dava valor. Vá ver agora o preço. Carne de criação nem pensar. É a carne mais receitada pelos médicos, aí o preço estoura. Galinha caipira e os ovos caipiras também. Você vê as madames falar com a maior afetação: Só como ovos caipiras.Aquele pessoal que faz a tal de macrobiótica come um jerimum arretado. Fico rezando pra essa moda não pegar, senão o jerimum vai pras nuvens, e aí, jerimum pra nós nunca mais. Rapadura, minha amiga, quase caio pra trás quando vi o preço.Agora é um doce chique. E aí é que todo mundo percebe que a comida do pobre era a melhor, mais sadia.Mas você pensa que isso vem nas cestas? Vem nada."

"Nessas cestas que já começaram a distribuir antes do Fome Zero, não sei se as do Fome Zero são igual - mas gato escaldado...sabe como é ...  Mas só vem mesmo aquelas coisas de supermercado: fubá misturado com não sei o que, sardinha em lata. O leite é aquele piorzinho, quase transparente. E a tal da soja (Ave Maria!Deus me livre!). Um dia eu ainda me acostumo com essa danada. Dizem que ela é boa pra tudo, mas minha imaginação fica sonhando com aquele feijão verde com maxixe. Vamos ver se vai ter outras variações nesse fome zero. Vamos botar fé."

"Mas depois de tanto vira, mexe e remexe, o pessoal disse que a solução pro problema mesmo era eles terem suas terrinhas e recursos pra poder plantar, comer, cuidar dos seus animais, seus peixes de água doce, sua farinha. Essa era a melhor forma de melhorar nossa dieta e ficar bem nutrido.Comparando o que a gente comia com os preços do mercantil, a gente ia ter uma alimentação de burguês, uma dieta de madame(rá, rá, rá)."

"Deixa eu ir minha amiga. O pessoal fez um mungunzá estribado pra gente comer enquanto faz mais uma reunião daquelas. Até loguinho."

Valdenira, acabo de crer que o Brasil pode se encontrar. O Brasil que tem fome, se tudo der certo, vai comer que nem o Brasil que come. A nutrição verdadeira e saudável, mesmo que seja de dieta, estará de fato contribuindo para esse encontro - comida de pequeno produtor com dieta de madame.Enquanto isso não acontece, o negócio é ir melhorando as cestas. Avante!

 

Colunista: Verônica M.Mapurunga de Miranda

abril/2003

A FALA - www.cepac-ce.com.br 

Espaço Virtual do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará-CEPAC

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