ZOANDO NA CAATINGA

A VOZ DE VALDENIRA


Valdenira é uma paraibana do semi-árido, vivendo na confluência de vários Estados. Ela é da base da base. Não tem computador e me telefona sempre para dar notícias e falar suas impressões sobre muitos assuntos que afetam os brasileiros da caatinga e de todo o país. Coloco aqui sua fala e discuto com ela suas idéias, às vezes muito radicais e críticas, mas quase sempre cheias de razão e divertidas. Acompanhe.

Valdenira hoje estava muito reflexiva, às vezes poética e até futurista.Tinha pensado todos esses dias na situação dos índios.

"Alôzinho! Aquele assunto do índio ficou encasquetado na minha cabeça, minha amiga. Acho que é porque fiquei com o coração apertado. O pessoal não tinha o direito de ficar duvidando daquela cura da nossa vizinha, não. Acho injusto isso. Só porque ele é índio. É por isso que muitos dos índios, aqueles do Xingu não acham que são brasileiros. Eles falam sempre da gente como "os brasileiros". Uns tempos atrás, meu amigo revolucionário trouxe uma revista pra mim e tinha uma entrevista com um índio do Xingu. E ele dizia que se ele fosse brasileiro ele queria ser empresário. Eu achei estranho ele falar como se não fosse brasileiro, mas achei ele muito esperto. Porque se eu também não fosse brasileira e perguntassem se eu queria ser eu respondia : sim, mas só se for empresária. É só quem tem vez neste país,minha amiga. Trabalhador sua, sua, e num tem direito. Índio danado de inteligente."

"Aí, foi que fiquei pensando que era por isso que ele não queria ser brasileiro.Pra ser brasileiro pobre é melhor partir pra outra. Quem sabe se como nação de índios, mais adiante, eles num têm melhor oportunidade? Pensei assim:Esse índio tá pensando longe!É por isso que sertanejo não é besta, porque é descendente de índio.Tem uns daqueles povos, os primeiros que vieram de fora, que têm inteligência pequena. Ninguém pode mais nem falar e nem contar piadinha na reunião, o pessoal cai em cima da gente, com uma história de "politicamente correto". As piadinhas de português tão proibidas na reunião.Ô povo pra copiar coisa estrangeira, meu Deus!"

Valdenira, mas os índios votaram na eleição do Presidente Lula. Então eles são também brasileiros, não são?

"Pois é, minha amiga, deveria...né? E na posse do Presidente Lula, nós da comunidade, tava todo mundo de olho grelado na televisão. Os índios estavam lá tudo animado e quando notaram que podia chover começaram a fazer a dança da chuva, ao contrário. Num é que parou, e o presidente desfilou lá, no carro aberto, graças aos índios. Eu fui falar isso e o pessoal disse: Valdenira, tu tão inteligente e metida a sabida acredita numa coisa dessas? Eu fiquei tiririca. Se fosse o mago Paulo Coelho, que vende muitos livros e já disse que pode fazer chover, todo mundo acreditava, mas como são os índios, nada feito. Mas eu sei, que do fundo do coração, mesmo sem ter coragem de falar, o presidente Lula agradeceu pros índios."

"Depois, minha amiga, eu vi na televisão, no jornal, os índios se oferecendo pra curar o ombro do Presidente Lula.Nunca tinha visto antes índio se preocupar com Presidente. Mas acho que não deixaram eles entrar. Erro. Aposto que se eles tivessem consultado o Presidente Lula, ele já tava bom do ombro há muito tempo.Como eles são muito sabidos, iam saber logo que grande parte daquela doença do Presidente Lula é de tanto "engolir sapo", de não poder fazer tudo que queria fazer pelos brasileiros.Mas acho também como eles são bom negociadores - se não fossem, hoje eles já tinham se acabado, né? - iam lembrar que parte dessa dor era por causa das terras dos índios. Presidente Lula... resolva o problema da terra dos índios, e uma parte da sua dor vai passar!"

"Mas eu ouvi gente dizer perto de mim, quando os índios falavam: Isso é superstição, ora se índio pode curar o ombro do Presidente? Pois eu lhe digo, minha amiga, superstição é acreditar no SUS (Sistema Único de Saúde), é acreditar que vai ter leito de UTI pras pessoas que não tem plano de saúde, nem dinheiro pra pagar. Eles fazem um remendozinho, e depois deixam o povo de novo na míngua. Esses governos de Estados e municípios prepotentes faz que faz, mas acabam não fazendo. Enganam o Presidente e enganam o povo. A gente tem que ficar de olho neles. Acredito muito mais nos índios."

Mas, Valdenira, nós somos descendentes dos índios...

"É mesmo minha amiga, mas não parece, porque o pessoal quer negar o sangue que corre nas veias.Coloquei essa história na última reunião e uma vizinha minha, já velhinha, que participou daqueles grupos de educação do Paulo Freire contou umas histórias daquele tempo. Naquela época aqui no semi-árido ninguém falava de índio. Índio era só no Amazonas.Depois foi que veio a moda e começaram a descobrir os índios da região. Mas minha vizinha contou que tinham, nessa época, uns cartazes no grupo de discussão sobre os índios. Passava um que era um homem caçador com um rifle caçando um animal, e o outro era um índio com arco e flecha caçando o animal. Quando a professora do grupo perguntou qual era a diferença entre os dois caçadores sabe o que o pessoal respondeu: que o caçador com rifle era humano e o caçador com arco e flecha era animal, que nem a caça. Ela perguntou por que tal história? Sabe o que eles responderam? Porque eles não tinham alma, não eram batizados, eram igual animais.Coitados dos índios! Considerados animais só porque não eram batizados na Igreja, pode? Isso até parece piada de português."

"Mas é isso mesmo.Aí a professora aproveitou pra explicar que eles também tinham a religião deles e que era uma religião diferente, por isso também tinham alma.Fiquei pensando sozinha, minha amiga, eles tinham alma, mas será que os portugueses e os outros maiorais não levaram a alma deles, obrigando eles seguirem outra religião? Só sei que minha vizinha disse que depois disso apareceu gente com família índia de todo jeito. O povo gosta de novidade.Gente que era neto de índio,sobrinho de índio.Tudo isso só porque se esclareceu a situação.Mas muita gente ainda nega. Eu digo, se o pessoal do semi-árido se olhasse direito no espelho iam ver que são índios "cagados e cuspidos", e se muitos vestirem uns trajes de índios e chegar numa festa de índio vão cair tudinho no batuque, sem saber como aprenderam aquilo.Tudo no automático."

"Na comemoração dos 500 anos do Brasil eu fui numa palestra sobre os índios.Um professor, lá, falou que tinha uns índios de uma Serra Grande do semi-árido que tinham uma religião muito interessante, e eles eram muito hospitaleiros também. Quando chegava uma visita, que viajava muito pra chegar lá, naqueles tempos antigos, tinha uma hospedaria só pra visita. E o chefe chegava lá pra receber a visita, e a primeira coisa que dizia desejando as boas-vindas era que ele já sabia que a visita ia chegar, pois um passarinho tinha vindo avisar. Que poetas que eram esses índios, minha amiga! Índio sabe tratar bem os outros, as crianças e os velhos, disse um chefe índio aí numa entrevista que eu ouvi. Por isso eu digo, deveria se fazer uma campanha: Solte o índio que existe em você. Talvez os brasileiros soltando seu índio interior respeitassem mais os velhos e as crianças, cuidassem mais da natureza, ficassem mais poéticos e aprendessem umas coisinhas que deixaram pra trás, naqueles tempos antigos."

"Minha amiga, de noite eu olho pras estrelas do céu e penso, daqui uns tempos talvez essas coisas nem existam mais, quando a gente botar o endereço vai ser assim : Valdenira Fonte -Planeta Terra - código:Sabiá. Será que o futuro é mais interessante, minha amiga? Até loguinho.

Valdenira, não vamos desanimar e nem esquecer aquela canção antiga e atual: "Bem vamos embora que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer."

junho/2003

Colunista: Verônica M.Mapurunga de Miranda
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