ZOANDO NA CAATINGA

A VOZ DE VALDENIRA


Valdenira é uma paraibana do semi-árido, vivendo na confluência de vários Estados. Ela é da base da base. Não tem computador e me telefona sempre para dar notícias e falar suas impressões sobre muitos assuntos que afetam os brasileiros da caatinga e de todo o país. Coloco aqui sua fala e discuto com ela suas idéias, às vezes muito radicais e críticas, mas quase sempre cheias de razão e divertidas. Acompanhe.

Valdenira estava muito quieta, mas voltou com muitas novidades.Eu pensando nas "pulutricas" de São João, mas ela já veio foi com o casamento do "capital e trabalho". Vamos ver no que deu.

"Alôzinho, minha amiga.Aquela história das pulutricas rolou e desenrolou, e o pessoal com medo de ficar sugestionado resolveram fazer mesmo umas pulutricas mais simples.Aí uma pessoa deu a idéia da gente fazer uma quadrilha.O casamento do Capital e Trabalho. Assim a gente já ia dando uma forcinha pro presidente Lula.Até o meu amigo revolucionário ficou animado com a idéia, e se ofereceu pra dar uma assessoria. Ficou tudo marcado pra começar os ensaios.Mas antes, o meu amigo revolucionário veio conversar comigo pra acertar uns detalhezinhos."

"Ele me disse assim:Valdenira, se o noivo é o capital e a noiva é o trabalho eu acho que o noivo devia ser fantasiado de "Tio Sam", com cartola e tudo.Porque quem representa o capital no mundo hoje é mesmo os Estados Unidos. Eu fui logo encima dele:Rapaz,você sabe qual é  o mal de revolucionários como você? É que saem dos braços da União Soviética e caem nos braços dos Estados Unidos.Não é possível que num tenha outro jeito. Vamos pensar melhor no Brasil."

"Ele disse assim: Olhe, Valdenira, o problema é que você não entende de revolução. Todo revolucionário tem que aprender como é que anda o "capital", quem é que tá com a bola, senão não pode ter tática, entendeu? Eu fiquei irada, minha amiga, porque eu posso num entender da revolução lá dele, mas nessa história de capital eu sou esperta. Pergunte pra mim quem é que leva ele no lombo? O trabalhador.E o que é que eu sou, minha amiga? Eu disse pra ele: Olhe aqui, rapaz, quando você vinha do fogo, eu já vinha da fumaça, sou cobra criada, viu? Fui criada andando muito lá na casa de um tio meu, que nunca deixou ninguém fazer a cabeça dele. Naquelas épocas da ditadura militar quando aquele ministro da economia enganava todo mundo, dizendo que num tinha a tal de inflação, ele não acreditava.Porque ele ouvia toda noite a BBC de Londres no rádio dele, e lá contava tudo direitinho aquelas coisas que censuravam no Brasil.Ele vivia brigando com os bancos que num tinham crédito pro pequeno, e de tanta raiva que ele tinha ele botou um apelido de presidente no cachorro de caça dele."

É mesmo? E qual foi o apelido Valdenira?

"Figueiredo. O pessoal da casa já tava acostumado com o Figueiredo. Chamavam Figueiredo pra lá, Figueiredo pra cá, mas as visitas estranhavam. Um dia chegou lá uma visita, e o cachorro começou a lamber a visita e ele disse: Sai daqui Figueiredo, deixe a gente em paz! A visita disse assim: Hum...cachorro presidente! E o meu tio disse:É não, é presidente cachorro mesmo! Ele era assim, não deixava passar uma. E eu aprendi.Por isso tática revolucionária comigo, só se prestar..."

"Mas, o meu amigo, que também tem cabeça dura, senão num era revolucionário, né, ficou insistindo: Valdenira, o capital hoje não tem mais pátria, está ficando invisível.Você sabe o presidente lá do tal Londres da BBC que seu tio ouvia, tá assim, Romeu e Julieta, com o Bush dos Estados Unidos. Eu disse pra ele: Mas, rapaz, num era você mesmo que falava peste da história da "mão invisível", porque dizia que isso iludia o povo e acabava com a luta de classe, porque o povo tinha que pegar os "donos do poder", senão a gente se fritava. E agora vem com essa história de capital invisível. Aí ele veio com outra história: Valdenira, o capital já avançou tanto no mundo todo, o mundo tá tão mudado, tudo tomado por ele, que ninguém sabe mais nem o que é classe.O capital está ficando abstrato."

"Aí a coisa ficou preta, minha amiga. Eu disse: Danou-se! Rapaz, abstrato vai ficar é o bucho da gente, se a gente daqui a pouco num tiver mais o que comer, continuar dando tudo pro Tio Sam, pro Avô Sam, pra raça todinha desse pessoal daí de fora, que vive às nossas custas. Num era você mesmo que subia no tamborete pra fazer discurso contra o tal do FMI? Pois olhe, lhe digo logo, que se vai haver casamento, o pessoal só vai aceitar se for com o capital nacional. Se é pra gente lutar com esses fantasmas invisível é melhor levar pra sessão de exorcismo. Aqui no Brasil num vi nenhum fantasma invisível, não. A gente dá um passo bate no latifúndio, dá outro passo, outro latifúndio, tudo material de verdade."

"Ele ficou resmungando, e eu disse: É melhor a gente deixar o pessoal escolher. Se eles num aceitarem não vai ter mesmo casamento.Aí, minha amiga, depois eu continuo. Meu cartão tá acabando.Diga lá pro pessoal do cartão mandar mais, que eu tô muito faladeira. Até loguinho.

Valdenira, em matéria de casamento de capital e trabalho só dá certo se as bases aceitarem. Haja ensaio de quadrilha pra chegar a um acordo.

 

junho/2003

Colunista: Verônica M.Mapurunga de Miranda
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