ZOANDO NA CAATINGA

A VOZ DE VALDENIRA


Valdenira é uma paraibana do semi-árido, vivendo na confluência de vários Estados. Ela é da base da base. Não tem computador e me telefona sempre para dar notícias e falar suas impressões sobre muitos assuntos que afetam os brasileiros da caatinga e de todo o país. Coloco aqui sua fala e discuto com ela suas idéias, às vezes muito radicais e críticas, mas quase sempre cheias de razão e divertidas. Acompanhe.

E agora só deu festa. Valdenira estava vibrando com o casamento do capital e trabalho, quando telefonou.

"Minha amiga, alôzinho.Tô contente. Foi dura a batalha mas o acordo saiu.O meu amigo revolucionário teve que dar a mão à palmatória. Quando ele chegou no ensaio da quadrilha pra fazer a proposta do noivo, do Tio Sam, o pessoal se revoltou. Todo mundo dizendo: Só vai sem cartola.Nosso negócio é chapéu coco, de palha ou outro brasileiro.Eu olhei pra ele e disse: Tá vendo o que dá, querer colocar capital internacional goela abaixo no povo? O povo não gosta disso não."

"Aí ficou acertado que o capital era mesmo o nacional, e o trabalho, o pessoal conseguiu uma morena brejeira com uma saúde danada. Aí já começaram as piadinhas: Eita, que esse trabalho vai dar muito trabalho pro capital.Tudo Brasil, minha amiga.Aí perguntaram: quem vai ser o padrinho? Aí disseram: Só pode ser o presidente Lula.Mas padrinho de quem? Aí uns gritaram:O presidente Lula é padrinho do trabalho, afinal de contas num fomos nós que colocamos ele lá? Meu amigo revolucionário que era o assessor da história entrou e disse: Pessoal, o presidente Lula não pode ser padrinho só do trabalho, pois o seu governo é do Pacto Social-capital e trabalho. Quem votou nele pensando outra coisa votou errado. O melhor é ele ser padrinho do casamento. Aí o pessoal aceitou, mas queriam escolher suas testemunhas."

"Minha amiga, aí foi se complicando a história. O pessoal do trabalho começaram a chamar as testemunhas - os sem-terra, a cut, a contag, aí uns lá falaram também da força sindical.Eu fui uma das que disse:A força sindical só deve entrar desse lado se parar com as molecagens, porque uma hora é trabalho e outra hora tá lá lambendo os pés do capital. É bom se decidir direito, porque a coisa aqui é pão, pão, queijo,queijo. Disseram que iam fazer uma assembléia pra decidir. Um gaiato disse assim:Assembléia com quem? Com que lado? Aí, outra pessoa falou:E as ONGS?"

"Minha amiga, quando ele falou as ONGS eu me crispei todinha.Ora, essa história de ONG tá uma confusão danada. Virou moda, tem até empresário fazendo ONG,tão fazendo ONG até pra vender jogo de bicho, e querem dizer que são os revolucionários do país. Nas reuniões por aí é cheio de ONG, o pessoal tudo de crachá, dizendo que são movimento social. Pois eu fui contra, na hora que falaram dessas testemunhas de ONGS. É melhor convidar mesmo por nome, daquelas que a gente já sabe, porque só ONG num quer dizer nada. Uma vez num seminário desses de pequeno produtor tinha um pessoal lá muito metido a sabido, dizendo que era de uma ONG, com umas idéias muito estranhas. Aí eu disse assim: Minha filha, você podia me explicar uma coisa? Por acaso, você é contra o latifúndio? Ela veio com uma resposta muito da enrolada, sem dizer nem sim, nem não.Aí eu morei logo no assunto. Quando a pessoa é contra o latifúndio diz logo, encima das buchas, num fica com esse lero-lero. Pensei comigo mesma: ONG, né? Sei qual é sua direção, minha filha."

"Aí chegou a hora do capital. Quem são as testemunhas?Aí começaram a dizer o nome duns maiorais do capital.Mas os outros gritavam: Esse aí num é nacional coisa nenhuma, é associado com num sei quem lá de fora. Resultado, minha amiga, ficou um ceribolo danado porque era difícil saber se tinha algum capital mesmo nacional. O assessor disse assim: Eu não falei que isso ia ser difícil. Há quanto tempo vocês acham que o capital internacional tomou conta do Brasil? Eu já disse que capital não tem pátria, e ele está mundializado."

"Aí, minha amiga, eu tive que entrar no meio de campo, senão a vaca ia pro brejo e disse: Olhe rapaz, não vamos botar as coisas a perder, não.Nós sabemos que pelo menos existem intenções de uma turma aí, desse pessoal do capital, de se comprometer com empregos pra população, e de fazer as coisas mais de acordo com o Brasil. Porque tem outros aí que só querem sugar, mandar dinheiro pra fora, lucrar com juro alto e essas coisas que sai na televisão.Se houver casamento vai ser com esses que estão a favor do Brasil e do povo, e que vão também fazer sua parte, sem querer ganhar todas. Agora que a gente ainda num sabe quem são, aí num sabe mesmo não."

"Meu amigo assessor disse assim: O problema é que o capital só se interessa pelo lucro. Hoje eles brigam, porque os interesses não estão batendo, mas amanhã se juntam de novo quando der pra eles tirarem lucro. Quem quiser casar com capital tem que saber que ele é assim, volúvel."

"Eu pensei assim: Ô revolucionariozinho jeitoso! É por isso que a revolução no Brasil não acontece.Tive que entrar em campo de novo.E disse: Pessoal, eu tenho uma proposta. Já que a gente não sabe quem são os tais, de verdade, vamos botar essas testemunhas mascaradas e com um sinal de interrogação. Em vez da gente se preocupar com quem eles são, o melhor é a gente pensar no contrato do casamento. Por exemplo, tem que ter uma cláusula aí de combate ao latifúndio, outra é o compromisso de usarem o capital pra fazerem mais emprego.Aí o pessoal se entusiasmou e foram colocando mais idéias."

"Aí minha amiga, ficou certo o casal, o padrinho, as testemunhas. Agora  o pessoal ia criar aquelas histórias do roubo da noiva, que era pra apresentar na hora do casamento e organizar a festa, e o puxador da quadrilha. Uma pessoa lá disse assim: O noivo podia levar um bastão como aquele que o presidente Lula ganhou lá no Peru, aquele que saiu na televisão, assim era um capital brasileiro com o bastão do poder latino-americano. O assessor disse assim: Calma rapaz, vamos fazer primeiro esse casamento brasileiro direito. O bastão a gente deixa pra depois, pra dança do maneiro pau."

"Minha amiga, já vou indo. O pessoal tá todo me esperando lá pro ensaio geral. É trabalho, minha amiga! Agora se der certo, no Brasil as coisas vão estar com meio caminho andado. Tchauzinho!"

Vamos torcer, Valdenira, pra esse casamento sair sem muita desigualdade.

 

junho/2003

Colunista: Verônica M.Mapurunga de Miranda
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