ZOANDO NA CAATINGA

A VOZ DE VALDENIRA


Valdenira é uma paraibana do semi-árido, vivendo na confluência de vários Estados. Ela é da base da base. Não tem computador e me telefona sempre para dar notícias e falar suas impressões sobre muitos assuntos que afetam os brasileiros da caatinga e de todo o país. Coloco aqui sua fala e discuto com ela suas idéias, às vezes muito radicais e críticas, mas quase sempre cheias de razão e divertidas. Acompanhe.

Finalmente a festa do casamento entre capital e trabalho. Valdenira parecia muito contente quando telefonou.Vamos ver.

"Alôzinho, minha amiga. Num sei nem como começar, ainda tô emocionada. Um casamento desses sempre deixa a gente com o coração balançado.Depois daqueles acordos todo, o pessoal foi trabalhar. E quem diz que sertanejo e pequeno produtor é preguiçoso é porque não entende, que eles gostam de trabalhar, mas não são besta pra ser escravo de ninguém e ficar se matando. Quando o trabalho é bom e interessante é num instante que fica tudo pronto."

"Aí no dia de Santo Antônio, o santo dos casamentos, foi a quadrilha. Antes da quadrilha, de acordo com o costume teve o casamento, como sempre um casamento meio obrigado, porque o noivo sempre foge com a noiva, cê sabe, né? Aí o pessoal fez a história do casamento entre o Capital e Trabalho. O Capital era filho de uma família rica de latifundiário e a Trabalho era filha de uma família de trabalhadores, sindicalistas rurais de tradição. A Trabalho era uma moça brejeira, bonita e com muita saúde e o capital muito sedutor e mulherengo, e os amigos achavam ele volúvel.Mas... vá entender as coisas do coração, minha amiga. O certo é que eles saíram dos eixos, e como as famílias nunquinha que iam aceitar esse casamento, eles resolveram fugir."

"E como a família da Trabalho era pobre, porém decente, exigiram um reparo, pr'aquela desonra. Aí foram parar no juiz. O juiz sabendo que a coisa ia ficar preta tratou de arranjar um negociador, dos bons. Quando os pais da Trabalho chegaram lá carregando o noivo, o juiz já estava prevenido. A mãe da Trabalho chorava dizendo que o Capital tinha desgraçado sua filha. Que ela tinha orientado sua filha a vida inteira pra lutar contra a exploração do capital, pra não ser lambe pés de capital, se manter firme e digna nas suas posições, e agora vinha um Capital qualquer pra desviar sua filha pro mal caminho. Todo mundo sabia ali, naquele Brasil, que o Capital era volúvel e não tinha respeito por nenhum trabalhador.Quem disse que ele ia respeitar a filha dela? O juiz mais que depressa sacou o seu negociador e disse: Pra explicar melhor essa situação eu passo a palavra pro meu secretário."

"Minha amiga, ô juiz sabido, o negociador dele era ninguém mais e ninguém menos do que o Presidente Lula. Ficou todo mundo dizendo: Se com esse aí a negociação não funcionar, não funciona mais com ninguém.Aí o presidente Lula tomou a palavra e disse: "Cara companheira, com todo respeito, eu sei e todo mundo diz, que o Capital é volúvel, mas olhando para a sua filha Trabalho, uma moça tão bonita e cheia de saúde, eu sei que se eu fosse esse Capital eu deixaria de ser volúvel num instante." Minha amiga, o pessoal todinho deu aquele risinho...cê sabe, né? O Presidente Lula é brincalhão! Aí continuou: "Além disso, sua filha Trabalho foi muito bem preparada e deve estar pronta para os novos tempos. Nesses novos tempos, no meu governo, ninguém terá o peixe pronto, todos vão aprender a pescar. E acho que sua filha está preparada para pescar esse peixe.O capital tem que andar na linha, senão cai no anzol.O ministério da pesca, no meu governo, vai estar preparado para ensinar os trabalhadores a pescar com novas tecnologias, até para lagostas, que é uma espécie mais rara e mais cara." Um gaiato disse assim: Cuidado com o defeso! E o presidente Lula continuou: "Além do mais, companheira, não adianta irmos contra as coisas do coração.Toda vez que fizeram isso aconteceu um final triste de Romeu e Julieta. Como canta a Elba Ramalho, o que se leva dessa vida é o amor que a gente tem pra dar."

"Minha amiga, a mulher já estava chorando, mas era de emoção. Aí disse: Está bem sr. juiz, eu concordo que eles casem, mas só se o Presidente Lula for o padrinho.E as testemunhas da Trabalho têm que ser daquelas boas, de luta. Aí, saiu todo mundo de cena, abraçado e amigo, pra poder ir se arrumar pro casamento."

"Aí, minha amiga, na cena seguinte foi o casamento. A Trabalho tava bonita que só, e o Capital tava até compenetrado, conteve os excessos.O Presidente Lula de terno fino mas com um chapéu de palha, daqueles bons.As testemunhas do noivo todas mascaradas com um ponto de interrogação, desconhecidas. Uma pessoa que tava assistindo disse assim: Olha o que é que dá se casar com esse capital brasileiro. Ninguém sabe quem é, quem tá por trás das máscaras. Uns desconhecidos, e ainda por cima testemunhas desse Capital volúvel aí. O meu amigo revolucionário, o assessor, tava ali por perto e eu vi quando ele dizia:Rapaz, não se preocupe tanto com isso não, porque pra isso a gente não tem solução.É melhor pensar que esse casamento é um contrato social e esse contrato social tem regras, que têm que ser seguidas.Desconhecido ou não esse Capital tem que entrar nos eixos."

"Aí começou a ladainha lá do padre.Ele disse:Começaremos agora com os compromissos. Uma lista deles será assinada depois pelos noivos, padrinhos e testemunhas, agora vamos apenas ao juramento principal. Aí se dirigiu ao noivo: Renuncia ao latifúndio e à toda sorte de exploração e miséria que o acompanha? Renuncio, disse o Capital.Promete criar empregos e condições pra que Trabalho possa se realizar nesse nosso Brasil brasileiro? Prometo. Promete cuidar para que os direitos de Trabalho não sejam violados, contribuindo com a aposentadoria, férias, seguro saúde, e acompanhe Trabalho na saúde e na doença, na vida e na morte? Ele disse: Prometo. Aí chegou a vez de Trabalho: Renuncia ao vício de sempre querer o peixe e não aprender a pescar? E trabalho respondeu:Renuncio. Promete cuidar para que sua luta com o Capital acompanhe os novos tempos do capital mundializado "não deixando a peteca cair"? Prometo, disse a Trabalho. Promete ficar de olho para que seus direitos não sejam violados e a reforma da previdência e as outras não explore mais o trabalhador, acompanhando a luta com o Capital, na saúde, na doença, na vida e quem sabe um dia na morte? Prometo.Então está selado o contrato social. Os demais compromissos acordados serão assinados no final do casamento.Lembrando para as testemunhas e noivos que quando eu disser assente o nome, não sente encima do altar, por favor, senão ele cai porque as tábuas não tão muito boas."

"Minha amiga, em toda quadrilha o pessoal faz essa besteira. Na hora de assentar o nome, eles se sentam e derrubam o altar. Eu disse nos ensaios, não vamos botar essa parte não, porque é muito repetida, vamos ser mais criativos. Aí o pessoal disse: Não, deixa, deixa, porque todo mundo ri disso. Eu, hein? A platéia ainda aplaude algumas besteiras brasileiras, e ainda pede bis."

"O padre terminou dizendo: Quero aproveitar a oportunidade para desejar felicidades aos noivos, lembrando que muitos casamentos são mal feitos por falta de um bom negociador.Muito provavelmente, se o Presidente Lula estivesse presente no romance de Romeu e Julieta, aquela desgraça não teria acontecido no final.E teria, como hoje acontece com esses nubentes, um contrato social unindo com laços de amor a contradição básica de uma sociedade - capital e trabalho. Que Deus nos abençoe...e tenha piedade de todos! Passo a palavra para o padrinho".

"O Presidente Lula pegou o microfone, debaixo de muitas palmas(aplausos), e começou a falar esfregando as mãos: Meus queridos companheiros e companheiras, esse é um dia muito especial para mim.O começo da realização de um sonho meu e dos muitos brasileiros que acreditaram no meu poder de negociação.Esse é um casamento do qual eu faço muito gosto. Sempre defendi que um dia Capital e Trabalho nesse país poderiam se encontrar.E que esse Brasil um dia seria de todos. Não estamos mais em época de procurar a guerra, mas de procurar a paz e o amor.Não é possível mais viver em um país com tamanha injustiça social, onde a maior parte da população passa fome. O Capital e Trabalho neste país têm que se ajustarem aos novos tempos. Não pode mais existir um Capital que só pense em sugar o povo, e levar dinheiro pra fora, temos que crescer e gerar empregos.O Estado também tem que mostrar a sua caixa preta para a população, e terá que aceitar os movimentos sociais e as ONGS, isto é, aquelas que são contra o latifúndio (minha amiga, essa parte aí do "contra o latifúndio" foi minha). O Trabalho não pode mais ficar nos tempos antigos, quero dizer, de duas décadas atrás.Tem que acompanhar as inovações do capital mundializado, senão não terá força para fazer valer seus direitos. Tem que aprender a pescar e não só a querer o peixe pronto, pois se o peixe não aprender a se comportar também será frito.Só ficarei descansado quando cumprir meu sonho neste país:quando cada trabalhador puder comer três refeições por dia".

" Minha amiga, o pessoal gritava: Não é só comida não, é agua, é educação, é saúde. E uma lista enorme. Aí ele disse: Vamos devagar com o andor, porque o santo é de barro. Se Deus não fez o mundo em um dia por que eu tenho que fazer tudo em quatro anos? Tudo vai depender...se houver reeleição. Uma pessoa lá atrás disse assim: Ele tá fazendo o sermão do casamento ou discurso político? Nosso assessor respondeu na ponta da língua: Se o Presidente Lula quisesse ser padre tinha entrado pra convento e não pra partido. Meu caro, pra político qualquer palco é palanque, vá aprendendo."

"Aí, como ele viu que a coisa podia esquentar resolveu terminar o discurso:É importante lembrar que eu ainda estou na fase de paz e amor, e não sei se vou sair dela.O meu vice José Alencar que deveria estar aqui, não pôde vir, mas como fazemos tudo combinado não tem problema. Nós somos que nem Romeu e Julieta, como esse belo casal de nubentes de Capital e Trabalho, sem o final desgraçado do Romeu e Julieta, é claro. Desejo felicidades ao jovem casal, nesse início de grande concertação nacional.Hasta la victoria siempre!"

" Aí o pessoal disse: Que língua é essa, que  o presidente Lula está falando? Aí, o meu amigo, o assessor, disse assim:É Espanhol. É porque ele ainda tá com a cabeça lá nas histórias latino-americanas, da viagem do Peru. Deve ser influência daquele bastão Inca. Dizem que ele é muito poderoso."

"Nessa hora eu vejo o pessoal todo com as mãos levantadas cantando "os peixinhos do mar": "Quem me ensinou a nadar,quem me ensinou a nadar, foi, foi,foi os peixinhos do mar. Era o Gilberto Gil, o Ministro da Cultura, no microfone, cantando e fazendo o pessoal cantar. Como ele ia perder essa festa, minha amiga? Ele vai pra todo canto com o Presidente Lula. Mas depois eu conto essa parte, minha amiga, que o cartão vai cair."

"Mas, Valdenira, me diga só uma coisa antes de desligar. Quer dizer que o casamento do capital e trabalho saiu mesmo?"

"Pois é, minha amiga, o casamento saiu. Agora, a lua-de-mel é que são elas. Tchauzinho."

Valdenira, hasta la victoria siempre!

 

junho/2003

Colunista: Verônica M.Mapurunga de Miranda
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