ZOANDO NA CAATINGA

A VOZ DE VALDENIRA


Valdenira é uma paraibana do semi-árido, vivendo na confluência de vários Estados. Ela é da base da base. Não tem computador e me telefona sempre para dar notícias e falar suas impressões sobre muitos assuntos que afetam os brasileiros da caatinga e de todo o país. Coloco aqui sua fala e discuto com ela suas idéias, às vezes muito radicais e críticas, mas quase sempre cheias de razão e divertidas. Acompanhe.

Fiquei ansiosa esperando a ligação de Valdenira. Ela tinha ficado me devendo o restante da quadrilha. O casamento do Capital e Trabalho foi mesmo longo. Veja o restante.

"Alôzinho, minha amiga.Tô lhe devendo os finalmente da quadrilha, né? Pois num é, que naquele dia quando o Ministro Gilberto Gil chegou, o Presidente Lula saiu de fininho da festa.Disse que tinha outro compromisso urgente e que o Ministro Gilberto Gil ia ficar até o fim da festa. O ministro já estava cantando "os peixinhos do mar" e depois misturou com Marinheiro Só: Ô marinheiro, marinheiro, marinheiro só, quem te ensinou a nadar, ô foi o tombo do navio, ô foi o balanço do mar. Eu não sou daqui, eu não tenho amor (mas ele cantava, eu só tenho amor). Eu sou da Bahia de São Salvador."

"Depois ele começou um discurso: Meus companheiros e companheiras sertanejos (ele agora também fala companheiro, de tanto acompanhar o Presidente Lula ele aprendeu) eu não poderia deixar de vir a um acontecimento tão divino. O casamento do Capital e Trabalho nesse país é o encontro dos opostos, é o entrelaçamento profundo de nossa cultura. Mas, não essa cultura do folclore, mas de uma cultura integrada à vida das pessoas. Estamos nesse mar imenso que é nossa cultura, com nossos ancestrais, peixes que nos ensinam a nadar. Somos marinheiros de primeira viagem sim, pois nunca essa tarefa antes nos levou aos astros, ao cosmo, para que nós possamos ser uma das maiores potências mundiais nessa nova era de aquário.Temos que aprender a nadar nesse oceano de nossa cultura, seja com os peixes, com o tombo do navio ou com o balanço do mar. Mas não podemos esquecer, que a terra é também divina, nossa mãe terra, que o baião também é divino, pois ele vem do barro do chão. Celebremos esse momento também em memória de minha Mãe Menininha de Gantois, de nosso ancestral Zumbi, de Peri e Ceci e todos os que vieram depois. Saravá, meu pai! Olelê Maculelê! Axé! Amém!"

"Aí começou a cantar aquela música dele "De onde é que vem o baião. Vem debaixo do barro do chão...e o pessoal todo começou a dançar e a cantar."

E o pessoal conhece essas músicas, Valdenira?

"Essa daí, minha amiga, o pessoal sabe na ponta da língua.A Elba (Elba Ramalho) cantou é sucesso na parada. O pessoal não perde uma da Elba."

"O assessor disse assim: É melhor convidar o Ministro pra dançar a quadrilha senão ele se entusiasma e vai cantar até de madrugada e ninguém dança a quadrilha. Aí foram lá e disseram, ministro vamos pra quadrilha agora, que no intervalo da quadrilha, na hora dos discursos pros noivos você vai ter de novo a palavra. Aí começaram a quadrilha. Era foguete de todo jeito minha amiga. O pessoal comprou uns fogos danados. Soltavam o "calangro elétrico" e gritavam assim: Esse aí é pra quem gosta de latifúndio! Soltava um "rabo de saia" e diziam: Esse aí é pra quem é contra a Reforma Agrária! Minha amiga esses fogos aí são terrível. É daqueles que persegue um cristão até ele se cansar e desistir, entendeu? E soltava os fogos de vista também: Estrelinha pro presidente Lula!"

"Aí a quadrilha começou, com um puxador dos bons.Todo mundo cantava: Olha pro céu meu amor, veja como ele está lindo! E o puxador gritava: Olhem pra terra também, nossa terra maravilhosa, vamos cuidar dela! Nossa terra é divina (já tava influenciado pelo ministro da cultura). Anavantur! Anarriê! E o pessoal continuava: Olha pr'aquele balão multicor, que para o céu vai subindo. E o puxador: É o nosso coração que vai nele, subindo pro alto! Todo mundo enfileirado pela Reforma Agrária! Caminho da roça! Vamos lutar por mais crédito pro pequeno produtor! Cada passo da quadrilha tinha uma reivindicação. Ô coisa bonita! Nunca pensei viver pra ver uma coisa dessa, minha amiga! Mas, tem o ditado que diz, quem viver verá. Eita, Brasil danado de bom!

E continuava o forrobodó: Viva os noivos, viva o Pacto Social, viva nosso padrinho Presidente Lula, viva o Ministro Gilberto Gil! Aí chegou a hora do intervalo, a hora dos discursos. Pra num ficar muito comprido foi decidido que só ia falar o ministro da cultura. Aí ele pegou o violão, todo mundo sentado no chão e ele ia dedilhando e falando:Hoje nós estamos vivendo um momento sem igual. Gostaria de dizer pra vocês que eu também sou contra o latifúndio, e a favor da Reforma Agrária, tanto que eu doei uma fazenda minha pros Sem Terra. Se todos aqueles que tivessem latifúndio doassem um para os Sem Terra, como eu fiz, o Brasil ficaria em paz, não precisaria de luta no campo. Aí começou a cantar baixinho: A paz invadiu o meu coração...Aí parou e disse: É importante que a gente pense na importância do lavrador, do camponês, para a inocência do mundo, para a sua relação com o cosmo. Porque a monocultura acaba com os passarinhos, com a biodiversidade, maltrata a terra, nossa mãe terra.O camponês ama a terra, e quando estamos na terra com amor pela terra estamos mais perto de Deus. O importante é que amarremos nosso arado a uma estrela, e eu acho que todo mundo aqui, pelo jeito, já amarrou. Foi pensando nisso que um dia eu fiz essa canção, aí começou a cantar. Todo mundo quieto, pareciam até que estavam rezando. Como ele mesmo disse: Um momento divino.A letra é linda, minha amiga, deixa eu cantar pra você.

Se os frutos produzidos pela terra
Ainda não são
Tão doces e polpudos quanto as peras
Da tua ilusão
Amarra o teu arado a uma estrela
E os tempos darão
Safras e safras de sonhos
Quilos e quilos de amor
Noutros planetas risonhos
Outras espécies de dor.

Se os campos cultivados neste mundo
São duros demais
E os solos assolados pela guerra
Não produzem a paz
Amarra o teu arado a uma estrela
E aí tu serás
O lavrador louco dos astros
O camponês solto nos céus
E quanto mais longe da terra
Tanto mais longe de Deus.

 "Minha amiga, fiquei toda arrepiada, ô homem de palavreado bonito! E eu dizendo que só marciano era capaz de entender sertanejo. Num é não, minha amiga, o Ministro da Cultura também entende. Eu acho que ele até disse: Eu também tenho uma parte minha de camponês. Mas logo depois ele disse que ia fazer uma homenagem à noiva, a Trabalho. E disse:

"Eu vou cantar essa canção em homenagem a Trabalho, porque nesse momento divino, desse casamento entre Capital e Trabalho eu sei o quanto a mulher é importante, e o trabalho também. Nem o homem pode se realizar sem descobrir sua porção feminina, nem o Capital pode se realizar sem dar vez para o Trabalho. Todos temos que ser super-heróis, super-homens e por que não super-mulheres (essa foi minha, minha amiga) nesse momento histórico...e mítico.Aí mandou ver o super-homem."



 "Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria

 Que o mundo masculino tudo me daria

 Do que eu quisesse ter



 Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara

 É a porção melhor que trago em mim agora

 É o que me faz viver


 Quem dera pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera

 Ser o verão no apogeu da primavera

 só por ela ser



 Quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória

 Mudando como um Deus o curso da história

 Por causa da mulher "



"Todo mundo aplaudiu. Os noivos agradeceram e a quadrilha continuou.Foi forró, fogueira, batata-doce, pé-de-moleque, aluá...No final, o pessoal saiu carregando os noivos nos braços. Uma televisão dessas do Sul, corubijando pra saber notícias do Presidente Lula e do Ministro da Cultura apareceu por lá. O pessoal que já imaginava que ia acontecer isso preparou uma faixa bem grande, e quando eles começaram a filmar eles botaram a faixa. Adivinha o que tava escrito na faixa, minha amiga? Reforma Agrária já!"

Mas, Valdenira, pelo que você me conta o Presidente Lula e o Ministro da Cultura estiveram mesmo aí, não foi?

"Que nada, minha amiga! O pessoal do sertão também tem imaginação. Foi tudo gente daqui fantasiado. Na parte do Presidente Lula e do Ministro Gilberto Gil meu amigo revolucionário deu assessoria.O pessoal é chegado numa viola e sanfona e num teve problema. Nos ensaios, a parte do Presidente Lula, quando num tava de acordo, o pessoal sabe como ele fala e dizia: Olhe, conserte essa parte aí, que o Presidente Lula num fala assim não. Agora, na parte do ministro, o pessoal só conhecia mais ele de cantar.Aí eu disse pro meu amigo: Cuidado com esse palavreado aí, rapaz, porque se o ministro num falar assim, e uma língua grande for contar pra ele, ele pode se zangar.E ele respondeu assim:Se zanga não, o ministro fala assim mesmo. Pra ele tudo é divino e maravilhoso.O que deu mais trabalho foi imitar aquelas trancinhas dele. Agora, na música, eu disse pro meu amigo: Essa comparação de porção mulher com Trabalho num tá meio estranha não, rapaz? Que nada, Valdenira, isso é só uma "expressão simbólica".

"Pois minha amiga, ele pode vir com o palavreado que quiser, agora pra mim, o super-homem da história é o presidente Lula, que vai mudar a história por causa da Trabalho, que é mulher. Pra mim, o Capital tem que ficar no lugar dele, porque quem leva pra frente essa história é o social. Não é, Presidente Lula? Até loguinho, minha amiga!"

Vamos torcer pra que o presidente Lula esteja de acordo, Valdenira.
 

 

junho/2003

Colunista: Verônica M.Mapurunga de Miranda
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