ZOANDO NA CAATINGA

A VOZ DE VALDENIRA


Valdenira é uma paraibana do semi-árido, vivendo na confluência de vários Estados. Ela é da base da base. Não tem computador e me telefona sempre para dar notícias e falar suas impressões sobre muitos assuntos que afetam os brasileiros da caatinga e de todo o país. Coloco aqui sua fala e discuto com ela suas idéias, às vezes muito radicais e críticas, mas quase sempre cheias de razão e divertidas. Acompanhe.

Valdenira e os desafios dos pequenos produtores com a burocracia. Dessa vez ela se superou.Um pouco de ousadia não faz mal a ninguém. Veja lá.

"Alôzinho, minha amiga.O povo aqui anda na maior agitação. É reunião pra todo lado. Pra fazer associação, pra ajeitar estatuto, pra fazer reclamação, tudo pra levar pros órgãos do Governo Lula. E eu fico pensando aqui comigo: tomara que dê certo, porque se for ainda aquele pessoal do governo passado que estão nos órgãos, num tem jeito não. Vai dar na mesma."

E por que você diz isso, Valdenira?

"Porque sou gata escaldadinha, minha amiga. No governo do Ex.,como diz meu amigo revolucionário, era muita propaganda pro pequeno, crédito pro pequeno e num sei quantas vantagens mais. O pessoal cai na propaganda, aí depois se decepciona. O pessoal de duas comunidades vizinhas fizeram umas reuniões com um técnico e aí organizaram uma lista de projetos que precisavam na comunidade. Aí telefonaram pra marcar com o presidente do tal Banco que atendia os pequenos, pra levar os projetos das comunidades. Sabe o que a secretária de lá disse pra eles: Olhe, o presidente num tem agenda até 6 meses mais. O pessoal ficou assim meio chateado com aquela história. Eu disse assim: Essa secretária pode fazer isso com vocês, mas quero ver se ela faz comigo."

"Fui no telefone comunitário da esquina e liguei pra lá. A secretária perguntou assim: Alô, com quem estou falando? Eu disse: Com a Dra. Valdenira Fonte, presidente do Centro de Altos Estudos e Pesquisas do Semi-árido. Preciso falar urgentemente com o presidente do Banco, um assunto do seu interesse. Ela disse: Um momento, Dra. Valdenira. Depois voltou e disse:Dra. Valdenira, tem um horário vago daqui há dois dias, está bem pra senhora? Eu respondi encima das buchas: Está bem sim. Na verdade, eu tinha esquecido, estou vendo aqui na minha agenda que amanhã e depois eu tenho dois compromissos marcados. Até logo, então. Saí de lá correndo que nem um  pé de vento, pra dizer pras outras."

"Pessoal é  o seguinte, vocês vão ter que me ajudar porque eu tenho que chegar lá parecida com madame, senão eu não entro. Compramos um desses vestidos do mercado, que agora tão fazendo imitação de roupa fina (criatividade camelô). E as mulheres disseram assim: Valdenira, tem que botar um pouquinho de pintura pra disfarçar. Eu disse: Olhe lá o que vocês vão fazer comigo! Só sei que no tal dia saí toda emperiquitada, igual madame, com os projetos do pessoal numa pasta."

"Minha amiga, quando eu cheguei lá na frente do prédio, um tremendo dum prédio, o porteiro olhou pra mim desconfiado. Eu pensei assim:É bem essa pintura que tá estranha. Num devia ter deixado o pessoal me pintar.O porteiro se aproximou e disse assim:Aonde a senhora vai? Eu respondi:Senhora não,doutora. Sou a Dra. Valdenira Fonte e o presidente já está me esperando. O porteiro disse: Desculpe, doutora, entre por favor. E saiu todo cheio de salamaleque, quase que lambe meus pés. Ô povo subjugado, meu Deus!"

"Entrei no prédio e fiquei quase tonta. Um luxo, minha amiga. Um frio, do tal do ar condicionado, que dá até pra madame usar casaco de pele. Um pessoal de lá da região tinha dito assim: Tu vai ver Valdenira, lá é um luxo, parece um paraíso. Sei...Paraíso pra mim tem que ter passarinho e cachoeira, minha amiga. Aquilo ali só se for paraíso de burocrata. Mesmo assim, eu não sei como aquele povo agüenta ficar no meio daqueles tabiques separando um dos outros. Parece bicho engaiolado. Ô coisa estranha! Eu fui falar isso pro meu amigo revolucionário e ele disse: Valdenira, tu é mesmo muito inocente. Aquilo ali é feito por gente de fora. Eles contratam, pagando uma grana arretada, empresa do Sul, os consultores, pra fazer o "lay out", isso que tu chama de gaiola. Dizem que  o pessoal trabalha melhor com aquilo, tu acredita?"

"Minha amiga, eu não duvido de mais nada. Em cada cabeça uma sentença. Só sendo muito robô pra trabalhar bem, ali. Parece um labirinto. Pensei assim: Contrata gente de fora, né? Aí tem mamata. Mas eu não falei nada. Porque pobre num pode dizer mais nada, que é difamação. É só quando eles descobrem o endereço da gente, pra mandar oficial de justiça. Uma vizinha me contou, que um pessoal de uma comunidade tinha ido lá tentando falar com o presidente e não conseguiu, e ficaram perdido uma tarde inteira lá dentro, rodando, sem conseguir sair daquele labirinto. O pessoal com vergonha de perguntar, e os nomes de saída, escada, elevador, tudinho em inglês. E esse é o banco do pequeno produtor, minha amiga. No final, um filho de Deus percebeu que o pessoal tava atrapalhado e ajudou eles saírem do Banco."

E o presidente, Valdenira?

"Pois é, minha amiga, cheguei lá na sala de espera e a secretária disse assim: Dra. Valdenira? E eu: Ela mesma. Ela disse: Espere um minutinho, que  o presidente já vai lhe atender. A senhora aceita um cafezinho ou um chá? Fui de chá. Um chazinho de capim-santo. Esse pessoal deve ter a cabeça quente, pois o pessoal da comunidade toma chá desses aí pra se acalmar. Aí o presidente mandou entrar. Quando eu cheguei lá, minha amiga, minhas pernas tremiam. Cê sabe que eu num gosto de mentira, né? Aí quando ele disse, apertando minha mão: Então, Dra. Valdenira, em que posso lhe ser útil? Eu disse: Olhe Dr.deixe o doutora pra lá, que eu não sou doutora não. Eu sou mesmo só Valdenira, e eu tô aqui é pra representar os pequenos produtores lá das comunidades de Olho D'água e Riacho Seco. Sua secretária disse que num tinha agenda e eu disse que era doutora, senão eu num tava aqui. O rosto do homem foi mudando e eu pensei assim: Vixe, Valdenira, ele vai soltar o leão."

E ele soltou o Leão, Valdenira?

"Soltou nada, minha amiga, soltou foi uma gargalhada. Aí disse: Bem, já que você está aqui qual é o assunto? E eu disse: São uns projetos do Olho D'água e do Riacho Seco. Passei a pasta pra ele. Aí ele pegou um cadernão, bem grande, e começou a copiar.Aí eu pensei:Pronto, Valdenira, num adiantou nada você vim aqui. Pois o meu amigo revolucionário já tinha dito, quando vocês verem um burocrata com um caderno grande pra copiar as reivindicações é porque ele não vai fazer nada. É só pra enganar. Mesmo assim, esperei até o fim. Já era vexame demais num esperar. Depois ele disse que mandava avisar qualquer coisa.O pessoal está esperando até hoje."

"Quando eu cheguei na comunidade o pessoal todo querendo saber. E aí Valdenira, os projetos vão sair? Eu disse: É melhor esperar sentado porque em pé cansa. Aí falei pra eles a história do cadernão. E também da Doutora Valdenira. Todo mundo riu. Ô sociedadezinha pra dar valor a doutor! É por isso que tem gente vendendo diploma de todo jeito. E esse pessoal de classe média, que quer ser importante, é que é triste. Estampa logo o doutor que é pra todo mundo saber que é formado. Ave Maria, eu sou pobre, mas cafona desse jeito...Deus me livre! Tchauzinho, minha amiga!"

Valdenira, vivemos no país dos doutores e dos calotes também. É melhor mandar um recadinho pro Governo Lula, pro pessoal dos seus órgãos adotarem um caderno menorzinho e atenderem os pequenos produtores.

 

julho/2003

Colunista: Verônica M.Mapurunga de Miranda
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