ZOANDO NA CAATINGA

A VOZ DE VALDENIRA


Valdenira é uma paraibana do semi-árido, vivendo na confluência de vários Estados. Ela é da base da base. Não tem computador e me telefona sempre para dar notícias e falar suas impressões sobre muitos assuntos que afetam os brasileiros da caatinga e de todo o país. Coloco aqui sua fala e discuto com ela suas idéias, às vezes muito radicais e críticas, mas quase sempre cheias de razão e divertidas. Acompanhe.

Valdenira hoje estava meio macambúzia, acabou entrando em assuntos pouco terrestres, mas nem tanto. Veja você mesmo.

"Alôzinho, minha amiga. Hoje eu num tô muito faladeira não. A situação tá meio difícil, pedindo anjo e santo."

Valdenira, você acredita em anjos?

"Minha amiga, acredito meio que sim, meio que não. Depende. Se for dos anjos do meu amigo revolucionário não boto muita fé não. Às vezes, quando ele andava meio pra baixo, tinha a mania de ficar declamando aquela poesia do anjo, do Carlos Drummond de Andrade: Quando eu nasci, um anjo torto desses que vivem nas sombras disse: Vai Carlos ser gauche na vida. Anjinho gaiato, minha amiga. Se fosse pra mim, eu aposto que ele tinha dito: Vai Valdenira, ser pobre e inteligente na vida, pra ver o que é bom pra tosse. É, minha amiga, pois ser pobre e ter inteligência pra entender a injustiça social no Brasil, a concentração da tal de renda, o latifúndio, a exploração do trabalhador, e esses politiqueiros do semi-árido é um sofrimento heróico."

"Por isso eu decidi, esse tipo de anjinho, assim pessimista, num tem cartaz comigo não. Eu vivo cantando aquela música que o Nei (Nei Matogrosso) canta:Quando o infortúnio nos bate à porta, o amor nos foge pela janela... Mulher prevenida vale por duas. Se um dia, um anjo desses me aparecer e perguntar: Como é que vai a vida, Valdenira? Eu respondo encima das buchas: Olhe aqui, anjinho, se você é da raça daquele anjo do Carlos Drummond de Andrade, obrigadinha, você está dispensado. O anjo que estou esperando é outro. Melhor só do que mal acompanhada por anjo agourento. Já me chega de assombração, aqui pelo semi-árido, minha amiga."

E tem uns políticos por aqui, com cara de anjinho barroco, não é Valdenira?

"Se tem, minha amiga. Quantas vezes já peguei a mulherada olhando as fotos de um tal político daqui, dizendo assim: Olha como ele é lindo! Uns olhos tão piedosos! Parece um anjinho de igreja. Eu vou votar pra ele. Minha amiga, a folha corrida política desse tal anjo político delas é de dar dó. E eu disse pra elas: Pessoal, vocês vêem cara e num vêem coração. Vocês estudam a história sagrada na Igreja, mas num aprendem. Existe anjo do bem e anjo do mal. Ou vocês num sabem que o Lusbel era um anjo antes de mudar de lado, de partido, de rachar com Deus? Pois é por isso que tem que se tomar cuidado com esses políticos parecido com anjo. Minha amiga, eles aproveitam tudo, um dia ainda vão se fotografar de anjo, só pra conseguir voto. Cruz credo! Vade retro! Comigo a coisa é diferente. Anjo comigo tem é que mostrar currículo e folha corrida. Com esses pessimistas num quero nem conversa. E pra esses políticos metido a anjo...hummm...Eu tenho um remediozinho pra eles. Mas é segredo, rá, rá, rá."

"Minha amiga, já vou, pra aproveitar o sol do fim da tarde, porque pela sombra eu posso encontrar um desses anjos do Carlos Drummond de Andrade, ou desses disfarçados daqui. Tchauzinho!"

É, Valdenira, parece que a situação não está pra anjo mesmo! Que um anjo de sol lhe acompanhe! E vade retro pras assombrações locais!
 

 

julho/2003

Colunista: Verônica M.Mapurunga de Miranda
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