ZOANDO NA CAATINGA |
A VOZ DE VALDENIRA |
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Valdenira é uma paraibana do semi-árido, vivendo na confluência de vários Estados. Ela é da base da base. Não tem computador e me telefona sempre para dar notícias e falar suas impressões sobre muitos assuntos que afetam os brasileiros da caatinga e de todo o país. Coloco aqui sua fala e discuto com ela suas idéias, às vezes muito radicais e críticas, mas quase sempre cheias de razão e divertidas. Acompanhe. |
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Valdenira hoje veio de cantoria e foi logo dizendo: "Alôzinho, minha amiga! Trouxe o Zé das Trovas pra você entrevistar. Cê num disse que estava entrevistando gente que tinha o que dizer de verdade. Pois o Zé das Trovas não diz a verdade não. Ele canta a verdade. Pode perguntar que ele canta.Ele é seguidor do Patativa (Patativa do Assaré).
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A fala - Está bem, Valdenira. Se aproxime do telefone, sêo Zé das Trovas, e se apresente pros leitores de A fala. Zé das Trovas - |
Eu me chamo Zé das Trovas Num nego rima e verdade Num pestanejo, nem fujo Por qualquer contrariedade Não me esquivo e nem refugo Quando vão chegando as tropas Minha trova é minha arte E é também o meu trabuco Quando eu digo e não recuso "Cante lá, que eu canto cá".
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A Fala -Sêo Zé, como você vê a política nacional? Zé das Trovas - |
Eu sou povo da planície Nunca estive no planalto Só entendo de política Daquela que não está no alto. Cá embaixo na nação, a maioria do povão Aquele que tem sido alvo De tanta politicagem Cansou de tanta promessa Traição e bandidagem. Por isso eu vivo cantando "Cante lá que eu canto cá".
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É bom saber a diferença De quem sobe pro poder Dorme em lençóis do Egito Tomando champanhe fina Vivendo o seu bem-querer. Dum pobre cá da planície Que está levando no lombo, no país de Sansaruê, Os males das "Terras sem Males" Prometida e não cumprida, Sem mais nenhum tererê.
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Por isso eu pego a viola Pras diferenças cantar E quem num ficar contente "Cante lá, que eu canto cá"
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A política é nacional Quando o povo participa Quando toca o coração E o povo se emancipa Quem quiser cuidar do bolso Da vida e do passadio Não espere por planalto Melhor é cuidar da planície.
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Por isso eu pego a viola E meto o aço a cantar Não fico só assistindo "Cante lá, que eu canto cá".
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Se você canta uma légua Eu canto uma légua e meia Pra apresentar o riscado E desvendar essa teia Pois quem está no planalto Não entende os da planície Pois se encontra na cadeia Do poder e da má via. Gaiola de ouro sem pássaro Sem liberdade e poesia. Pra mudar esse traçado Só entrando na folia.
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Pegue então sua viola
Que eu não sou de desdenhar Querendo um desafio "Cante lá que eu canto cá".
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A fala - Mas, sêo Zé das Trovas, o pessoal do planalto não tem poder e liberdade pra decidir o que fazer no Brasil? Zé das Trovas- |
A pior prisão que existe, ontem, hoje e agora É pensar que se está livre, com irmãos sofrendo lá fora. Como diria o poeta, dos "Títeres de Cachamorra" Nossos títeres são de "Cachorra" Nosso país está entregue. Nossas veias estão abertas e nosso sangue esvaindo. Em borbotões de pobreza, pelos grotões vão caindo. Onde está nossa riqueza?
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Se não estiver de acordo Pode pegar a viola E vamos desafiar. Quem está com a verdade não tem medo de cantar. "Cante lá, que eu canto cá"
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A fala - Sêo Zé das Trovas, e a Reforma Agrária? Zé das Trovas- |
Dos tempos das priscas eras Dos tempos da escravidão O Brasil foi dividido Entre josés e joãos. Pro josé terra e riqueza Pro joão escravidão. Agora é hora da história Devolver o seu quinhão Dos escravos injustiçados, dos índios e dos peão.
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Quem pensar que a riqueza, de um país, de uma nação Se faz com a pior injustiça, roubo e escravidão. Entrará para a história manchado com a traição.
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Por isso eu não desisto de minha viola tocá Se a verdade incomoda "Cante lá, que eu canto cá".
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A Fala - E o que você pensa da situação de nossos irmãos índios? Zé das Trovas- |
Nos tempos da Pindorama Nas terras do leite e do mel Um povo feliz vivia, Mas teve destino cruel. De fora, chegaram povos e suas terras tiraram. Tiraram os seus governos, cultura e propriedade. Hoje os caciques ainda lutam Ainda lutam os pajés Ainda lutam esses povos munidos de muita fé. |
Hoje os inimigos de guerra Não vêm de terras de fora São plantados em nossa terra Do mesmo sangue, e agora? É luta de irmãos contra irmãos.
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Quem tiver coragem e amor Não fique de braço cruzado Nem esperando o terror Mostre logo o lado errado. Grite, pule e esbraveje Dê direito ao que é direito O Brasil vai ser mudado
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Quem quiser um Brasil novo Não pode ficar parado Bata com força no pé E comece a resmungá Vá pegando na viola "E Cante lá que eu canto cá".
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A Fala - Seu Zé das Trovas, vamos agora à saideira. Que mensagem você deixa pros brasileiros e leitores de A Fala? Zé das Trovas- |
Seguro morreu de velho Mas a vida não viveu Quem da toca não saiu O mundo não conheceu. Quanto mais vida, mais risco Quem correu risco viveu Mudou o mundo, sonhou, bordou e aconteceu.
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Para ter um Brasil novo Não adianta mendigar Tem que fazer e acontecer e as estruturas quebrar. Quem tem medo encurta as pernas pára os sonhos e a esperança. Quanto maior for o risco Maior será a bonança.
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Eu só canto pé quebrado E rimo sem muito esmero O que importa é a mensagem Nessa num dou paradero. Se estou com a verdade Num fujo de pelejá Minha rima é a coragem Cante lá que eu canto cá.
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Adeus, adeus, que eu já vou Com minha viola a cantá. Minha vida é sem sossego É um "cante lá que eu canto cá."
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A Fala - Muito obrigada, seu Zé das Trovas, e continue cantando. Precisamos de cantorias que esclareçam as cabeças. Passe aí o telefone pra Valdenira, pra ela dizer sua última mensagem. Valdenira - Num tenho muita mensagem não, minha amiga. Mas coloque aí um recadinho pros governadores do semi-árido. Pra eles num aproveitarem a situação de dificuldade do povo,das enchentes, pra ficar pedindo coisa demais pra população. Em vez de ficar gastando muito dinheiro nas propagandas de televisão deviam colocar esse recurso pra socorrer o povo das enchentes. A população já paga muito imposto. Pra onde é que ele vai? Tchauzinho! A Fala - Vou dizer seu recado, Valdenira. Agora que ele vai ser ouvido "é que são elas".Tchauzinho! |
31/01/2004 |
Colunista: Verônica M.Mapurunga de Miranda |
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