ZOANDO NA CAATINGA

A VOZ DE VALDENIRA


Valdenira é uma paraibana do semi-árido, vivendo na confluência de vários Estados. Ela é da base da base. Não tem computador e me telefona sempre para dar notícias e falar suas impressões sobre muitos assuntos que afetam os brasileiros da caatinga e de todo o país. Coloco aqui sua fala e discuto com ela suas idéias, às vezes muito radicais e críticas, mas quase sempre cheias de razão e divertidas. Acompanhe.

Valdenira hoje veio anunciando as criações, as mudanças e as pedras de tropeço. Acompanhe!

"(Cantando) Pela água que dá vida, pelos dons da criação... Alôzinho, minha amiga, eu hoje vim aqui pra tirar o meu chapéu de palha. Primeiro, em homenagem ao sêo Neo (Manoel Apolônio Carvalho), um sertanejo danado que fez um dos maiores inventos do Brasil: a cisterna de placas.Você sabe por que é que esse é um dos maiores inventos? Porque a cisterna de placa só mata uma coisa sobre a terra. Já adivinhou qual é? A sede, rá, rá, rá. Os gênios da humanidade inventaram um monte de coisas,o avião, a bomba atômica e por aí vai. A bomba atômica, todo mundo já sabe, só serve mesmo pra destruição. E o avião, o inventor morreu suicidado, de desgosto, por usarem o avião pra guerra, pra matar gente. Por isso é que sêo Neo devia ganhar um grande prêmio, por fazer um invento que dá mais vida pras pessoas.Ninguém nunca tinha pensado na idéia que teve sêo Neo,uma cisterna mais prática, mais barata, rápida de fazer, e que todo sertanejo que não tem água perto de casa pode ter. Eu digo sempre, procure as idéias do povo, eles é que sabem o seu passadio, e não assessor de gabinete de político."

- Mas, Valdenira, os açudes do nordeste não foram feitos pra matar a sede também?

"Dizem que foi. Mas pra mim eles matam é a sede de ganância de fazendeiros. Essa é a primeira sede que os açudes matam, o que sobra, o resto dos restos, fica pros pequenos. Na época das secas, vinham aquele monte de recursos pra fazer açude. Tudo em terra de fazendeiro. As frentes de trabalho, com o povo sofrido e sem ter o que comer, iam construir os açudes nas fazendas, de graça pros fazendeiros do latifúndio. Aquilo ali era um recurso público dado de mão beijada pra eles. E os políticos diziam que aqueles açudes tavam nas fazendas, mas iam beneficiar todos os pequenos produtores da fazenda e os da redondeza, porque era público. Ô conversa pra boi dormir! Só que ninguém acreditava nessa história. Se era público devia ser feito em terra pública e não em terra que tinha dono. E logo que era feito o fazendeiro se adonava. As melhores terras com água perto do açude, pra irrigar, era plantio dele. Nenhum  morador, rendeiro ou parceiro tinha esse direito.E tinha regra pra tudo que o patrão colocava, regra de acordo com os interesses dele.Quando tinha alguma rixa com os rendeiros e morador proibiam eles de pescar no açude. Usavam o açude pra  dar castigo e manter o poder de coronel.Por isso eu digo sempre, açude pra pequeno só mesmo quando acontecer de verdade a Reforma agrária."

- E o movimento social pela Reforma Agrária e pela terra esquentou, não foi Valdenira?

"Tá fervente, minha amiga. E eu aproveito aqui pra tirar outro chapéu de palha pros sem-terra, pros sem-teto e pros índios. Num país como o nosso, quem não chora, não pula e num esbraveja, não mama e num consegue é nada. Quem for só confiar em promessa não sai do canto."

-Mas, Valdenira, os jornais e tv estão chamando os movimentos sociais de selvagens, bárbaros e pedindo punição e repressão.Tem gente até, na internet, que em nome da paz está fazendo circular uma mensagem pedindo ditadura militar.

" Ora, se tem, minha amiga, o que existe de gente usando o nome da paz em vão. É até um sacrilégio. Agora pra esse pessoal pau mandado dos "maiorais", das tais elites, digo o que eu digo sempre: "quem nasceu pra Judas nunca chegará a Jesus Cristo. Têm sempre que ficar do lado do pior tipo de poder e da traição. Mas é bom pensarem bem no destino do Judas. Esse pessoal gosta de malhar em ferro frio. Será que num perceberam que daí num sai mais nada. O culumin (curumim) brasileiro tá nascendo. E pros que gostam de repressão e chacina vou logo avisando: Vocês não viram o que aconteceu com o Herodes? Mandou matar milhares de criancinhas inocentes, e a criancinha que ele queria matar não matou. Se houver repressão aqui vai ser a mesma coisa, pois como diz aquele forrozinho  "o que é bom tá guardado". Nesse caso,a repressão não mata a criança e pode levar pro terror, porque os brasileirinhos já não são mais os mesmos, minha amiga. É melhor cuidar da criancinha e da plantinha e deixar essas histórias de repressão pra lá. Essa é a melhor forma de se conseguir a paz. Deixa eu ir minha amiga, procurar uns adubos daqueles naturais pra nossa plantinha. Até loguinho"

-É, Valdenira, vamos torcer pra que não surjam candidatos a Herodes. E vamos lembrar também daquela canção profética do Caetano Veloso:

Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante

De uma estrela que virá numa velocidade estonteante

E pousará no coração do hemisfério sul, na América,

num claro instante.(...)

 

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos

Surpreenderá a todos, não por ser exótico

Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto

Quando terá sido o óbvio.

(Excertos de Um índio - de Caetano Veloso)

 

25/04/2004

Colunista: Verônica M.Mapurunga de Miranda
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