ZOANDO NA CAATINGA

A VOZ DE VALDENIRA


Valdenira é uma paraibana do semi-árido, vivendo na confluência de vários Estados. Ela é da base da base. Não tem computador e me telefona sempre para dar notícias e falar suas impressões sobre muitos assuntos que afetam os brasileiros da caatinga e de todo o país. Coloco aqui sua fala e discuto com ela suas idéias, às vezes muito radicais e críticas, mas quase sempre cheias de razão e divertidas. Acompanhe.

Valdenira voltou às entrevistas. Hoje veio com um autor de sagas e animador das estradas. Vamos conferir.

"Alôzinho, minha amiga! Hoje eu trouxe mais gente boa. Dessas que anima as estradas. É um contador de estória dos bons. O Mané da Estrada. Cê sabe que o "pessoal" gosta de uma "estória", né? Mas nem todo mundo sabe contar. Se juntavam pra debulhar feijão aí começavam a contar "potoca". Se juntavam pra debulhar milho aí só falavam "miolo de pote". Nas casas de farinha a coisa tava meio fracassada também. Aí uma pessoa disse que tinha um contador de estória muito bom, que andava por aí pelas estradas. Aí o pessoal convidou ele pros adjutórios. Num é que o pessoal se animou! As rodas pra debulhar feijão e milho estão cheias, e as farinhadas já têm é gente demais, até atrapalhando."

"Chegue aqui, sêo Mané, no telefone, pra fazer a entrevista."

 

A Fala - Então, sêo Mané, como bom contador de estórias você deve ter trazido uma boa estória para nos contar.

Mané da Estrada - Minha senhora, meus respeitos. Hoje eu vou contar uma história diferente, que eu nunca contei - a história da minha estrada. Pois, foi depois de muito ler, de muito estudar e procurar significado que me tornei um contador de estórias. Não adiantava a filosofia, a psicologia, a teologia. Descambei pra metafísica e até para uma nova teoria apresentada por um sábio desconhecido, dos rincões, chamada escolotrofética. E como necessitava de muita iniciação e o resultado não se afigurava resolvi eu mesmo ganhar as estradas e ir atrás do meu próprio destino.

De dia pelas estradas enfrentava os perigos, de noite as estrelas eram meus guias e a lua meu candeeiro. Conheci muitos reinos, andei por muitos precipícios, enfrentei muitas lutas, e aos poucos todas viraram estórias, que misturadas com outras que eu já conhecia teriam virado moinhos de vento ou me secado o coco, como no caso do grande cavaleiro de Miguel de Cervantes - D. Quixote - se eu não tivesse a ousadia de relatá-las para os quantos ouvintes dessa estrada de meu Deus. Aí eu me tornei um contador de estórias.

Pra falar a verdade não eram estórias, mas histórias verdadeiras, pois as verdades insondáveis que continham só não viam os verdadeiros cegos - que são aqueles que não querem ver. Contava a história da galinha que era águia e estava no galinheiro, presa por engano e de asas cortadas, até descobrir sua verdadeira identidade e voar nas alturas, deixando o mundinho pequeno das encrencas e das cotoveladas (Será que galinha tem cotovelo?). Mas tinha também a história daquele homem que se julgava sábio demais e todo o resto era insignificante, que depois de muitas querelas para impor sua sabedoria descobriu que sua verdadeira identidade era de pavão, e que estava no meio dos humanos por engano. História muito verdadeira que mostra que sempre é cedo pra se descobrir o quanto temos de animais e de prepotência também. E quando se descobre isso começa a se tornar humano, vai se buscar sua verdadeira identidade.

O certo é que de dia eu vivia e lutava por muitos reinos. Matava um leão por dia, me encontrava com o dragão da maldade, conhecia todas as cabeças da Hidra de Lerna, cheguei a executar os doze trabalhos de Hércules, fui príncipe e casei com a princesa. E à noite os ouvidos me esperavam, nos quantos sítios e adjutórios de povo, sedentos de fantasias. Olhos atentos pras estórias que chamavam de fábulas de Cordel. Deixavam-me ao subir da lua, com as estrelas na estrada, dizendo: Esse Mané inventa cada estória, isso é que é imaginação! De tanto me falarem isso, vi que não tinha me secado o coco, mas que tinha uma coisa errada, um problema de percepção. Minhas histórias eram verdadeiras, mas eles pensavam que era invenção. Quando eu contava a história de João de Deus, que aprontava em todos os reinos e nenhum rei conseguia pegar ele, e ele ainda ia fazer serenata para os ditos cujos cantando- "Eu me chamo João de Deus posso mais do que o Rei"- eles diziam: Ô conversa boa essa, mas quem é que pode mais do que o Rei? Vá... fazer isso aqui, pra ver como se lasca?

Aí eu percebia, que eles é que viviam na fantasia. Achando que não tinham poder nenhum. Abdicando do seu próprio poder. Mas não havia forma de fazer eles acreditarem que aquelas fábulas eram verdadeiras, tinham verdades insondáveis, e que eu vivia essas histórias em todos os reinos, e que eu sabia que o mundo da Lua existia. Só que era diferente daquele que eles falavam, quando diziam: Ah! bom, num precisa acreditar em tudo o que o Mané fala, ele vive no mundo da Lua.

Pois foi daí que saiu o meu desafio. Tinha saído pra encontrar o meu próprio destino e me tornado um contador de histórias verdadeiras. Se o povo não entendia era porque tinha uma coisa errada: as histórias estavam trocadas, o que era verdade chamavam de fantasia e o que era fantasia chamavam de verdade. Mudar isso já era minha responsabilidade. Foi aí que eu comecei a mudar as histórias. Comecei a contar as histórias verdadeiras, que aconteciam diante de suas fuças e que eles não acreditavam. Por exemplo, a história O Estado Brasileiro, o dragão de garras afiadas. Narra a história de como esse dragão terrível todo dia exige tributos da população, até quando o cidadão compra uma mísera caixa de fósforo pra acender um fogo. Como esse dragão concentra e recolhe os recursos minguados da população pra depois repartir com os poucos ricos sob o pretexto de gerar empregos. Como o dragão abocanha os recursos pro sistema de saúde e depois como os pobres são tratados nas repartições de saúde infernais do dragão, e por aí vai.

Tem coisa que é verdade, mas que eles ainda num querem acreditar. A verdade ali, nas fuças de todos. Eu disse pra eles: a única forma dessa história acabar bem é vocês investigarem esse dragão, saber todos os passos dele e começar a descobrir a estratégia pra fazer ele morder o próprio rabo. Se vocês não entrarem direito nessa história, nunca vão poder ter um final feliz, ou que preste pra alguma coisa. Usem a imaginação verdadeira, entrem na sua própria história e vocês vão vencer esse dragão. Porque na minha história eu já descobri como vencer ele, mas ninguém acredita. Como essa história do dragão, tem muitas outras pra fazer e inventar. Tudo história verdadeira, como aquela - A Princesa que não podia dormir no ponto. É a princesa que são todas as mulheres que assim se sentem com sua graça, mas que chegando na cidade, saindo na rua não pode ficar muito tempo parada no ponto de ônibus, senão é assaltada. Verdade ali nas fuças! Acho que essa agora é minha missão. Contar verdadeiras histórias que o povo entenda, mas que tire deles essas ilusões de que João de Deus não pode mais do que o Rei. Ora, se pode!

A Fala - Sêo Mané, seu nome é Manoel?

Mané da Estrada - É não, minha senhora. Meu nome é Antônio Silvério dos Anjos. Mané foi o apelido que me deram, por acharem que eu era muito mané por acreditar ter vivido as histórias que eu contava. Quando me disseram porque tinham me dado esse apelido eu respondi: Pois talqualmente são vossas senhorias. Se vocês acham que eu sou mané porque acredito nas verdades insondáveis de minhas histórias, o que é que eu posso dizer de um povo que num vê a verdade de sua história nas próprias fuças? Só posso dizer Povo Mané...

E por aqui, eu vou ficando... A estrada ainda me espera, mas a missão foi encontrada. Os adjutórios nos sítios estão aumentando e o povo precisa de histórias verdadeiras. Num adianta dizer que num existe dragão...ele está bem ali, nas fuças. Quem quiser entrar nessa história é melhor se arregimentar. Amanhã e depois tem mais.

A fala - Muito obrigada, sêo Mané. E continue contando dessas histórias que não faz boi dormir e faz gente acordar! Passe pra Valdenira, por favor!

Valdenira - Alôzinho...Minha amiga, essa história me deu uma quentura, que tá subindo... Acho que eu vou gritar: Acooorda...povo mané!

Até loguinho, minha amiga. Vou sair atrás do pessoal. Imagine só as histórias que eu vou contar...Hummm! O Dragão que me aguarde!

A Fala - À falta de um grito é que se perde uma boiada, Valdenira. Vale mil vezes mais um contador de história imaginativo, do que um alimentador de realidade ilusória. Que se prepare o dragão...

 

29/05/2004

Colunista: Verônica M.Mapurunga de Miranda
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