ZOANDO NA CAATINGA

A VOZ DE VALDENIRA


Valdenira é uma paraibana do semi-árido, vivendo na confluência de vários Estados. Ela é da base da base. Não tem computador e me telefona sempre para dar notícias e falar suas impressões sobre muitos assuntos que afetam os brasileiros da caatinga e de todo o país. Coloco aqui sua fala e discuto com ela suas idéias, às vezes muito radicais e críticas, mas quase sempre cheias de razão e divertidas. Acompanhe.

Valdenira hoje veio com a dança, com a contradança e muito mais.Vamos conferir.

"Alôzinho, minha amiga! Hoje eu cheguei dançando. Escute só:

 

 Ai, eu entrei na roda 

para ver como se dança.

 Ai, eu entrei na contradança 

Eu não sei dançar.

 

Sete e sete são catorze

Três vez(es) sete vinte e um.

Se não entramos nessa roda

Não ficamos com nenhum.

 

" Minha amiga, ou a gente aprende a dançar ou, então, a gente vai "dançar" é feio. Tava todo mundo desanimado por aqui, com as estórias das quadrilhas do ano passado. Diziam assim: Num adianta fazer casamento nesse Brasil. É um casa, separa...casa e separa. Casamento pra só um levar vantagem, ninguém quer mais não. Era só se vendo quadrilha por aí na televisão  e nas festas de políticos. Tudo querendo ganhar voto à custa da cultura do povo. Ô raça perigosa essa de políticos profissionais! Aí eu disse assim pro pessoal: Quer dizer que nós vamos ficar aqui, perto das fogueiras, "pensando no nascimento da cadeira e no enterro da cafeteira", é? Enquanto a gente tá aqui só pensando, os outros espertos já estão agindo. Pergunte aí o que é que os maiorais do país já estão chamando de cidadania: três refeições por dia e alfabetização, de qualquer jeito. Tudo isso pra num se reclamar de mais nada. Se a gente num tomar uma atitude, quem vai "dançar" somos nós. Tudo que é feito de cima pra baixo, desse jeito, é só pra fazer a gente "dançar". Aí uma pessoa de lá falou assim: a gente só "dança" porque não aprendemos ainda a dançar de verdade. A gente tem que dançar a dança certa. Quadrilha com casamento num adianta mais."

-Mas, Valdenira, você mesma falou que a quadrilha do casamento do capital e trabalho no ano passado foi tão bonita...

"Foi, minha amiga, você disse bem....Foi. Mas num tá mais resultando. A dança agora tem que ser outra. Se a gente num aprender essa dança, "dançamos" todos. Aí uma pessoa disse assim: por que nós num fazemos uma dança com os movimentos sociais, pra acertar melhor o passo? Assim pode ser que a gente ganhe uma direção melhor pro movimento social. Aí o pessoal começou a se animar. E saiu a proposta de fazer o Chitão do Mutirão, porque quadrilha ninguém queria mais. Diziam assim: Nada de casamento. Acabou a história de casamento. O negócio agora é acertar o passo. Aí ficou combinado. Convidaram os movimentos sociais: sem-terra, sem-teto, sindicatos, índios, e o pessoal se lembrou também dos quilombolas, porque eles têm umas dancinhas que só eles sabem dançar. Nesses movimentos tem todo tipo de dança, do Brasil todo, se a gente num acertar o passo agora, vai ser difícil."

- E o Chitão foi muito concorrido, Valdenira?

"Foi uma maravilha, minha amiga. O pessoal fez uma roda bem grande, no terreiro, com uma fogueira no meio. Quando o pessoal dos movimentos sociais chegaram, combinaram como iam ser as danças."

"Depois de soltarem muitos foguetes, começou a roda puxada pelo Cacique hã-hã-hãe. Pra harmonizar melhor todo mundo, ia começar com o Toré. Todo mundo tomou cauim e também quentão que tinha sido trazido pelo pessoal do Sul. Já tava todo mundo muito alegre quando os tambores começaram a tocar e muitas maracas. Todo mundo cantando ho, ho, ho...Passado um tempo alguém disse assim: é melhor entrar com os portugueses porque não foram eles que chegaram depois? Outra pessoa disse assim: Mas, fado, rapaz, num dá pra essa dança não. Só se for outra. Aí lembraram das músicas de roda: Aí começaram todos a cantar: Eu sou leiteira, eu sou leiteira, vendo leite... Na cidade, na cidade de Lisboa...Ai, bote aqui, ai, bote aqui o seu pezinho, bem juntinho bem juntinho igual ao meu. Arretirai, arretirai o seu pezinho, abraçai, abraçai quem ama mais. Minha amiga, todo mundo começou a se abraçar. Ô coisa bonita, esse abraço dos movimentos sociais!"  

"Aí o cacique hã-hã-hãe voltou com as maracas pra concentração de novo. Quando tava todo mundo concentrado alguém anunciou: agora é a vez dos quilombolas. Pro meio da roda! Aí os instrumentos mudaram e uns casais foram pro meio da roda, dançando aquele samba bonito, que só eles sabem. E todo mundo acompanhando. Eles tiraram outras pessoas da roda pra dançar que era pros outros aprenderem. Quando eles estavam saindo da roda entraram as baianas. Aí foram fogos, flores, água de cheiro pra todos os santos.Quando já tava todo mundo embalado na dança, quase recebendo santo, o cacique hã-hã-hãe retomou a concentração com as maracas. E aí o grupo voltou pra roda. Depois o cacique anunciou o grupo de pagode que tinha vindo com os sem-teto. Caiu todo mundo no pagode. Passado um tempo uma pessoa anunciou:chegaram aqui também uns grupos do sul com dança italiana, alemã, japonesa, chinesa, árabe e outras. E foram mudando de instrumentos e danças dentro da roda. Ô danças bonitas, meu Deus! Se é dos movimentos sociais é bom a gente aprender. Tudo Brasil!"

"O cacique hã-hã-hãe voltou pra concentração e disse: a dança serve pra unir, e acertar o passo, mas a dança também é uma luta. E a luta é necessária para a vida e sobrevivência dos povos. Aí chamou pro centro a dança dos índios guerreiros, e depois entrou um grupo de capoeira. Ficaram numa parte da roda os índios guerreiros e do outro os capoeiristas, que pra quem não sabe, minha amiga, hoje já é dança não só de negros mas de brancos também. E os movimentos sociais precisam muito! Foi uma luta e dança bonita! Quando o pessoal já estava se cansando, chegaram os sanfoneiros com o forró pesado e forró do pé de serra. Aí ficou animado, mesmo. Entrou todo mundo no forró. Não ficou ninguém parado, minha amiga. Porque o forró, hoje, é dançado no Brasil inteiro e daqui a pouco no mundo inteiro. Estou dizendo:quem viver verá."

-Mas foi só dança, Valdenira, não teve nenhuma reivindicação ?

"Minha amiga, se os movimentos sociais conseguirem acertar mesmo o passo já foi de grande valia. Mas, o pessoal trouxe faixas com muitas reivindicações, que enfeitaram a festa toda. Tinha umas assim: Reforma Agrária, ainda que tardia! Não assaltem o dinheiro dos pequenos agricultores! Vamos fazer chover recursos no nosso terreiro! Casa, comida e tostão só com o Chitão do Mutirão.E a dos índios: A vida é um dom, não vamos esquecer de merecê-la.Tudo através da Natureza, Amor e Luta!"

-E todo esse pessoal do Sul veio para o Chitão do Mutirão, Valdenira?

"E lá tem dinheiro pra isso, minha amiga! Mas num precisava não. Nós sabemos direitinho como são os brasileiros daqui, do Sul e qualquer lugar. Cê nunca ouviu dizer que tudo tá ligado? Pois ligou lá, ligou aqui. Quem é que pode dizer que isso não dá certo?

 "O forró começou com os forrós antigos dos bons. Os sanfoneiros cantavam: forró pesado, forró pesado.. E depois continuou com aquele:o que é bom tá guardado, o que é bom tá guardado...E quem não entendia bem o que era o bom guardado...Quando eu saí de lá, já era tarde e tava tocando aquele: É proibido cochilar, cochilar, cochilar... Minha amiga, falei demais, mas agora eu acho que o passo se acerta, né mesmo? Até loguinho!

-Até loguinho, Valdenira. Vamos torcer para que o passo dessa dança se acerte. Será que não está na hora de mostrar o que é bom que tá guardado? De qualquer forma, é bom não cochilar mesmo. É melhor ficar de olho, hein?!

 

27/06/2004

Colunista: Verônica M.Mapurunga de Miranda
Veja mais na Seção Zoando na Caatinga

A FALA - www.cepac-ce.com.br 

Espaço Virtual do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará-CEPAC

Proibida a reprodução de artigos e textos

Todos os Direitos Reservados