ZOANDO NA CAATINGA

A VOZ DE VALDENIRA


Valdenira é uma paraibana do semi-árido, vivendo na confluência de vários Estados. Ela é da base da base. Não tem computador e me telefona sempre para dar notícias e falar suas impressões sobre muitos assuntos que afetam os brasileiros da caatinga e de todo o país. Coloco aqui sua fala e discuto com ela suas idéias, às vezes muito radicais e críticas, mas quase sempre cheias de razão e divertidas. Acompanhe.

Nada como uma boa saga para esclarecer as cabeças, e parece que ninguém melhor para fazer isso do que o Mané da Estrada. Mas além de sua vasta experiência pelo mundo das sagas, ele não esquece dos grandes mestres brasileiros, entre eles o autor de Sagarana. Vejam vocês:

"Alôzinho,minha amiga.Continuando o Baião, depois foi a vez do Mané da Estrada.Vai de gravação,do Dossiê, que meu amigo gravou, pois pra contar essas histórias só mesmo o Mané. Chegou perto da fogueira e com aquele jeito de contador de histórias, que deixa todo mundo nas nuvens, começou a falar:

"Hoje, em momento de tão grande importância para o nosso país eu trouxe pra vocês a história de um grande mestre das sagas brasileiras, como uma homenagem, pelas mensagens eternas e universais, que um grande mestre de fábulas pode nos enviar quando necessitamos nos descobrir, nos emancipar, e para alguns, nos converter naquilo que verdadeiramente somos." As pessoas têm sua vocacão, as nações também. São parte da composição do todo. E por elas esperam as estrelas e os céus, mesmo que muitas vezes seja "na base do porrete".Trago na memória retalhos maravilhosos da carta que o mestre Guimarães Rosa escreveu para João Condé revelando os Segredos de Sagarana, que eu não negarei a vocês:

"Assim, pois, em 1937 - um dia, outro dia, outro dia,...- quando chegou a hora de o "Sagarana" ter de ser escrito, pensei muito. Num barquinho, que viria descendo o rio e passaria ao alcance das minhas mãos, eu ia poder colocar o que quisesse. Principalmente, nêle poderia embarcar, inteira, no momento, a minha concepção-do-mundo.

"Tinha de pensar, igualmente, na palavra "arte", em  tudo o que ela para mim representava, como corpo e como alma: como um daqueles variados caminhos que levam do temporal ao eterno, principalmente."

"Já pressentira que o livro, não podendo ser de poemas,teria de ser de novelas. E - sendo meu - uma série de Histórias adultas da Carochinha, portanto."

"Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que algum dia já tivessem existido septos, limitações, tabiques, preconceitos, a respeito de normas, modas, tendências, escolas literárias, doutrinas, conceitos, atualidades e tradições - no tempo e no espaço. Isso, porque:na panela do pobre, tudo é tempêro. E conforme aquele sábio salmão grego de André Maurois: um rio sem margens é o ideal do peixe."

Tentarei seguir as palavras sábias do mestre, e ao contar a Saga A Hora e a vez de Augusto Matraga não me furtarei ao fato de que levado pelo enleio da própria saga e alma estarei revelando a interpretação e mensagem que cabe neste caso.Ele diz: Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Esteves. Filho de um tal coronel, lá das Pindaíbas. Eu digo: Matraga pode ser qualquer um, eu, você e todos que precisam "de uma vez e uma hora".

"Pois muito bem, vou resumir pra não ser cansativo. Augusto Matraga, filho de coronel não era muito escrupuloso, era valentão, "dono do pedaço" daquelas terras e paragens das Pindaíbas. Capaz de soquear, matar, tratar mal a mulher e a filha.Via-se nas suas ações a glória do poder truculento. A maledicência do povo dizia  que ele não respeitava filha dos outros nem mulher  casada, e mais que é que nem cobra má, que quem vê tem que matar por obrigação. Mas pra todos pode chegar o azar, tendo necessidade de umas férias na vida e como diz o ditado: Cada um tem seus seis meses.... Eu diria que um período tenebroso, ás vezes, é uma necessidade de um cabra se encontrar com sua verdade. E assim, muitas coisas começaram a acontecer: Sua mulher Dionóra e sua filha lhe abandonaram, de vez, uma vez que já se sentiam abandonadas e encontraram pouso melhor e mais amoroso. Na busca de vingança Matraga foi deixado quase à morte, e de fato para os inimigos e conhecidos de Pindaíbas isso aconteceu. Depois de rolar em um alto barranco e de ter sido soqueado, maltratado pelos inimigos, ainda escapou com vida, mas de outro lado que ninguém ficou sabendo. Talvez, quem sabe, para ter uma última oportunidade."

"Do outro lado lhe acolheu um casal de pretos,que lhe encontraram ainda gemendo com vida. Em outros tempos quem sabe, eles poderiam ter sido por ele maltratados, mas agora naquela indigência solitária e mortal fora acolhido com compaixão.

"Em seus delírios se percebia quem era - Deus que me perdoe, - resmungou a preta,- mas este homem  deve de ser ruim feito cascavel barreada em buraco, porque está variando que faz e acontece, e é só braveza de matar e sangrar...E ele chama por Deus, na hora da dor forte, e Deus não atende, nem para um fôlego, assim num desamparo como eu nunca vi! E quando recuperava os sentidos pedia que lhe matassem, mas os negros continuaram dele cuidando com compaixão, e quando despertou, por fim, percebeu que de qualquer forma a vida era melhor. Resolveu viver de novo. Mas, tinha um tempo, pois seus ossos estavam quebrados, demoravam para juntar, as feridas eram muitas, e percebeu também que eram na alma, e que estava como um menino, criado sem mãe, e que precisava de mãe.

No desespero do sofrimento aprendeu a rezar, ensinado pela preta que lhe tratava como filho, mas como não fosse bastante levaram-lhe um padre para lhe absolver de seus pecados. E aí se converteu com as palavras do padre: -Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria...Cada um tem a sua hora e a sua vez:você  há de ter a sua. E logo que pôde ficar firme sobre as pernas ganhou rumo na estrada pra uma terrinha sua distante, com o casal de negros que lhe acolhera e de quem não podia mais se separar.No meio da estrada, ajoelhado, abriu os braços e prometeu: - Eu vou p´ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!...E a minha vez há de chegar...P´ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!...

"Pois seu destino estava sendo traçado e dele não podia fugir. Passou a trabalhar de sol a sol, esquecendo as vinganças, e como nunca tinha feito na vida e sem ganância de dinheiro. Tudo era para os outros e para o casal de negros que agora sustentava. Não tinha quase diversão e nos descansos repetia pra si mesmo a fala final do Padre - Cada um tem a sua hora e a sua vez:você há-de ter a sua". Passou assim uns seis anos e meio, seguindo à risca o caminho de sua conversão.Mas as tentações apareciam, o Tião da Tereza, lá das suas terras lhe encontrou e quis lhe dar notícias e ele se negou a ouvir. Não era mais Nhô Augusto das Pindaíbas, era outro homem, aquele tinha morrido. Esquecesse dele e não contasse pra ninguém que ele vivia. Mas o olhar de nojo e desprezo do seu conhecido diante  daquele homem que era ele, que  não usava mais o corpo nem pra brigar, lavar a honra, e nem pra gostar de mulher o fez lembrar de novo do padre: -Você, em toda sua vida não tem feito senão pecados muito graves, e Deus mandou estes sofrimentos só para um pecador poder ter a idéia do que é o fogo do inferno!..."

"Mas seguindo o conselho da mãe negra de que debaixo do angu tem molho, e atrás do morro tem morro, se lembrava que: Cada um tem sua vez, e a minha hora há-de chegar. Assim não desistiu de seu caminho e foi se aliviando  dos fardos, e nem mesmo quando conheceu seu Joãozinho Bem-bem, cabra bom de briga, com seu bando que acolheu em sua casa,  deixou se contaminar de novo pelas artes das armas, das brigas e das contendas, mesmo criando amizade por seu Joãozinho Bem-Bem. Ora, ele agora era uma pessoa do bem, contra qualquer violência e isso se percebia.Vivia para os outros, um convertido. Mas eis que sua hora e vez lhe aguardavam ainda."

"E um dia de repente Nhô Augusto, começou a sentir desejo de mulher e da vida brejeira, e resolveu pegar estrada de novo, sem rumo.Cantar, só, não fazia mal, não era pecado. As estradas cantavam. E ele achava muitas coisas bonitas, e tudo era mesmo bonito, como são todas as coisas, nos caminhos do sertão. E sem querer no seu sem rumo foi dar numa vila onde encontrou seu João Bem-Bem com quem trocou cordialidades por já serem amigos. Mas seu João Bem-Bem tinha tido baixa de um dos seus homens por morte, e agora tinha uma vaga e queria vingar o assassinato. Queria que ele entrasse no seu bando, sabia, ele não enganava, que era um homem de luta. Mas eis que sua hora e vez se aproximava, ele seria colocado em grande prova. Não queria mais esse tipo de luta. Seu objetivo era ir pro céu, mesmo que fosse a porrete."

"Enquanto argumentava isso com João Bem-Bem, já tentado pela empreitada, se aproxima um velho que se joga aos pés de João Bem-Bem, pedindo misericórdia, que não matasse sua família levasse somente ele. E enquanto João Bem-Bem impiedosamente não se afastava de sua idéia de vingança, Augusto Matraga sentiu chegar sua hora e vez, não podia deixar aquela violência e maldade acontecer com a família daquele homem. Pediu ao amigo, pelo velho e sua família, e não sendo atendido resolveu partir para a luta.Mataria a família do velho sim, mas por cima do seu cadáver. Todos os seus atributos de homem valente e lutador foram usados e exibidos, mas agora de forma diferente, por uma causa justa, matou João Bem-Bem e salvou a família do velho. E morreu também, mas sorrindo porque tinha chegado sua hora e sua vez, e ele sabia que agora estava no céu. Foi enterrado como Santo por aqueles a quem defendeu."

"E assim é o destino de cada um, cada um pode ter os seus seis meses, ou seis anos e mais, quando resiste em não aceitar sua verdade. Cada um pode morrer em vida, quando chegar a hora em que estruturas velhas, mentais e políticas exigem mudança. E assim é o Brasil. Cada brasileiro com sua missão e responsabilidade nessa história. É a hora das estruturas velhas morrerem, é a hora e a vez dos brasileiros irem ao céu, nem que seja a porrete. É a hora e a vez de todos os brasileiros Matragas. Ao fogo as madeiras podres!"

"Minha amiga, esse Mané da Estrada e esse Guimarães Rosa são fortes na batida. Parece que eu levei um porrete com essa história. É a hora e a vez do Matraga, rá, rá,rá. Com essa já tô indo.Depois eu conto o resto. Tchauzinho!"

Tchauzinho, Valdenira! Espero que esse "porrete" ajude a brasileirada ir ao Céu.

 
16/07/2005
Colunista: Verônica M.Mapurunga de Miranda
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